Licenciado em Ciências do Desporto na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, Luís Lopes, de 39 anos, é o nome português que figura na equipa técnica de Aslan Karatsev. O tenista russo protagonizou uma das mais impressionantes histórias do Open da Austrália, ao ultrapassar a fase de qualificação para fazer a sua estreia no quadro principal de um Grand Slam, onde somou vitórias surpreendentes para chegar às meias-finais da prova.

Acabaria por cair em três sets para o número um mundial e eventual campeão do torneio, Novak Djokovic, mas a dimensão do seu sucesso já estava mais do que garantida e o seu nome, até aqui praticamente desconhecido da maioria dos seguidores do desporto, cravado na história do primeiro Major da temporada tenística. Aos 27 anos, o russo tornou-se o primeiro tenista, na Era Open, a chegar ao Top 4 de uma prova desta dimensão na sua estreia e apenas o quinto a fazê-lo na condição de qualifier.

Ao longo do seu percurso eliminou o argentino Diego Schwartzman, número nove do mundo, o canadiano Félix Auger-Aliassime, um dos talentos da Next Gen já dentro do Top 20, e o búlgaro Grigor Dimitrov, antigo Top 10 e vencedor das ATP Finals em 2017. Foi na conferência de imprensa depois desta vitória que Karatsev destacou o seu preparador físico, Luís Lopes, atual Head Fitness Coach da Federação de Ténis do Qatar, onde trabalha desde 2014.

O início da relação com Karatsev

A parceria entre ambos ainda é recente, como explica Luís Lopes ao JPN, e começou no final de 2019, altura em que o tenista russo, então no Top 300 do ranking, foi ao Qatar disputar dois torneios da categoria Futures – a mais baixa do circuito profissional masculino. Depois dessas provas, Karatsev “tinha planeado ficar aqui três semanas a treinar, porque era o período de pré-temporada para ele”.

Os dois conhecerem-se numa fase em que o russo procurava fazer a transição para torneios Challengers e queria melhorar a sua preparação física. “Conhecemo-nos cá, falamos e começamos a trabalhar nessa altura. Enquanto ele cá esteve, fizemos um bloco de sensivelmente cinco semanas. As coisas correram bem durante essas semanas, ele gostou. Eu também gostei de trabalhar com ele, da forma como ele se empenha e faz as coisas”, começa por contar o preparador físico.

A relação começou bem e manteve-se à distância, formato que Luís Lopes já utilizava com outros atletas, nomeadamente Frederico Silva, atual número três nacional. Se numa fase inicial esse trabalho era feito com uma prescrição de treino, a quarentena e o confinamento vieram alterar o método de acompanhamento. “A partir do momento em que ele entrou em confinamento, percebi que havia aqui uma forma de trabalharmos através de videochamada e num regime diário que permitia ter um acompanhamento mais próximo do processo, visualizar melhor como é que as coisas estavam a ser feitas e entendi que esse formato poderia funcionar bem”, explica.

Melhoria de resultados depois do confinamento

A verdade é que os resultados são o espelho dos frutos resultantes deste trabalho. Desde a retoma do circuito, em agosto de 2020, Aslan Karatsev atingiu, logo na primeira semana, a sua primeira final no circuito Challenger, em Praga onde, apenas perdeu para Stan Wawrinka, vencedor de três torneios do Grand Slam. Na semana seguinte chegou mesmo ao título, à qual somou uma segunda conquista consecutiva oito dias depois.

Com a sua caminhada no Open da Austrália, Karatsev estreou-se no Top 100 e logo na 42ª posição.

Com a sua caminhada no Open da Austrália, Karatsev estreou-se no Top 100 e logo na 42ª posição. Foto: ATP Tour

Seguiram-se depois participações encorajadoras na qualificação para Roland Garros e em torneios da categoria ATP na reta final de 2020. Há ainda, claro está, as três vitórias na fase de qualificação do Open da Austrália, já em janeiro, que, devido às condicionantes da pandemia, se disputou em Doha, local onde a parceria do russo com o preparador físico português tinha começado.

Apesar do aumento de rendimento de Karatsev, nada fazia antever os resultados obtidos na sua estreia em Majors. Ainda assim, embora reconheça que “não é comum um jogador vir da fase de qualificação e atingir as meias-finais de um Grand Slam”, Luís Lopes não se mostra surpreendido por Karatsev ter conseguido este resultado.

Um atleta com muito potencial”, o tenista de 27 chegou a ser apontado como uma das maiores esperanças do ténis, quando era júnior e sub21, mas “demorou um pouco a dar o salto”. A lesão que teve no joelho numa altura em que estava perto do seu melhor ranking de carreira, já dentro do Top 200, acabou por influenciar a sua ascensão e levou a que tivesse demorado “um pouco mais a maturar”.

A preparação para uma nova fase da carreira

Com um complexão física muito forte”, uma das principais preocupações ao nível da preparação física do tenista russo envolve a prevenção de lesões. No entanto, o foco desta pré-temporada passou por melhorar e potenciar a sua resistência física. “Sabíamos que ao poder entrar em torneios do Grand Slam, poder jogar a outro patamar, com outro nível de exigência, ele teria de ter uma resposta melhor do ponto de vista da resistência”, refere o preparador físico natural de Lisboa.

O “trabalho fantástico” de Karatsev na pré-temporada permitiu colmatar as lacunas que existiam a esse nível e Luís Lopes ficou satisfeito com a sua “boa resposta ao longo deste torneio do Grand Slam, quando teve de jogar um conjunto de jogos, pela primeira vez, à melhor de cinco sets”. Para além disso, a equipa técnica tem procurado que o russo perca algum peso, algo “que o vai ajudar em termos de movimentação no campo e vai permitir que ele seja um pouco mais eficaz ao nível das mudanças de direção, que é um dos aspetos cruciais no Ténis”.

Contudo, este “é um processo que continua ao longo do ano, nos momentos e nas oportunidades que nos vão surgindo em termos de períodos de treino para eles poderem trabalhar”, uma vez que a saída precoce de uma competição dá mais tempo para trabalhar o lado físico dos tenistas. Nesse sentido, importa ter “identificadas as necessidades de cada um deles”. Afinal de contas, o Head Fitness Coach da Federação de Ténis do Qatar trabalha com outros atletas, entre eles o português Frederico Silva, atual número três nacional, um tenista com outra fisionomia e que requer outro tipo de trabalho específico.

O trabalho com Frederico Silva

Atual número três nacional, Frederico Silva também se estreou num quadro principal de um Grand Slam no Open da Austrália.

Atual número três nacional, Frederico Silva também se estreou num quadro principal de um Grand Slam no Open da Austrália. Foto: Federação Portuguesa de Ténis

Ao contrário do russo de 27 anos, o trabalho de Luís Lopes com o atual número 184 do ranking e vencedor de Wimbledon na variante de pares em juniores, em 2012, começou há mais de dez anos, numa altura em que o preparador físico trabalhava no Centro de Alto Rendimento de Ténis, projeto coordenado por João Cunha e Silva. Quando esse projeto terminou, devido a problemas relacionados com a crise financeira pela qual o país passou, a parceria entre ambos continuou num regime particular, mesmo depois da sua mudança para o Qatar, em 2014.

Também a trabalhar à distância por videochamada, Luís Lopes deposita altas esperanças para o português que está prestes a fazer 26 anos. À imagem de Karatsev, começou bem a época e conseguiu também pela primeira vez a qualificação para o quadro principal de um Grand Slam. “Acho que quando esses objetivos, essas etapas, essas metas vão sendo alcançadas, vão trazendo confiança e um acreditar maior nas coisas. Penso que ele está bem lançado para se colocar num patamar diferente daquele que tem tido até aqui”, refere o preparador físico.

No caso de Frederico Silva, um tenista já com um historial de lesões, o principal objetivo durante o confinamento passou por equilibrá-lo do ponto de vista físico, com a realização de “um trabalho específico ao nível do desequilíbrio musculoesquelético”, no sentido de corrigir “dificuldades ao nível da mobilidade e do equilíbrio geral das cadeias de movimento do corpo dele”.

Esse período foi fundamental para se chegar à próxima fase do trabalho, isto é, conseguir que o tenistas das Caldas da Rainha conseguisse fazer uma pré-temporada completa, algo que não foi possível em anos anteriores, momentos em que se viu afetado por problemas físicos. Este ano tal não aconteceu. “Fizemos uma boa pré-temporada. Ele preparou-se bem para este novo ano, treinou sem limitações e arrancou bem para o ano”.

“Ganhar traquejo” em encontros à melhor de cinco sets

Tanto Aslan Karatsev como Frederico Silva são tenistas ainda inexperientes em encontros à melhor de cinco sets e, apesar do trabalho focado na melhoria da resistência física com o russo, Luís Lopes considera que o “treino não consegue reproduzir, por mais que se queira, todas as vivências que um jogador tem a jogar à melhor de cinco sets. Há que passar por essa experiência, há que ganhar traquejo a esse nível”.

No caso do tenista de 27 anos, natural de Vladikavkaz, jogou pela primeira vez um quinto set e acabou por vencer. O preparador físico destaca o seu comportamento muito positivo ao longo de um ciclo de cinco encontros a jogar dia sim e dia não. Apesar das dificuldades que sentiu em alguns momentos, “percebeu que muitas vezes essas dificuldades são também superadas com uma motivação e uma força mental que ele acabou por encontrar”.

No encontro dos oitavos de final, frente a Félix Augier-Alliasime, recuperou de uma desvantagens de dois sets a zero e “acabou por se aguentar, por se manter presente”. Já na partida com Dimitrov perdeu o primeiro set, mas inverteu o rumo dos acontecimentos.

Para Luís Lopes, “são dois atletas que, nesta altura, chegam a estes patamares com uma capacidade física e mental – que acho que não se podem dissociar -, que lhes permite olhar para este tipo de desafios com confiança para poderem competir, porque não estão num patamar diferente dos melhores”.

Mesmo assim, o preparador físico explica que o trabalho realizado ao longo do torneio não difere entre encontros de Grand Slam e de outros níveis. Depois dos jogos e em dias livres, o foco passa pela recuperação física, que inclui uma sessão de ténis de uma hora, bem como “muito trabalho de mobilidade, muito trabalho de flexibilidade, massagem, fisioterapia, banhos de gelo, banhos de contraste”.

Em dia de jogo, o trabalho começa com um aquecimento físico no ginásio onde se fazem “circuitos preventivos”. Um dos objetivos durante a competição passa por “fazer com que o corpo deles fique sempre o menos assimétrico possível. O jogo potencia desequilíbrios e assimetrias e nós procuramos nesses momentos de aquecimento implementar alguns circuitos de exercícios preventivos com o objetivo de os manter equilibrados o mais possível”.

Ainda antes de começar o encontro, há ainda um trabalho de cerca de 20 minutos com foco na “ativação, exercício dinâmicos, de velocidade, de jogo de pés, para que consiga entrar na competição com o ritmo desejado”.

Os desafios do acompanhamento à distância

Devido aos encargos financeiros que ter um preparador físico a viajar de forma permanente encarreta nos tenistas, esse acompanhamento presencial acaba por ser apenas possível para jogadores com determinado ranking e que, devido a esses resultados, conseguem um prize-money superior, enquanto os restantes privilegiam a presença do treinador.

Apesar da distância, “o treino por videochamada permite-nos colmatar o desconectar completo se o atleta estiver entregue a si próprio”. Através deste método, Luís Lopes considera que é possível, para além “do suporte específico ao nível da preparação física”, oferecer “uma ajuda que vai também para o lado mental, motivacional e humano” do tenista, ao permitir mais do que seria possível com um simples “conjunto de exercícios prescritos para eles fazerem por si próprios”.

Ainda assim, o preparador físico reconhece que esta metodologia “não substitui a presença, não substitui o toque, não substitui o aperto de mão, não substitui o podermos visualizar a realização do exercício de diferentes ângulos”. A comunicação passa a ter de ser bastante eficaz, porque é necessário explicar por palavras o que se poderia demonstrar presencialmente e o que se pode “corrigir facilmente com um toque”.

“Há sempre uma fase inicial de aprendizagem. Há sempre uma fase inicial de adaptação a este modo de trabalho, mas depois as coisas acabam por fluir, porque o entendimento vai-se criando e acaba por ser, do meu ponto de vista, uma forma bastante eficaz de colmatar o facto de não poder estar presente”, explica Luís Lopes.

O preparador físico teve oportunidade de estar com Frederico Silva na qualificação para o Open da Austrália, disputada em Doha, no Qatar.

O preparador físico teve oportunidade de estar com Frederico Silva na qualificação para o Open da Austrália, disputada em Doha, no Qatar. Foto: D.R.

No Qatar desde 2014, o preparador físico prepara agora uma mudança de ares, como confidenciou ao JPN: “Vou passar a viver em Amsterdão, na Holanda, e vou-me dedicar mais ao acompanhamento destes atletas de uma forma à distância quando não for possível estar presente, e não for tão necessário, mas também temos previsto fazer um acompanhamento mais próximo quer do Frederico [Silva], quer do Aslan [Karatsev]”.

Com esta alteração de base, Luís Lopes espera acompanhar de perto os seus atletas em momentos importantes da época, como a pré-temporada ou a preparação para uma mudança de piso – a transição para a terra batida, por exemplo.

“Ao longo do ano, temos a pré-temporada, mas depois temos momentos em que os atletas param de competir por duas semanas, ou dez dias, e se focam em preparar para um determinado circuito de torneios. Aí também é onde o preparador físico acaba por ter um papel importante e eu espero daqui para a frente poder estar presencialmente com eles também”.

Artigo editado por Filipa Silva