O apelido “Cardinali” não deixa Jorge fugir às suas origens; o circo foi, literalmente, a sua casa durante muitos anos. Quando perdeu o seu “primeiro e grande amor” para o cancro – tinha ele 26 anos – a vida deixou de ter a magia que outrora teve. Foi na heroína que encontrou um refúgio que, pouco a pouco, foi tomando conta de todas as suas decisões: “eu tinha consciência que era consumidor de droga, mas chegou uma altura em que o vício é que me comandava a vida”.

Na entrevista que deu ao JPN a partir de Leiria, Jorge recorda as razões que o levaram a viver na rua.

Com dois filhos nos braços e sem meios para os sustentar, o antigo animador de circo viu-se obrigado a “viver” debaixo de um teto que a maioria das pessoas não vê como tal: durante cerca de um ano, as noites desta família foram passadas dentro de um carro. Jorge admite que o que mais lhe custou, durante este período, foi não poder dar o conforto de uma casa aos filhos. Foi assim que se viu obrigado a colocá-los num colégio. Com pesar na voz, confessa que apesar da dor da separação, não os queria arrastar consigo.

Durante os primeiros anos a viver na rua, era do calor da família que Jorge mais sentia falta: “eles vinham ter comigo ao parque de estacionamento onde eu estava, vinham-me ver e pediam umas moeditas para eles. Apesar de estarmos diariamente em contacto cá em Leiria, já não era o mesmo.” Quando perguntava aos filhos porque é que não sentiam vergonha dele, o mais velho respondia: “preferia que o meu pai fosse drogado do que fosse um criminoso.” O que mais o orgulhou foi o facto de os filhos continuarem a fazer “pequenos-grandes” esforços para verem o pai. No decorrer dos 12 anos passados a chamar “casa” às ruas de Leiria, os filhos nunca o abandonaram, ao contrário do que fizeram todos os outros que o rodeavam, diz. 

O sentimento de desamparo acompanhou-o em toda esta jornada e Cardinali pensa que tal se deveu, em grande medida, à falta de apoio familiar. “Eles estavam quase a marimbar-se. ‘É um caso perdido’, era o que eles pensavam na altura. Estavam sempre à espera de receber a notícia de ‘o Jorge apareceu morto aqui ou acolá’.”

“Farto desta vida”

Sem réstia de esperança à qual se agarrar, também Jorge chegou a acreditar que era um caso perdido e que “ia acabar por morrer na rua.” Assume, ainda, que nunca lhe chegou a passar pela cabeça que iria ter outro destino que não esse.

Mal sabia ele o tanto que a vida ainda tinha para lhe dar. É com emoção que relembra o “belo dia de agosto de 2009” em que acordou e disse: “estou farto desta vida, vou pedir ajuda ao meu filho mais velho”, que lhe impôs apenas uma condição: “Vens para minha casa. Comes, bebes, compro-te o tabaco, mas agora quem manda sou eu, e tens de seguir as minhas regras.”

Foi então que se dirigiu à associação “Porta Aberta” para o ajudar a tratar da burocracia necessária para sair definitivamente da rua. Em janeiro de 2010, é internado numa clínica de reabilitação em Coimbra, onde esteve quinze dias.

Durante este processo, o seu braço direito nunca deixou de ser o primeiro filho, mas foi necessário conquistar a sua confiança. “Se saísse sozinho para a rua, o meu filho caía logo em cima de mim. Tinha informadores em todo o lado. Não era como se andasse a fazer algo de mal. Simplesmente, ainda não havia confiança”, conta o antigo sem-abrigo.

Um dos maiores medos de Cardinali eram as recaídas, a ideia de que podia não conseguir resistir à tentação de voltar a consumir. Tinha consciência de que, se o fizesse, acabaria de novo na rua, e que poderia ser realmente o seu fim.

“Numa ocasião, não sei como, apareceram-me 20 euros nas mãos e eu pensei: vou comprar uma dose. Mas também tinha o número de telefone de uma amiga minha que uma vez me disse: quando você tiver alguma tentação, ligue-me. Eu liguei para ela, em vez de ligar para o dealer. Foi essa a minha sorte”, recorda.

Com o mesmo protagonista, hoje, a história é bem diferente. Em 2010, quando saiu da clínica, a associação “Porta Aberta” e a EAPN (Rede Europeia Anti Pobreza) estavam a fazer um trabalho sobre a pobreza e a exclusão social em Leiria. Lisete Cordeiro, técnica nessa associação, convidou-o para participar enquanto voluntário. Foi o início de um novo capítulo: “Nos meus dois primeiros anos era muito acanhado, tinha muita vergonha e não dizia a ninguém que tinha sido drogado. Agora, já não tenho o mínimo problema. Faço uso do meu passado para ajudar outros a passar por aquilo que eu passei.” 

Mais tarde, Lisete Cordeiro voltou a convidar Jorge para um novo projeto, os “Giros na Rua”, da associação InPulsar. Aqui, o objetivo era haver uma maior aproximação entre os técnicos das equipas de rua e os sem-abrigo. Em 2018, foi convidado para entrar para a própria associação como mediador de pares, que é o que faz atualmente. Com orgulho, descreve que o seu trabalho diário consiste em contactar com os sem-abrigo, referenciar novos casos e levá-los até aos técnicos da associação. Também costuma acompanhá-los à Segurança Social, à Loja do Cidadão e até ao Hospital de Coimbra. “Tento ser um exemplo de vida para eles, aliás, é o que mais gosto: ‘se o Cardinali conseguiu, eu também consigo’. É isso que me faz acordar todos os dias, disposto a ajudar essa malta.” 

Jorge olha agora para o futuro com uma visão completamente diferente da que tinha há cerca de 10 anos. Traça os seus próprios objetivos, que passam por continuar a dar o seu melhor pela InPulsar e pelas pessoas que estão em situação de sem-abrigo na sua cidade. Morada Certa – Housing First é o mais recente projeto no qual está envolvido e abraça-o com entusiasmo: “damos casas a pessoas em situação de sem-abrigo, já temos quatro alojados e esperamos alojar muitos mais!”

Jorge Cardinali encontrou na InPulsar uma segunda casa. Sente-se útil perante a sociedade e mostra-se agradecido por, finalmente, ser aceite e reconhecido por ser quem é: “Aqui na InPulsar todos os técnicos respeitam-me e tratam-me como um deles: o Jorge não é licenciado no canudo, mas é licenciado na rua.” 

Artigo editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online