Carolina Marcello, de 31 anos, trabalha como produtora de conteúdos digitais, mas também se dedica ao ativismo, sendo uma das coordenadoras da “Marcha das Galdérias” no Porto – movimento conhecido como SlutWalk.

Numa conversa com foco na sexualidade feminina, a ativista admitiu encontrar hoje uma maior abertura à discussão do tema e mais solidariedade entre mulheres, sem deixar de considerar que são ainda muitas, e muito enraizadas culturalmente, as barreiras colocadas à autodeterminação e à autodescoberta sexual femininas.

A priorização do prazer masculino, a supremacia das perspetivas heterossexual e cisgénero e a importância da educação sexual foram outros tópicos abordados.

JPN – Enquanto coordenadora na SlutWalk do Porto e como mulher, sente que falar abertamente sobre sexo ainda é um tabu?

Carolina Marcello (CM) – É, sem dúvida. Mas também é preciso dizer que nos últimos anos tem havido uma maior abertura. Parece-me que há um esforço maior da sociedade para trazer estas questões “à baila”. Não só da sexualidade feminina, mas também de todas as opressões que os nossos corpos vivem por serem lidos como femininos. Tem havido um esforço maior também da comunicação social. E o feminismo, os vários coletivos, os vários movimentos, feitos lá fora e cá em Portugal… Tudo isto tem contribuído para haver uma maior discussão. Agora, também é preciso termos em conta que a questão é tabu há séculos. Esta sociedade patriarcal e a opressão da sexualidade feminina e do corpo feminino vem de há muito tempo. Há um trabalho ainda muito demorado, mas acho que nós estamos, coletivamente, a tentar levantar um bocadinho este pano e a começar a falar destas questões que fazem parte da nossa vida, que não faz sentido ainda serem tabu em 2020 [a entrevista foi realizada em outubro de 2020].

JPN – Falou da evolução da sociedade baseada num sistema patriarcal – acha que isso teve influência no porquê de ser tabu?

CM – Certamente que sim. Nós temos de entender que a sexualidade, principalmente feminina, não existe no vazio. Existe neste contexto social, que ainda tem uma herança muito forte da mentalidade patriarcal, machista, do funcionamento da sociedade em que a mulher serve o homem, é submissa ao homem e depois tem as tarefas domésticas. Todas estas ideias de que a mulher pertence à casa, que o homem pertence à rua, que a mulher deve ser pura e casta e que tem menos desejo sexual. Todos estes mitos e questões culturais foram perpetuados na sociedade e não podemos acreditar que, por estarmos em 2020, estamos totalmente livres disto. Continuam as questões do julgamento das escolhas que as mulheres fazem para a vida delas e o policiamento da sexualidade delas. Estas questões ainda estão aqui, vão-se moldando ao mundo em que vivemos, mas continuam a ter um extremo impacto. Um exemplo muito concreto disto é como, na última década, a internet tem servido como um novo espaço para questões machistas, para a exposição e assédio sexual de mulheres. Portanto, o machismo continua a acompanhar a nossa sociedade, e é visível o quanto a internet tem sido usada como uma arma para magoar e expor mulheres, sexualizá-las e objetificá-las. Quando nós colocamos os óculos do feminismo é muito visível como o machismo ainda está em todo o lado, todas estas noções patriarcais e opressões. Estão mascaradas de forma ligeiramente diferente, mas a raiz das ideias continua a ser parecida.

JPN – Portugal é um país marcadamente religioso. Segundo os últimos Censos, 81% da população identifica-se como católica. Sente que isto tem um peso e que acaba por repercutir-se na “censura” da sexualidade da mulher?

CM – Não posso dizer que não. Principalmente na religião católica, todos estes séculos acabam por se entranhar de alguma forma na nossa mentalidade. É importante dizer que não são só as pessoas religiosas, mas toda esta questão da moral católica – o pecado, a pureza, o arrependimento, a culpa – mesmo para as pessoas que não se identificam com essa religião, acaba por estar muito incutida na nossa cultura. Mesmo esta questão da culpa quando a mulher é agredida ou assediada, esta coisa de apontar o dedo e do apedrejar, também veio de algum lado. Não digo que seja só da religião, mas sem dúvida tem um certo peso. Principalmente quando as religiões também não acompanham o mundo em que estamos. Obviamente, nem todas as pessoas religiosas são iguais, nem todas as práticas são iguais, mas se alguns de nós estão a pensar com uma visão de 2020 e outros estão a pensar com uma visão medieval, acaba por haver um choque muito grande de ideias e isto ainda é muito notório em Portugal.

JPN – Falou em assédio. Considera que para a autorrepreensão da sexualidade feminina contribui também o que se designa por rape culture?

CM – Infelizmente, acho que sim. Está tudo muito relacionado, porque além do tema da sexualidade em geral ainda ser mal visto, a sexualidade feminina é muito mais, porque há toda a culpabilização e todos os julgamentos. Acho que faz com que nós, mulheres, tenhamos menos liberdade para explorar a nossa sexualidade, para a conhecermos e para a vivermos de uma maneira que nos faz felizes e que nos deixa satisfeitas. Existe menos liberdade e menos segurança. Mesmo se sentirmos essa liberdade para explorarmos a nossa sexualidade e para a vivermos da maneira que quisermos, também é certo, estatisticamente, que estamos menos seguras para o fazer. Os crimes sexuais acontecem de forma desproporcional – muito mais às mulheres e raparigas, embora também aconteçam aos homens e rapazes – exatamente por estarmos nesta sociedade que pensa sempre nas mulheres como algo que está ao serviço do prazer masculino e sempre de uma perspetiva heterossexual e cisgénero. Pensam sempre em sexualidade feminina como uma mulher com um homem e o corpo da mulher ao serviço do desejo masculino. Estas coisas ainda estão entranhadas na sociedade, que não fornece uma boa educação aos cidadãos sobre o que é o consentimento, os limites de cada um e o que significa a autodeterminação sexual. Tudo isto acaba, obviamente, por tolher a nossa liberdade e até a vontade de explorarmos mais a nossa sexualidade e a vivermos de uma maneira mais positiva. É muito complicado termos de fazer um reforço e uma resistência para nos autodeterminarmos e dizermos: “Não! Este corpo é meu, este território é meu e vai ser regido da maneira que eu quero”. Parece uma coisa muito lógica, mas infelizmente ainda não é. E é uma questão de resistência e de tomarmos conta daquilo que é nosso, seja o nosso corpo, a nossa sexualidade, a nossa vida. Mas não é fácil.

JPN – Há cinco anos, o “piropo”, que foi talvez a forma de assédio mais banalizada socialmente, foi criminalizado – o que é que sente que mudou desde aí?

CM – Nada e isto é preciso ser dito. Efetivamente existiu a Convenção de Istambul, que foi escrita em 2011 e assinada em 2014, na qual vários países da União Europeia se uniram para construir um protocolo de combate à violência doméstica e à violência de género. A intenção desse protocolo era exatamente proteger as vítimas e acabar com a impunidade dos agressores sexuais. Portugal foi um dos países que assinou este protocolo e, em 2015, saiu a chamada “Lei do Piropo” que diz respeito à importunação sexual. Acontece que a maneira como foi formulada já deixa bastantes dúvidas, porque é bastante ambígua. Refere-se por exemplo a propostas, ou seja, uma pessoa perguntar a outra uma coisa sexual – “queres x coisa?”. Agora, se não for uma pergunta ou uma proposta, já não está incluída nesse artigo. Houve imensas denúncias e, uma pequena parte destas, avançaram e foram a julgamento. A questão é que segundo todas as informações que nós já recebemos, lemos e vimos na comunicação social, não existem condenações. Ou seja, uma coisa que feita há cinco anos, gera centenas de denúncias anualmente e nunca gerou condenações – o que é isto se não apenas areia para os olhos? É importante termos esta lei enquanto um aviso à sociedade. Agora, se a lei não estiver a funcionar não muda grande coisa.

A SlutWalk ou “Marcha das Galdérias” é um movimento de protesto contra o machismo e a culpabilização da mulher em situações de violência sexual ou assédio. Surgiu a 3 de abril de 2011 no Canadá e, desde então, propagou-se a nível internacional, assinalando presença em diversos pontos do globo. Em Portugal, foi a 13 de agosto de 2011 que se deu a primeira Marcha das Galdérias, na cidade do Porto.

JPN – Porque é que acha que o assédio verbal é considerado uma forma de assédio menor?

CM – Acho que é porque está muito enraizado na nossa cultura e somos ensinadas a responder com um sorriso, a encarar como um elogio. Agora, sabemos que na prática não é assim que funciona. O simples assédio verbal, que muita gente desvaloriza, deixa imensas pessoas traumatizadas. Muda a nossa maneira de andarmos na rua, os percursos que fazemos e a roupa que vestimos. Isto tudo que para algumas pessoas é um comentário, uma brincadeira, um elogio, muda literalmente a forma como vivemos e deixa traumas. Fica na nossa cabeça e na próxima vez que passarmos num determinado sítio ou por um determinado grupo de pessoas, temos estas reações emocionais de medo que não é justo que tenhamos. Porque o espaço público é de toda a gente, não é justo que exista uma parte da sociedade que tenha de andar com medo na rua, para outra poder fazer as suas piadas ou os seus comentários. Isto é inadmissível e começa na infância. Temos imensos testemunhos – que recebemos na Slutwalk – de raparigas que sofreram assédio verbal pela primeira vez com seis anos. Crianças mesmo muito pequenas que não são sequer pré- adolescentes. Falas com mulheres de 20 e tal, 30 ou 40 anos e elas ainda se lembram exatamente das palavras que ouviram quando tinham seis. Porque não é uma coisa que simplesmente é dita: fica connosco, marca-nos, muda-nos. É uma forma de violência muito forte, só que como não é explícita no sentido de deixar uma marca física, é completamente desvalorizada.

JPN – Ainda a propósito de perceções enraizadas na sociedade: no caso da mulher, ter vários parceiros sexuais é quase considerado um comportamento desviante, no caso dos homens não é. Porquê?

CM – Pensando na sociedade patriarcal e nos alicerces que construíram o mundo em que vivemos, existe a questão do casamento e da maternidade associados à mulher e, portanto, ela é lida como a cuidadora: a que cuida dos pais, depois vai casar e cuidar do marido, vai dar descendência e cuidar dos filhos. Embora a mulher tenha começado a trabalhar fora de casa, ganho a sua independência e o seu dinheiro, não se livrou do papel da cuidadora. Quando a mulher não quer ter esse papel, ou não quer ter uma vida monogâmica, casar ou ter filhos… tudo isso é visto como uma afronta às bases desta sociedade patriarcal. Uma mulher que não queira nada destas coisas vai ser lida com este selo de “slut”. É automaticamente uma mulher “errada”. Embora acredite – o que me traz algum consolo – que a minha geração e as gerações que estão a vir têm cada vez mais pessoas feministas, e mulheres feministas em específico, que estão a lutar e a bater o pé para começar a viver a vida que querem. Acredito que daqui para a frente estes moldes tão estreitinhos onde as mulheres são obrigadas a meter-se, vão alargando. Os homens sempre tiveram uma maior liberdade para explorar a sexualidade deles da maneira que quiserem e sempre foi visto com normalidade. Nós só não o fizemos até agora porque fomos oprimidas. Explorar a sexualidade é uma questão humana, não está associada a nenhum género em particular.

Entre 400 e 500 pessoas marcharam sábado no Porto.

Marcha das Mulheres no Porto em 2017. Foto: Ana Marta Ferreira

JPN – A escritora Regina Navarro afirmou que há muito tempo que há uma priorização no prazer masculino, nas relações, sobretudo nas relações sexuais: por exemplo, é comum a ideia de que o sexo acaba quando o homem atinge o orgasmo. Na sua opinião, o que é que causa esta tendência e porque é que há esta desigualdade?

CM – Como ainda há desinformação em termos da sexualidade e do prazer feminino, persistem imensos mitos. Existe o mito de que a mulher se interessa menos por sexo do que o homem. Isto é uma coisa que ainda está extremamente entranhada na sociedade! Há imensas pessoas que acham que as mulheres têm menos desejo sexual, menos interesse do que os homens e que isto é uma coisa geral – quando nós sabemos que varia de pessoa para pessoa. Não existe essa cisão de género. Em 2020, ainda há quem questione o orgasmo feminino! Isto parece ridículo, mas basta andar cinco ou dez minutos na internet e encontram-se pessoas – homens, obviamente – que acham que a questão do orgasmo feminino é tudo uma tanga. Portanto, se ainda existem pessoas em 2020 que nem acreditam no orgasmo feminino, há que questionar como será a vida sexual das pessoas que se relacionam com elas… Como existe toda esta ignorância, falta de segurança e repressão para podermos descobrir e viver a nossa sexualidade, muitas vezes também não há comunicação entre parceiros, que é vital. É muito importante que ambas as partes possam dizer o que gostam e não gostam, o que querem e não querem.

JPN – Qual é que acha que devia ser o papel da educação sexual em duas coisas: 1) na promoção da igualdade sexual e 2) no autoconhecimento sexual da mulher? Achas que a educação sexual pode ser crucial neste ponto?

CM – Acho que sim. Embora a educação sexual seja mais ou menos dada nos currículos das escolas, continua a ser dada como um tabu, uma coisa muito científica e com muito desconforto. E isto também passa para as pessoas que estão a ouvir. Não sei se aconteceu convosco, mas eu aprendi – houve ali umas aulas a explicar umas coisas, do preservativo na banana. Mas é isto que nos traz algum tipo de informação? É isto que nos ensina a vivermos a nossa sexualidade como uma coisa natural e uma coisa positiva? Não é. Eu, não sendo professora, acho que, promovendo conversas e um diálogo verdadeiro – obviamente adaptado às idades dos intervenientes – se poderia tirar o mistério e explicar que é parte da experiência humana. Ou seja, devia – sim – haver uma educação não só sexual, mas para a cidadania. Não só para aprendermos a viver a nossa sexualidade de uma forma positiva para nós e para os outros, respeitando os nossos limites e os dos outros, mas também para entendermos que em termos de sexualidades e orientações sexuais existe diversidade. Logo, uma educação para a igualdade também seria vital. A pouca sexualidade que é falada é sempre de uma perspetiva heterossexual. Falando de sexualidade feminina: sobre relações entre mulheres, em termos de prevenção e cuidados, nada nos é ensinado. O que é que duas mulheres que querem ter sexo podem fazer para se prevenir, por exemplo, em relação às DST [doenças sexualmente transmissíveis]? Estas informações não são acessíveis. Muitas vezes os próprios médicos não têm um diálogo muito coerente. Acho que uma educação para a sexualidade faria toda a diferença.

JPN – O que é ser uma mulher que fala abertamente sobre sexualidade em Portugal, tendo em conta todos os antepassados e evolução histórica do país?

CM – Na minha experiência e na das pessoas que trabalham na organização da SlutWalk, é muito dividido. Existe uma grande parte de pessoas que não recebe isto bem. Que acha que as mulheres estão à procura de atenção, quando nós sabemos que tudo isto acontece porque tem de acontecer, são lutas muito importantes. E  há que dizer que nem todas temos a mesma liberdade. Eu, neste momento da minha vida, posso dar a minha cara e o meu nome pela marcha, por estas causas e posso falar abertamente, mas nem todas as pessoas poderão. Seja por questões de trabalho, por questões familiares…Ppor exemplo, a minha família é totalmente aberta a estas questões. Outras, não serão. Ou seja, não é fácil uma pessoa querer viver desta maneira, de uma forma livre e que contrarie a mentalidade machista exatamente porque leva com todos esses julgamentos. Mas existe o outro lado: atualmente, acaba por existir muito apoio de mulheres para mulheres. Eu sinto isso. E é o que me dá força quando a sociedade machista me cai em cima ou quando recebo um comentário mais desagradável sobre o nosso trabalho, sobre a forma como estou vestida ou qualquer outra coisa. Esta solidariedade entre mulheres, esta força que sempre existiu e que ultimamente está cada vez mais presente na comunidade portuguesa, é o que nos segura. É difícil, sem dúvida, porque estamos, de certa forma, a desafiar um conjunto de preceitos morais que já estão aqui há séculos. Mas, por outro lado, dá-me a sensação de autodeterminação – estou a viver da maneira que considero correta – e dá-me a confirmação que outras pessoas, outras mulheres, também consideram correto viver desta maneira. São dois lados da moeda. Mas, a meu ver, vale a pena.

Artigo editado por Filipa Silva

Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina TEJ-Imprensa – 2º ano