Como chegam os refugiados a Portugal? Que obstáculos encontram? O que é preciso melhorar no sistema? No Dia Internacional dos Migrantes, que se comemora esta sexta-feira (18), procuramos responder a estas e outras perguntas com a ajuda de quem está na primeira linha de apoio.

Fugir da guerra, de perseguições, de conflitos ou de desastres naturais é uma realidade para 79,5 milhões de pessoas, estimou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para o ano de 2019. Só o conflito sírio gerou mais de 5 milhões de refugiados. Sem um lugar seguro onde ficar, estas pessoas veem-se obrigadas a deixar a casa, a família e a dignidade nos escombros dos seus países.

Em 2015, a Europa viu milhares de barcos naufragarem às suas portas e milhares de pessoas a pedirem para entrar na “terra das oportunidades” e “dos sonhos”. Milhares ainda se encontram em campos de refugiados na Turquia e na Grécia, à espera que o futuro lhes sorria. Outras conseguem chegar a países que lhes ofereceram acolhimento. Portugal é um desses países.

Em 2019, o governo português divulgou que, no âmbito do Programa de Recolocação da União Europeia, foram acolhidos 1.552 refugiados em solo nacional provenientes da Grécia e de Itália. Já ao abrigo do Programa Voluntário de Reinstalação da União Europeia e do ACNUR, Portugal assumiu o compromisso de reinstalar 1.010 refugiados, mas, até ao momento em que foram revelados os dados, desses apenas tinham chegado 196. Para além dos programas de Recolocação e de Reinstalação, entre 2018 e 2019, chegaram a Portugal 122 pessoas, na sequência de resgates de navios humanitários no Mediterrâneo, como os casos ‘Lifeline’, ‘Aquarius I’, ‘Diciotti’, ‘Aquarius II’ e ‘Sea Watch III’. Nesta contagem, não se incluem as centenas de requerentes espontâneos de proteção internacional que continuam a chegar ao nosso país, ano após ano, exigindo todo o tipo de esforços por parte da sociedade, no sentido do seu acolhimento e integração.

Um refugiado ou requerente de asilo pode chegar a Portugal de duas maneiras: a primeira é ao abrigo de um dos programas europeus desenhados para o efeito – o Programa de Reinstalação da União Europeia, ou o Programa de Recolocação da União Europeia e do ACNUR. A segunda, é por iniciativa própria, de avião, de barco ou por terra, pedindo então asilo na polícia ou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras à chegada. São denominados “refugiados espontâneos”, com pedidos voluntários de asilo. 

Estes são recebidos pelo Centro Português para os Refugiados (CPR), que é o representante do ACNUR em Portugal.  O CPR é uma das entidades responsáveis por receber requerentes de asilo que, mais tarde, após análise dos seus pedidos, adquirem (ou não) estatuto de refugiados.  

Como Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), o CPR tem como objetivo a defesa e a promoção do direito de asilo em Portugal, isto é, promover o acolhimento de pessoas em condições dignas, proporcionando proteção e providenciando alojamento, alimentação, higiene, vestuário e acesso a cuidados de saúde, entre outras necessidades básicas. Dispõe de três centros de acolhimento, que são alojamentos transitórios para quem chega ao país. Neste momento, o CPR acolhe pessoas de mais de 40 nacionalidades, provenientes sobretudo de países onde há conflitos.

Por sua vez, o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS – Jesuit Refugee Service) é uma instituição católica que acolhe maioritariamente refugiados que vêm ao abrigo dos programas europeus e do ACNUR.  Através da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), que nasceu por iniciativa da sociedade civil para dar resposta ao drama humanitário em curso às portas da Europa em 2015 e 2016, o JRS medeia as relações entre as instituições disponíveis para acolherem refugiados e os organismos da Administração Pública responsáveis pelo acolhimento, nomeadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e o Alto Comissariado para as Migrações (ACM).

À chegada a Portugal, cada requerente tem direito a um subsídio de sobrevivência mensal que, na maior parte dos casos, é de 150 euros. As instituições e organizações que acolhem os refugiados complementam este valor com doações de géneros alimentares do Banco Alimentar e com outros bens resultantes de iniciativas da sociedade civil e da comunidade de acolhimento. 

Quando um requerente de asilo chega, pode contar com um acompanhamento durante 18 meses, num pacote que inclui apoios ao acesso à regularização do estatuto de refugiado, bem como ao acesso à habitação, ao emprego, à escola e à aprendizagem da língua portuguesa.

Língua e preconceito são barreiras

A integração profissional de um refugiado pode ser rápida ou lenta, dependendo das circunstâncias. A barreira linguística e algum preconceito são obstáculos que as instituições tentam ultrapassar.

Se, por um lado, há quem não fale o básico da língua portuguesa e não tenha qualificações académicas, há também casos de pessoas instruídas que falam várias línguas, aptidões que constituem uma mais-valia para a integração no mercado de trabalho, não sendo, porém, sinónimo imediato de sucesso.

Milhares de refugiados arriscam-se todos o anos nos mares do Mediterrâneo. Foto: Gerd Altmann/Pixabay

Filipa Silvestre, diretora de um dos Centros de Acolhimento para Refugiados do CPR – localizado em São João da Talha, em Loures –  explica que “a integração profissional é também uma adaptação cultural”. Por um lado, é necessário aos refugiados receber alguma formação no que diz respeito às dinâmicas empresariais, para perceberem em que moldes trabalham as organizações em Portugal, moldes esses que são, normalmente, diferentes dos que vigoram nos países de origem dessas pessoas.

Filipe Doutel, jurista do Serviço Jesuíta aos Refugiados, informa que, na sua instituição, é também dado apoio na procura de trabalho, na elaboração de currículos e na apresentação dos candidatos.

Por outro lado, é igualmente essencial que conheçam os seus direitos. Filipa Silvestre dá alguns exemplos em que houve, por parte das empresas, um aproveitamento da situação de vulnerabilidade dos migrantes. “É importante que estas pessoas tenham uma  noção dos seus direitos. Já me aconteceu perguntar a um senhor do Paquistão se tinha assinado um  contrato de trabalho e ele, muito contente, apontou para um papel em branco e disse que o patrão lhe tinha pedido para assinar um papel igual àquele”. Para além disso, há patrões que se aproveitam da vontade de trabalhar destas pessoas. “Os patrões aproveitam-se de quem está vulnerável e quer muito trabalhar. Já tivemos requerentes a admitir que trabalham 16 horas por dia”, conta. 

O racismo e o preconceito são também entraves à integração. A representante do CPR, com base na sua experiência diária, admite que há casos em que estas pessoas são discriminadas devido à sua situação. “Não somos racistas, mas não queremos um refugiado em casa. Por isso é que temos dificuldades em alugar casas. ‘Não sou racista, mas não quero essa pessoa na minha empresa’, isto existe”, diz.

A desconfiança em relação ao desconhecido é uma barreira que dificulta a integração plena. Filipa Silvestre continua: “Nós telefonamos às empresas, mas estas não aceitam quem tenha autorização de residência por seis meses, preferem evitar constrangimentos”. Para combater este tipo de discriminação, a coordenadora, membro do CPR, acredita que é importante desconstruir esta maneira de pensar, sobretudo junto das escolas e grupos profissionais, para “mostrar que não faz sentido nenhum ter estes preconceitos”.

O jurista do JRS explica, por sua vez, que existe um período de acolhimento de 18 meses que tem como objetivo “integrar [o refugiado] como um todo”. Durante esse tempo, “é necessário as pessoas passarem por um período de luto por aquilo que perderam. Depois, tentam ter alguma estabilidade para reequacionar e reorientar as suas vidas para o futuro, a curto, médio ou longo prazo, se é que conseguem definir isso”. Filipe Doutel reconhece que o período de 18 meses “não é suficiente e talvez tenha sido idealizado de forma irrealista”.

Ao fim de um ano e meio de acolhimento, o refugiado adquire os direitos e deveres de qualquer cidadão português. “Se não tiver emprego e tiver feito os descontos necessários, terá direito ao subsídio de desemprego e ao abono de família, caso tenha filhos. No caso de uma condição de vulnerabilidade habitacional, terá de recorrer à Segurança Social, como qualquer outra pessoa, sem privilégios e sem desvantagens”, lembra.

Foto: Markus Spiske/Pexels Foto: Markus Spiske/Pexels

O fim deste período de acolhimento e de apoio à integração traz dificuldades. Filipe Doutel enumera alguns problemas que surgem na procura de habitação. Os refugiados que foram acolhidos na instituição jesuíta têm de deixar a casa para dar lugar a outros. Esta necessidade leva a que os anteriores ocupantes tenham de procurar outro espaço para viver, mas a procura torna-se ainda mais difícil quando não existe qualquer tipo de retaguarda. “Os portugueses têm um núcleo social que permite criar uma dinâmica, viver na casa dos pais, com os amigos; já os refugiados vivem em camaratas sem condições. Duvido que as condições de higiene e dignidade sejam satisfatórias. É problemático quando uma família partilha a casa com outras famílias”, explica.

Outro obstáculo à habitação é a obrigatoriedade de ter um fiador. “Praticamente todos os senhorios exigem fiador. A maioria de nós [portugueses] consegue um fiador, porque fala com um familiar muito próximo. Os refugiados não têm uma rede familiar em Portugal e não têm condições económicas para serem fiadores”. Esta questão é, na opinião do jurista, um “obstáculo quase inultrapassável”.

Nos casos nos quais não é exigido um fiador, muitas vezes existe o “crivo da discriminação”, como relata Filipe Doutel. “No arrendamento da habitação existe uma preferência clara pelos portugueses. Às vezes, também não percebemos até que ponto [essa preferência] é guiada por preconceitos culturais ou económicos. Há um raciocínio meramente económico, o que leva as pessoas a pensar que um cidadão nacional tem uma maior garantia de cumprimento do contrato”. Filipa Silvestre, do CPR, refere ainda: “Telefonamos para alugar uma casa e, se dissermos que são refugiados, desligam-nos na cara”.

Descontruir mitos para combater o preconceito

Embora os dois entrevistados admitam que existem casos de preconceito, como os já mencionados, são unânimes em afirmar que, no geral, a população portuguesa acolhe bem quem chega a Portugal. Na entrevista, Filipe Doutel, do JRS, garante: “Nunca tivemos uma rebelião de uma comunidade que fosse preconceituosa e rejeitasse, de todo. Aliás, a tendência é cada vez mais aceitar, cooperar ativamente e há vontade de integrar. Isso é um aspeto muito positivo”. 

Apesar disso, em outubro de 2020, o Centro de Acolhimento para Refugiados da Bobadela, do CPR (à semelhança da Universidade Católica e outras escolas em Lisboa), foi vandalizado com frases racistas e xenófobas. Para Filipa Silvestre, é uma situação preocupante, porque já havia acontecido duas vezes, em junho e em julho, e “demonstra que quem tem esta posição mais extremista começa a não ter medo e vergonha de o dizer, quando devia ser o contrário”, comenta.

A coordenadora acrescenta que a palavra “refugiado” pode ser interpretada de maneiras diferentes, podendo ter conotações positivas e negativas. “A forma como a palavra ‘refugiado’ é utilizada em contexto social difere consoante o olhar de quem está a falar sobre a questão”.

Filipe Doutel, do JRS, acredita que há algum preconceito, mas defende a sua desconstrução. “Em relação aos refugiados, não sentimos que exista problema. Mas, todos nós temos preconceitos e estereótipos, algo prejudicial que cria obstáculos”. Afirma também que estes problemas devem ser trabalhados e, como tal, o JRS trabalha no sentido de “desconstruir os mitos”

Portugal tem a ganhar com a vinda de refugiados

Os últimos dados do relatório sobre a imigração publicados pelo Observatório das Migrações (OM), em 2018, mostram um saldo positivo de 651 milhões de euros entre as contribuições dos imigrantes (cidadãos estrangeiros, imigrantes económicos, refugiados) para os cofres do Estado (746,9 milhões de euros) e os benefícios obtidos com prestações sociais (95,6 milhões). Nunca os imigrantes contribuíram tanto para as contas da Segurança Social. Por exemplo, este valor é mais do dobro do que foi registado em 2013, nota o documento.

Para além disso, a entrada de imigrantes no mercado de trabalho nacional fortalece a economia. Filipe Doutel diz que esta conjugação “é eticamente louvável: o que é humano também é economicamente favorável”.

O jurista desconstrói ainda o mito de que os cidadãos estrangeiros em Portugal tiram os postos de trabalho aos portugueses. “Essa ideia não é verdade e não faz sentido. O saldo migratório mostra que há tanto mais imigrantes quanto o desenvolvimento económico do país. Na altura em que Portugal esteve em crise e teve a intervenção da Troika e do FMI, o número de imigrantes desceu muitíssimo. Quando a economia cresce, é preciso mais mão de obra, há mais imigrantes. Os imigrantes acompanham a tendência do país”, explica. Acrescenta ainda que, em alturas de crise, “os imigrantes são os primeiros a ser despedidos”.

Muito por onde melhorar

Filipa Silvestre e Filipe Doutel consideram que há “um longo caminho a percorrer no nosso país”. São apontadas várias falhas ao nível organizacional, governamental, habitacional e burocrático, bem como no ensino do português. 

Família de refugiados no campo de Kara Tepe na Grécia.

Família de refugiados no campo de Kara Tepe na Grécia. Foto: Nações Unidas

Filipa Silvestre salienta a necessidade de haver um maior envolvimento das entidades governamentais e não governamentais na resposta concreta a estas pessoas. Dá como exemplo a Associação Nacional de Municípios. Embora tenha assinado o protocolo de cooperação no acolhimento de requerentes de asilo, só esteve presente na primeira reunião. “Podem, por exemplo, fazer lobby junto dos municípios”, sugere.

Filipe Doutel partilha a mesma opinião e deseja que “as pessoas envolvidas no acolhimento – sociedade civil e Estado – falem e discutam mais, façam uma análise crítica”.

Filipa Silvestre destaca a falta de um plano de contingência nacional para a criação de estruturas sempre que haja um aumento do número de requerentes, bem como para a desativação das mesmas sempre que o número de refugiados ou de pedidos de asilo desça.

O representante do JRS acredita que se pode ser feito mais trabalho a nível do arrendamento de casas e propõe a utilização de fundos comunitários para reabilitar património devoluto e ceder os edifícios aos refugiados que necessitem de habitação. Para solucionar a questão da fiança, considera que seria útil e mais eficaz a criação de um seguro de fiança, que já existe no mercado, mas “a taxa de esforço é baixíssima e irrealista, além de que exclui estrangeiros porque é exigida residência permanente por cinco anos. O seguro de fiança iria ajudar a suprir este problema, que também é sentido por alguns portugueses”.

Filipe Doutel também aponta deficiências ao nível do ensino da língua portuguesa: “O ensino do português é uma grande falha do programa de acolhimento em Portugal. Não existe uma oferta contínua e intensa de português com diferentes níveis. O refugiado não pode estar dois, três ou quatro meses sem ter português. São meses perdidos. Primeiro, começa a entrar numa lógica de desmotivação e perde aquele entusiasmo inicial que tinha quando chegou. O ensino deve ser intenso: não uma aula por semana, mas várias. É importante que haja vários níveis. Há pessoas que nem conhecem o nosso alfabeto, outras nem sequer são alfabetizadas no seu alfabeto”.

O jurista identifica também a burocracia como um aspeto negativo no processo de integração e acolhimento. Quando um requerente de asilo chega a Portugal, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras demora muitos meses a emitir o documento que lhes garante os direitos básicos. O jurista acredita que o SEF deveria funcionar de uma maneira mais eficiente para não ser um obstáculo à integração. “Desde 2012, Portugal deve ter quadruplicado o número de imigrantes e o número de funcionários do SEF manteve-se o mesmo. O SEF precisa de investimento”.

Apesar de todas as lacunas, Filipa Silvestre, do CPR, diz que é necessário ter em conta que, “acima de tudo”, cuidam de pessoas, com tudo o que isso implica: “personalidades diferentes, expectativas, zangas”. 

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal O Impresso no âmbito da disciplina de AIJ/Online e Imprensa – 3.º ano