Quando a guerra na Síria atingiu Alepo, os membros da família Baytar foram sete dos mais de 5 milhões de refugiados sírios que se viram obrigados a deixar as suas vidas para trás. Em 2014, Mahmood e Waffa, juntamente com os filhos Ibrahim, Mohammed, Bilal e Maran, fugiram para a Turquia. Para trás, deixaram uma filha já casada e um neto. Além de alguns pertences, carregavam o sonho de viver na Europa. Agora, vivem em Gondomar.

Os constantes bombardeamentos e a insegurança que se vivia na Síria não deixaram outra opção aos Baytar. Com o país destruído e sem futuro, fizeram as malas e fugiram da terra natal em direção a Çaliş, na Turquia. No caminho, temeram pela vida e esconderam-se da polícia. Chegados à Turquia, fizeram uma viagem de carro durante vinte horas até Istambul. “Toda a viagem foi um grande tormento. Tivemos muito medo. Estávamos sempre a esconder-nos da polícia”, recorda o filho Mohammed. 

Apesar de, na Turquia, não terem vivido num campo de refugiados, a vida da família não foi fácil. “Conseguimos arranjar uma casa, mas era tudo muito caro”, conta o pai, Mahmood. Os filhos mais velhos Mohammed, Ibrahim e Bilal, apesar de terem idade para ir à escola, arranjaram um emprego numa fábrica de confeções a fim de conseguirem sustentar a família. A família vivia com 60 euros por semana. A única rapariga, Maran, ia à escola. Ainda na Turquia, nasceu o pequeno Yazir.

Mas, a vida sorriu-lhes.

Um pároco de Gondomar soube da existência de famílias que estavam na Turquia e que se tinham inscrito no Programa de Reinstalação do ACNUR. Sensibilizado com a situação e com a necessidade de estas pessoas encontrarem um porto seguro, o Padre Fernando Rosas, da paróquia de São Pedro da Cova, mostrou-se imediatamente disponível para acolher uma família. Depois de um processo de seleção e aprovação de condições no que respeita à paróquia, a família Baytar viu o seu destino mudar.

Em agosto de 2020, os Baytar tinham à sua espera no aeroporto de Lisboa o Padre Rosas. Em São Pedro da Cova, encontraram uma comunidade aberta e disponível para os receber. “Antes deles chegarem, houve muita ajuda na preparação da chegada da família. A comunidade paroquial tem tido uma atitude acolhedora”, diz o Padre. 

A chegada ainda é recente e há obstáculos a transpor até que seja possível a integração plena. O grande entrave é a língua portuguesa. A família não domina o português, o que dificulta a comunicação com o Padre e com a comunidade. O Padre conta que a comunicação com eles se faz através de uma aplicação de tradução automática e que isso causa alguns constrangimentos: “Eu ainda não sei toda a história deles. À medida que eles vão aprendendo o português, vou sabendo mais. Mas, para já, é só com o Google Tradutor e através de gestos que interagimos”. A entrevista que realizamos seguiu exatamente esses trâmites.

A família tem aulas diárias de português, mas a fluência ainda é pouca, o que dificulta a integração na comunidade. Além disso, não dominar do português é um obstáculo à integração profissional. “Os rapazes têm mesmo muita vontade de trabalhar. Eles fazem qualquer coisa. Mas já lhes foram recusados muitos trabalhos por não saberem português”

O Padre Rosas não esconde a preocupação face ao período atual de pandemia, que representa mais uma dificuldade para a integração profissional: “A situação atual é complicada em termos de trabalho, que é muito escasso. Eles fazem qualquer coisa. Vai começar tudo a fechar, é a coisa que mais me preocupa”.

O pároco explica que os rapazes mais velhos – Ibrahim, 22 anos, Mohammed, 20 anos e Bilal, 18 anos – têm experiência na área da costura e criam algumas peças que vendem à comunidade, de forma a conseguirem obter algum rendimento. “Reparo muitas vezes que, no final das missas, muita gente lhes compra as peças que criam. Mesmo quem não compra, oferece algum dinheiro. A paróquia tem recebido muito bem a família”.

Apesar de terem fugido da guerra, o Padre Rosas não sente que a família esteja traumatizada. Acredita que estejam abalados por terem de fugir da Síria e se encontrarem num lugar diferente, com uma cultura diferente. “Eles não têm grandes traumas de guerra. Talvez estejam traumatizados por estarem fora do seu ambiente. Talvez precisem de falar sobre isso. Mas não penso que estejam traumatizados por causa da guerra”, reflete.

Embora os Baytar tenham passado por situações muito complicadas e ainda se encontrem em processo de integração, o Padre Rosas reconhece boa disposição e sinais de resiliência da parte da família. “Eles são espantosamente bem-humorados. Eu admiro muito isso. No meio de tudo isto, eles estão dependentes de mim, da paróquia e do estado português. Mas têm muito sentido de humor. Eles têm espírito de lutadores. Este bom humor e a capacidade de superação, são sinais de uma certa valentia e resiliência”.

“A escola tem sido um fator de integração excecional”

O Padre Rosas não hesita em dizer que a escola tem sido fundamental para a  integração dos filhos mais novos do casal, Yazir e Maran, de sete e nove anos, respetivamente. As crianças frequentam a Escola Básica de Vila Verde, em São Pedro da Cova, e estão a ser acompanhadas por uma equipa de professoras dedicadas à sua integração e bem-estar. “A escola tem sido um fator excecional de integração”, elogia o Padre. O pároco refere ainda que os alunos da escola receberam muito bem os sírios e que, mesmo sem terem uma língua em comum, a comunicação tem fluído desde o início. “Quando as crianças se sentem bem e acolhidas, as barreiras são nulas”, diz.

A escola é fundamental na integração das crianças na comunidade. Foto: Project Elea/Facebook

Sandra Viana e Aurora Pires, as professoras das crianças, dizem que quando os meninos chegaram à escola vinham com uma postura fechada e desconfiada. Recordam que ambos protegiam-se mutuamente e só brincavam um com o outro. O tempo foi passando e, agora, cada um já está integrado na respetiva turma.  

Aurora Pires dá aulas ao 1º ano, turma que Yazir frequenta. No início, o menino “chorava muito e não queria ir para a escola”, conta, e “só queria brincar com a irmã”. 

A professora diz que a maior dificuldade de integração de Yazir é a língua. Apesar de os irmãos estarem a ter aulas de português duas vezes por semana, ainda não dominam a língua, o que dificulta a comunicação com a comunidade escolar. A professora Aurora já nota progressos desde o início das aulas. “Ele já sabe distinguir e dizer as cores. Já sabe também os números em português”, refere. 

A professora Aurora diz, no entanto, que mesmo existindo a barreira linguística, Yazir não é deixado de parte nas horas de lazer. “Os meninos da turma vão sempre chamá-lo para brincar, ele nunca fica de parte.” A docente conta ainda que quando Yazir começou as aulas, a turma acolheu muito bem. Os pais de um colega foram, inclusive, a casa do menino para se apresentarem e ofereceram presentes de boas-vindas. 

Outra dificuldade sentida por Yazir foi a alimentação. “O Yazir chorava muito na hora das refeições. Nunca comia a comida da escola. A nossa cultura é diferente da dele e isso deve ter sido um choque”, explica. Apesar de todas as dificuldades e de a integração ainda não ser completa, a docente não tem dúvidas que, agora, Yazir se sente melhor. “Ele agora está muito bem,” afirma. 

Sandra Viana leciona o 4.º ano onde Maran está integrada. Recorda com muita emoção a chegada dos meninos à escola. “A primeira vez que os vi, tive vontade de chorar”, conta. Admite que já estava sensibilizada para a questão dos refugiados e que encarou a chegada dos meninos como um desafio. “Eu já estava sensibilizada para esta realidade. Quando os vi, percebi que eram crianças aparentemente saudáveis e que estavam bem. Mas pensei no que eles, com uma vida tão curta, já teriam vivido. Eles fugiram à guerra. Pensei logo no que poderia fazer por estas crianças”, recorda.

“Todos eles vibram com as conquistas da Maran. A cada palavra em português que ela diz, os olhos deles brilham. Toda a gente bate palmas. É um envolvimento maravilhoso. Nunca vivi uma situação destas. Estou maravilhada”.

A professora Sandra explica que, aquando da sua chegada, foi pedido aos alunos que fizessem um exercício de empatia e se colocassem no lugar da menina. “Houve uma conversa de preparação. Expliquei-lhes que íamos receber uma aluna nova e que nos devíamos pôr no lugar dela. Pedi-lhes que imaginassem como seria se tivessem de ser obrigados a ir para outro país onde não conhecessem nada nem conseguissem comunicar. Disse-lhes para imaginarem que tinham de deixar a casa, os brinquedos e os amigos para trás”.

A preparação foi feita no sentido de explicar à turma a realidade de Maran, para que os alunos ficassem ao corrente das circunstâncias vividas pela nova colega. 

Maran foi integrada no 4.º ano devido à idade, e não pelo seu grau de conhecimentos. Esta decisão prendeu-se com o facto de a equipa educativa ter decidido que seria mais benéfico para a menina ficar junto de colegas da sua idade, em vez de começar no 1.º ano, o que poderia ser causa de frustração devido à diferença de interesses entre as duas faixas etárias. 

A professora relata que, no início, foi feita uma avaliação para perceber o nível de escolaridade da menina. Concluiu-se que Maran falava árabe, mas não sabia escrever na língua, o que acabou por facilitar a iniciação à escrita do português, pois não possuía a noção da escrita do alfabeto árabe.

Os rapazes, Ibrahim, Mohammed e Bilal querem, no futuro, ter uma casa e constituir família em Portugal. Mohammed tem o sonho de ser jogador de futebol, enquanto Ibraim gostava muito de montar um ginásio e o pequeno Yazir tem o mesmo sonho que o irmão mais velho. Maran quer ser pintora.

Sandra Viana reconhece que a língua é uma grande barreira à comunicação, mas entende que o processo de adaptação é lento, logo, o objetivo imediato é “trabalhar a oralidade”, para que Maran consiga integrar-se e “comunicar com os pares”. Com o foco na comunicação do dia a dia, a docente utiliza o “método das 28 palavras”, que consiste na formação de várias palavras com as sílabas de uma só palavra. Na visão da professora, este método é bastante adequado para a comunicação diária com toda a comunidade escolar.

Maran já sabe dizer várias palavras: menino, nome, caneta, são alguns exemplos. A professora realça que “mais importante do que escrever em português, é ela comunicar e sentir-se feliz na escola”. Sandra Viana destaca a atitude de Maran no processo de aprendizagem. “É uma menina muito interessada, com muita vontade de aprender”.

A docente elogia a atitude da turma em relação a Maran. “Todos eles vibram com as conquistas da Maran. A cada palavra em português que ela diz, os olhos deles brilham. Toda a gente bate palmas. É um envolvimento maravilhoso. Nunca vivi uma situação destas. Estou maravilhada”.

Na visão da professora, o facto de a turma ter de lidar com uma colega de um contexto diferente e passado difícil, pode contribuir para a formação das crianças e torná-las mais conscientes e atentas em relação à diferença e às dificuldades do outro. 

Sonhos por realizar

Os Baytar abandonaram a Síria, mas não esqueceram os sonhos. Apesar de terem deixado para trás uma história, a família está determinada em continuar a lutar por uma vida melhor. Os rapazes, Ibrahim, Mohammed e Bilal querem, no futuro, ter uma casa e constituir família em Portugal. Mohammed tem o sonho de ser jogador de futebol, enquanto Ibraim gostava muito de montar um ginásio e o pequeno Yazir tem o mesmo sonho que o irmão mais velho. Maran quer ser pintora. “Quero fazer muitos desenhos”. Bilal, para já, deseja aproveitar a estadia em  Portugal. 

O maior anseio do casal é a reunião total da família, já que a filha, Fatima, ficou na Síria. O patriarca gostaria de dar continuidade, em solo luso, ao negócio que deixou em Alepo. 

Nenhum dos Baytar pretende voltar para a Síria. Visitar o país que abandonaram está no projeto da família, mas só quando houver segurança. “Aqui somos muito felizes. Os mais novos vão à escola. Estamos seguros”, remata Mahmood.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal O Impresso no âmbito da disciplina de AIJ/Online e Imprensa – 3.º ano