A produção e distribuição das vacinas da Covid-19 tem-se revelado um processo moroso e complexo, exasperando as populações que esperam por um rápido regresso à normalidade. Matéria-prima, tecnologia, prudência e dinheiro são apenas alguns fatores que ajudam a explicar o ponto em que estamos.
Depois do entusiasmo inicial provocado pelo desenvolvimento em tempo recorde das primeiras vacinas da Covid-19, eis que, nas últimas semanas, os europeus viram-se forçados a tomar um banho gelado de realidade.
Umas após a outra, as diversas farmacêuticas com vacinas já aprovadas para uso no espaço europeu (Pfizer-BioNTech, Moderna e AstraZeneca) reviram de alguma forma os prazos de entregas inicialmente acordados com a Comissão Europeia.
Tornou-se assim claro que o caminho que permitirá passar da fórmula para a inoculação vai ser bem mais penoso do que o esperado. Como podemos então explicar que a produção de um bem tão necessário sofra tantos constrangimentos e esteja sujeita a tantas incertezas?
Maria do Céu Machado, professora catedrática jubilada de Medicina e ex-presidente do Infarmed, José Milhazes, especialista em Relações Internacionais, e a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) ajudam-nos a compreender melhor este fenómeno.
Uma multiplicidade de factores condiciona a produção
Maria do Céu Machado sublinha que as farmacêuticas têm em mãos um desafio produtivo numa escala e complexidade praticamente sem precedentes.
Produzir vacinas para o mundo inteiro num tão curto espaço de tempo é algo nunca antes visto: “A dimensão da produção atual da Covid-19 é várias vezes a produção habitual da vacina da gripe e essa é uma dificuldade, obviamente”.
Para Maria do Céu Machado, que dirigiu o Infarmed entre 2017 e 2019, são vários os fatores que concorrem para os constrangimentos de produção atuais. Alguns “não dependem até apenas das farmacêuticas”, ressalva.
A matéria-prima é um bem escasso
Logo à cabeça surge o problema das matérias-primas, essenciais para se produzir os diversos componentes: “Uma vacina tem um composto ativo, mas tem matéria-prima e vários ingredientes”, que, como sublinha a especialista, são cada vez mais difíceis de encontrar no mercado.
Um artigo publicado na “Science Translational Medicine” (STM) explica que, no caso específico das vacinas da Pfizer e da Moderna, que utilizam o chamado RNA mensageiro, para além do problema da fabricação dos diversos componentes (mRNA, lípidos, soluções salinas…), há ainda o da sua mistura, que exige uma grande precisão e recorre a sistemas de microfluidos – “câmaras de reação muito pequenas, funcionando em paralelo, que têm fluxos igualmente pequenos e controlados com muita precisão do mRNA e dos vários componentes lipídicos”, como explica Derek Lowe, o autor do trabalho.
Recursos tecnológicos e humanos não são suficientes
A tecnologia altamente especializada é difícil de encontrar no mercado e de produzir. Ela existe mesmo, sublinha a APIFARMA em resposta por escrito às perguntas do JPN, em quantidades “muito limitadas face às necessidades imensas”.
Para aumentar a produção seria pois necessário possuir de antemão a tecnologia altamente avançada e dispendiosa que permite acelerar a produção.
Para além da tecnologia propriamente dita, há ainda uma limitação de recursos humanos, pois “estes processos de produção só podem ser levados a cabo por técnicos e operadores altamente qualificados”, cuja formação demora anos a ser feita, refere ainda a associação das farmacêuticas.
Uma tecnologia complexa difícil de transferir
Mesmo que os recursos tecnológicos e humanos não fossem problema, o ritmo de produção talvez não fosse suficiente para satisfazer a procura. Estes “processos de base biotecnológica são demorados” e dificilmente podem ser acelerados sem quebra indesejável do controlo de qualidade, sublinha a APIFARMA.
No caso das vacinas com base em RNA mensageiro (Pfizer e Moderna), as exigências são mesmo superiores às das restantes vacinas, pois têm características que são completamente diferentes do “processo tradicional de fabricação de vacinas”, como sublinha o já citado artigo da STM.
Isto cria também obstáculos para uma eventual transferência em regime de outsourcing. Vários acordos entre farmacêuticas têm sido feitos nas últimas semanas para partilha do processo produtivo: por exemplo, a AstraZeneca estableceu uma parceria com a IDT Biologika, a Pfizer com a Sanofi.
No entanto, a replicação por uma companhia de processos desenvolvidos por outra não vai ser fácil, alerta a APIFARMA: a “validação destes processos biotecnológicos em locais distintos, com equipamentos diferentes e equipas diferentes, representa um desafio monumental nunca antes sentido”.
Falta de materiais descartáveis já assusta fornecedores
E se as vacinas chegassem aos respetivos centros de vacinação e não pudessem ser inoculadas por falta de materiais descartáveis? A ideia pode parecer absurda, mas sem seringas, agulhas, luvas, algodão, entre outros materiais, não é possível administrar a vacina e todo o esforço de produção, transporte e colocação do imunizante à disposição do cidadão terá sido em vão.
Para administrar a vacina da Pfizer-BioNTech são necessárias seringas de insulina. Cada frasco de vacinas do consórcio germânico-americano contém seis doses, pelo que para retirar a sexta dose é necessário um tipo de seringa específico, que permita uma medição de alta precisão.
A cadeia de fornecimento destas seringas para Portugal tem origem na China e as empresas fornecedoras já começaram a alertar para dificuldades no aprovisionamento, noticia recentemente o Observador.
Investigar enquanto se produz: as farmacêuticas estão a fazer um ‘dois em um’
Ao invés das farmacêuticas estarem a produzir a velocidade cruzeiro, têm que aferir a cada momento o que está a ser feito face às mudanças que a própria pandemia vai atravessando e ao comportamento que as vacinas vão revelando em contexto real.
Como sublinha Maria do Céu Machado, “os ensaios continuam para tentar melhorar não só a vacina como, sempre que vão aparecendo as variantes, o número de doses e a quantidade em cada dose.”
Esta fase da produção está assim a ser acompanhada de uma “investigação paralela”: novas pesquisas, verificações, ajustes de acordo com as mutações que o vírus vai sofrendo. Não se está somente a produzir, mas a prosseguir a pesquisa à medida que se produz.
Os ricos chegam primeiro
O fator económico também é determinante. “Há aqui um negócio, os medicamentos são um negócio, não vale a pena ter ilusões”, sublinha Maria do Céu Machado.
Assim, quem tem disponibilidade financeira imediata fica com as primeiras entregas, pelo que se é verdade que a vacina escasseia, não escasseia da mesma forma para todos.
Apesar dos Estados terem sido contribuintes líquidos do esforço financeiro que permitiu o desenvolvimento das vacinas, estamos agora numa fase em que as farmacêuticas querem maximizar os seus lucros.
A capacidade da União Europeia (UE) é evidentemente muito elevada, mas países como o Reino Unido, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos e Israel, entre outros, terão tido, numa primeira fase, um poder negocial superior. Isto tem resultado em dificuldades para a Europa acelerar, no primeiro trimestre do ano, o processo de vacinação.
O princípio europeu da prudência: ‘depressa e bem, há poucos quem’
Se a Europa quisesse, poderia ter à sua disposição todas as vacinas acordadas com a AstraZeneca para o primeiro trimestre (100 milhões, em vez dos 40 milhões que serão efetivamente entregues devido a dificuldades de produção na fábrica da Bélgica da companhia anglo-sueca). Bastaria aceitar a entrega de vacinas produzidas fora da Europa. A Comissão rejeita contudo essa hipótese, com base em critérios de controlo de qualidade.
Já o Chile seguiu uma via diametralmente oposta, aponta um artigo da BBC, e o país (com cerca de 19 milhões de habitantes) está a ser mencionado como um exemplo de sucesso no que ao ritmo de vacinação respeita.
Embora seja um dos países mais ricos da América Latina, o seu poder financeiro não é comparável à de um bloco como a UE.
Contudo, o Chile avançou rapidamente para a pré-compra; apresentou, sem hesitação, disponibilidade financeira; e adquiriu vacinas a diversas companhias: Pfizer-BioNTech, Sinovac (chinesa), AstraZeneca, Johnson&Johnson e Covax (uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde para garantir o fornecimento de vacinas aos países em vias de desenvolvimento). O país andino vai ainda adquirir doses da Sputnik V, a vacina russa.
A abertura para receber vacinas produzidas em diversos países, que a Comissão Europeia rejeita, foi assim uma das chaves para o sucesso do plano de vacinação do Chile, que espera ter praticamente 80% da população inoculada até julho.
A geopolítica das vacinas
Concebida para salvar vidas e erradicar uma doença que colocou a humanidade à beira de uma crise social e económica sem precedentes desde a Segunda Grande Guerra, a vacina está também a ser usada como instrumento de propaganda pelos governos, o que nem sempre funciona a favor das respetivas populações.
Um bom exemplo é o que está a acontecer na Rússia. Segundo José Milhazes, especialista em política internacional, “a vacina russa está a ser usada mais como arma política do que como medicamento”, o que justifica até, em parte, os baixos níveis de vacinação da população daquele país.
“A Rússia tem fornecido vacinas, que são fabricadas nas suas fronteiras, a outros países, nomeadamente ao Irão, à Argentina, e à Venezuela”. Putin quebra assim a palavra dada de que todas as vacinas produzidas na Rússia seriam priorizadas para os russos e que os outros países só teriam acesso à vacina russa, a Sputkink V, se a produzissem nos seus próprios territórios, pelo menos enquanto a população russa não estivesse imunizada.
“A Rússia está a usar a vacina como meio de propaganda, mas em detrimento da saúde dos cidadãos”, conclui Milhazes.
Produzir mais, mas também distribuir melhor
A vacina é hoje um bem precioso acima de todos os outros, verdadeiro maná a que os países aspiram depois de atravessado o deserto de meses de confinamento e de crise dos respetivos sistemas de saúde pública.
Contudo o problema subsiste: a este ritmo, a vacinação global poderá demorar anos, como assinala o site statista.com.
O impacto de uma vacinação mais demorada mede-se em termos de saúde pública e de vidas que não são salvas, mas também tem um efeito negativo nas economias, já muito debilitadas por um 2020 em que revela o FMI, o PIB mundial decaiu 3,5%.
Recentemente, a OCDE fez uma previsão sobre a evolução da economia mundial para 2021 e concluiu que, por comparação a um cenário em que não tivesse havido pandemia, as perdas, só este ano, deverão atingir os 5 triliões de euros. No entanto, se a vacinação a nível global correr mal, então essas perdas deverão ser ainda maiores, atingindo os 8 triliões de euros (ou seja, um agravamento de 66%).
O chamado ‘nacionalismo das vacinas’ pode ser assim, também, um dos principais obstáculos à erradicação da doença e ao relançamento do desenvolvimento. De que valerá nesse caso à Europa imunizar a sua população, se a recuperação económica e social continuar a ser uma miragem?
O esforço deve ser assim o de produzir mais, mas também o de distribuir melhor o esforço e os benefícios da produção.
Artigo editado por Filipa Silva