Com o propósito de salientar e prevenir potenciais violações dos direitos humanos nos lares de idosos, a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (CDHOA) cedo alertou para a inexistência de “uma estratégia clara e efetiva de prevenção e combate da pandemia neste setor da sociedade especialmente vulnerável”.
Cinco meses volvidos desde esse primeiro alerta, a Ordem dos Advogados (OA) reitera, nas respostas que enviou por escrito ao Linha Contínua/JPN, a importância de uma “Estratégia Nacional de Proteção aos Idosos na Pandemias” e a necessidade de ser “prestada formação prática adequada à COVID-19 aos funcionários dos Lares de Idosos”, uma vez que a generalidade dos funcionários nestes estabelecimentos não tem formação especializada na área da saúde. Referiu ainda que é “dever do Estado proteger a saúde e esse dever ganha especial relevância quando estão em causa pessoas especialmente vulneráveis”.
Um dos casos que a CDHOA acompanhou de perto foi o Lar do Comércio, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), em Matosinhos. Com mais de 100 infetados e 24 mortos, o surto do Lar do Comércio foi, a par do registado no Lar de Reguengos de Monsaraz, dos piores ocorridos em Portugal, e os relatos de familiares, funcionários e posteriores vistorias e auditorias à instituição pintaram um cenário negro do que se passou durante o primeiro pico da pandemia.
No seu relatório preliminar, publicado a 30 de julho, a Comissão já apontava falhas graves à atuação da Direção do Lar do Comércio, prontamente negadas pela própria, que acusou a CDHOA de “fabricar denúncias”.
Familiares que apenas souberam das infeções dos utentes pela comunicação social, devido à impossibilidade de chegar à fala com a Direção ou com os próprios utentes, e testemunhos de funcionários, que revelavam cuidados insuficientes e desadequados, foram alguns dos problemas reportados no documento da OA.
Alegadamente, com o degradar da situação, a equipa médica que prestava assistência no lar terá deixado de comparecer e desvinculou-se da instituição. A própria assessora de comunicação da IPSS demitiu-se do cargo devido à omissão de factos graves sobre os reais números de infetados por parte da Direção, algo que se viria a confirmar quando 19 dos 20 utentes transferidos para o Hospital Militar do Porto testaram positivo, apesar de terem sido dados como saudáveis no momento da transferência.
No seu relatório final sobre o caso, partilhado a 15 de outubro, a CDHOA apresenta transcrições de dezenas de queixas e reclamações de familiares de utentes do Lar do Comércio que apontam para múltiplos problemas que podem ajudar a explicar o desenvolvimento e desfecho deste surto. No documento é possível ler-se várias referências à ausência de médico no lar – o documento indica que os utentes tinham de pagar a deslocação às instalações de um médico externo -, falta de equipamento de proteção individual para auxiliares e enfermeiros, e pouco pessoal à disposição – a dada altura terá havido apenas 25 funcionários a assegurar os cuidados de mais 300 idosos.
Para além disso, há relatos da omissão de casos positivos por parte da Direção do Lar, com mais do que um caso de utentes que tiveram de ir ao hospital devido a quedas e acabaram por testar positivo à COVID-19, da demora na testagem de casos suspeitos, da partilha de quartos entre utentes positivos e negativos, assim como mau controlo de entradas e saídas na instituição e ainda de insuficiência e desadequação dos cuidados de saúde – falhas na medicação dos utentes – e pessoais, no que diz respeito à higiene e alimentação.
Em reação à divulgação do relatório final, em outubro, a direção do Lar do Comércio diz que lhe foi negado o direito ao contraditório por parte da CDHOA, reiterando que lhe foi “negado o acesso às queixas que deram origem a este processo”.
Mas o CDHOA não foi a única entidade a visar a instituição. De acordo com o Auto de Vistorias Conjuntas da Proteção Civil, Serviço Social da Câmara de Matosinhos, Unidade Local de Saúde Pública de Matosinhos e Segurança Social de Matosinhos, o Lar do Comércio não cumpriu as diretivas da Direção-Geral de Saúde (DGS) na atuação perante casos suspeitos e, à data de 8 de julho, o seu Plano de Contingência não respeitava as normas da DGS. Já a presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, em carta enviada à revista “SÁBADO”, publicada a 27 de agosto, mencionava que as recomendações feitas pelo Auto de Vistorias Conjuntas continuavam por cumprir.
Com base em todos estes relatos, a CDHOA concluiu que o incumprimento reiterado das recomendações “terá causado a propagação do vírus e a consequente dimensão do surto”, e, assim, que “houve grave violação dos direitos humanos e dos direitos de liberdades e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa”.
Nas declarações enviadas ao Linha Contínua/JPN, a Ordem dos Advogados mostra “preocupação e apreensão” em relação a todos os relatos que possam configurar violações dos direitos humanos, até porque, no caso do Lar do Comércio, os idosos recuperados regressaram posteriormente à instituição. Ainda assim, há a expectativa de que as autoridades competentes tenham ganho, desde o início da pandemia, a experiência para resolverem de forma mais eficaz os surtos nesta segunda vaga.
No que diz respeito ao seu papel ao longo deste período, a organização afirma que tudo fará “para continuar com firmeza na primeira linha de defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, tentando alertar e sensibilizar nesta matéria as autoridades competentes e a sociedade em geral”.
Artigo editado por Filipa Silva
Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal Línha Contínua no âmbito da disciplina de AIJ/Rádio, Online e Imprensa – 3.º ano