Esta quinta-feira passam duas décadas desde que a ponte Hintze Ribeiro colapsou e ceifou 59 vidas, em Castelo de Paiva. Sandra Sá Couto, Francisco Sena Santos, Manuel Roberto, Emanuel Damas e Daniela Santiago ajudam-nos a recordar esse momento "impensável" e o que o jornalismo português retirou dele.

“Senhor Presidente, ajude-nos!”

Foi a voz do homem que fez esta exclamação que voltou a ecoar na mente de Sandra Sá Couto, jornalista da RTP, quando, há alguns dias, regressou a Castelo de Paiva para uma visita técnica. Um pedido de ajuda entre muitos. Na noite de 4 de março de 2001, a ponte Hintze Ribeiro colapsou, levando consigo 59 pessoas, e, naquele concelho, já nada foi o mesmo – pelo menos aos olhos dos jornalistas que contaram a história.

Passaram 20 anos, mas Sandra Sá Couto ainda recorda o momento em que soube da tragédia, através de uma chamada do marido, repórter de imagem, que estava a caminho de Castelo de Paiva. Não fez caso da situação: “achava que, se caiu uma ponte, teria sido uma daquelas pontes romanas antigas da zona”. Então, deixou-se adormecer, para acordar, na manhã seguinte, sem que ele tivesse regressado. Ligou a televisão e, em direto, lá estava a ponte: “era um dia completamente enevoado, portanto, via-se pouca coisa. Mas vi o pilar da ponte. E achei que era inacreditável”.

“Lembro-me de pegar no meu filho, arranjar-me, pô-lo no carro, vir trazê-lo aos meus pais, ao Porto, e fui para lá. E começou depois uma aventura de reportagem que durou várias semanas. Foi a cobertura da tragédia”, conta ao JPN.

À chegada, a jornalista da RTP recorda a sensação de “estupefação” que a percorreu, de se perguntar “como é que uma coisa daquelas pode acontecer no nosso país”. Mas aconteceu. E Manuel Roberto, editor de fotografia do “Público” já lá estava, exatamente com a mesma dúvida.

Uma viagem que “demorou séculos”

Na noite de domingo, o fotojornalista estava de folga quando, na rádio, ouviu o que havia acontecido. A reação foi imediata: “a ouvir aquilo, fiquei completamente de rastos. (…) É o momento em que um profissional, a ouvir uma notícia destas, mesmo estando de folga, não pode deixar de fazer esse trabalho. Então, liguei para o jornal e ofereci-me para arrancar de imediato para Castelo de Paiva”, relata ao JPN. Manuel Roberto partiu, juntamente com um colega, numa viagem que “demorou séculos”, ao longo de uma “estrada complicadíssima” que foi percorrida num silêncio quase total, enquanto ambos imaginavam as 59 vítimas, num autocarro que jazia no fundo do rio.

Manuel Roberto chegou ainda durante a noite e deparou-se com um cenário “aterrador e calmo ao mesmo tempo”, ainda mais silencioso do que a viagem. “Estavam lá alguns bombeiros e permanecemos a noite toda ali, acordados. Ao amanhecer, com a neblina, começámos a ver a dimensão daquela tragédia. Os destroços da ponte, era uma coisa horrível! Nunca mais me esquecerei”, afirma.

Ainda numa altura em que as fotografias eram tiradas com uma câmara analógica, a sua rotina durante a semana seguinte consistia em viagens entre Castelo de Paiva e a redação, onde revelava os filmes para publicação no jornal em papel. Cada ida, alternada entre colegas, era repleta de “uma grande ânsia”: “íamos lá na expectativa de que os corpos fossem resgatados, pelo menos, para chegarem aos familiares. Porque não havia esperança nenhuma, era um autocarro no fundo do rio! Um rio silencioso, calmo, como se nada tivesse acontecido…”

“Passei a vida a treinar-me para isso… Afinal, cheguei ali e não conseguia”

É provável que, em algum momento, Manuel Roberto se tenha cruzado com Francisco Sena Santos, na altura repórter e editor da Antena 1, que soube do acontecimento graças ao hábito de dormir ao som da rádio e da televisão. Nessa noite, o sono durou apenas 20 minutos e foi interrompido pela televisão a expor o número de vítimas dentro do autocarro. “Acordei e nunca mais parei”, recorda, em entrevista ao JPN.

Sena Santos partiu de madrugada, num trajeto que diz ser “indescritível”, não só graças à dificuldade de acesso a Castelo de Paiva, mas também ao “peso da angústia” de não saber o que iria encontrar quando lá chegasse. Só tinha uma certeza: a de querer chegar e começar a contar a história. Mas não foi assim no imediato.

Às sete horas da manhã de segunda-feira, viu pela primeira vez “o pilar, ao qual estava amarrada, ainda tombada, a parte que tinha caído do tabuleiro da ponte”, e a impressionante “escassez de pessoas”.

“Lembro-me que estava tomado pelos arrepios. E os arrepios não eram do frio, eram da aflição do que estava ali a ver. (…) Eu imaginava que era chegar lá e começar. Passei a vida a treinar-me para isso, para chegar a um sítio e poder começar a descrever aquilo que estava a ver. Afinal, cheguei ali e não conseguia. (…) Olhava-se para aquele rio e ficava-se bloqueado a imaginar o que lá estava dentro”, relata o também professor da Escola Superior de Comunicação Social.

“Sem uma peça alternativa de roupa”, Francisco Sena Santos passou os dias seguintes em Entre-os-Rios e as noites em Cinfães, onde conseguiu uma estadia. A rotina baseava-se em “estar ali, no lugar”, à espera de uma notícia – algo que mudou ao fim de dois ou três dias, quando começou a visitar as restantes freguesias: “marcou-me muito uma ida à freguesia de Raiva. Várias pessoas de lá iam no autocarro e aconteceu-me uma coisa, que foi sentir a necessidade de fechar o microfone e não violar a intimidade daquelas pessoas.”

À direita, Francisco Sena Santos em Castelo de Paiva, para a Antena 1. Em primeiro plano, António Guterres, à altura, primeiro-ministro de Portugal. Manuel Roberto/Público/D.R.

O momento mais difícil “enquanto profissional, e Paivense, que orgulhosamente sou”

Na altura, 99.5 era a frequência sintonizada por “dezenas de jornalistas” que estavam a fazer a cobertura do acontecimento. Na rádio, a voz de Emanuel Damas, atual diretor de informação da Paivense FM, era o barulho de fundo.

O jornalista, também ele natural de Castelo de Paiva, conta ao JPN que chegou ao local da queda ainda “na escuridão total, sem farol que pudesse nortear, informar, de certo modo, tranquilizar”. Recorda as “pessoas agarradas aos ferros retorcidos que restavam do colapso da ponte, ajoelhadas, em total desespero” e o facto de ter sido abordado por algumas delas.

“É um momento gravado na memória como dos mais difíceis que vivenciei enquanto profissional, e Paivense, genuíno, que orgulhosamente sou”, admite. Difícil foi também a não-rotina “degradante” que se estabeleceu nas semanas seguintes, em direto durante “horas e horas junto da margem do rio” – mais do que “qualquer outra estação local, regional ou nacional” – sem qualquer tipo de apoio.

Emanuel Damas conhecia, aliás, várias vítimas, entre elas um colaborador da rádio, seu amigo, o que tornou gerir o distanciamento numa tarefa difícil. “Apesar da minha natureza algo impulsiva, tive de tentar ser imperturbável”, afiança.

A verdade é que todos os jornalistas questionados pelo JPN são da opinião de que, naquele cenário, foi impossível ficar indiferente. Ainda assim, Sandra Sá Couto afirma que “uma coisa é o que nós sentimos, outra é o que temos de contar” – mesmo que não haja forma de contar a história “sem emoção”.

“O nosso trabalho é manter o distanciamento possível para podermos contar a história de uma maneira mais factual. Eu não preciso de ser sensacionalista para ter alguma emoção na história que estou a contar”, conclui.

Francisco Sena Santos partilha da mesma opinião: “não é possível ficar indiferente num lugar onde o sofrimento está desenfreado, à solta“. O jornalista e cronista radiofónico admite ao JPN que, em certos momentos, sentia “que devia estar ali não o tipo que é repórter, jornalista, mas a pessoa, tanto quanto possível, a dar o conforto que podia dar”.

Foi exatamente este sentimento de vazio que Manuel Roberto tentou mostrar com a fotografia que seria a primeira capa do “Público” quando o jornal noticiou a tragédia. Cada clique no botão da câmara era feito “pelo coração e pelas emoções”.

“Mesmo na noite em que nós lá chegámos, tive a sensação de estar ali, não como profissional, mas à espera de um familiar, como se um familiar meu estivesse lá no fundo do rio. E é um bocado essa sensação que as minhas fotografias transmitem. Se é algo inconsciente? Talvez, mas era exatamente o que eu sentia na altura”, confessa.

Sandrá Sá Couto, repórter da RTP, em direto de Castelo de Paiva. Sandra Sá Couto

A linha ténue entre “reconforto” e sensacionalismo

A verdade é que a cobertura jornalística da queda da ponte Hintze Ribeiro, em Castelo de Paiva, estendeu-se pelas semanas seguintes à tragédia, e as opções editoriais dos órgãos de comunicação social, principalmente, dos canais de televisão, estiveram sob um elevado escrutínio da opinião pública.

Um dos aspetos mais referidos pelos críticos era o elevado número de horas em direto de Castelo de Paiva. A jornalista da RTP, Sandra Sá Couto, esteve em direto do local durante vários dias e conta ao JPN que esta decisão dos órgãos de comunicação foi influenciada pela esperança de que a recuperação dos veículos e dos corpos estaria para breve.

“Vivemos todos na expectativa de que alguma coisa pudesse acontecer nos próximos dez minutos. E, se não eram dez minutos, era uma hora. Se não era uma hora, eram cinco. Se não eram cinco horas, eram dez. Se não era esta semana, era na seguinte. Na expectativa de que alguma coisa pudesse acontecer, mantivemo-nos no ar infinitas horas”, afirma.

A grande dificuldade que a repórter da RTP sentiu foi a de “alimentar horas e horas de emissão, dizendo as palavras certas – que nem sempre saem de improviso – e respeitando, também, a dor e o espaço dos familiares que lá estavam”.

Na altura, Francisco Sena Santos optou por “contar como é a vida de Castelo de Paiva”, ao invés de ficar “amarrado, em loop, a contar a mesma coisa”. O repórter vai mais longe ao afirmar a necessidade de “não massacrar o ouvinte com informação que é ganga, que é inútil”.

Sena Santos considera que as televisões “perceberam que aquilo era um espetáculo”, com a subida das audiências. Esta tragédia marcou o arranque da “era da não-notícia”, com “centenas de milhares de perguntas inúteis” e uma “câmara imóvel”.

A cobertura noticiosa que as televisões fizeram na altura em que a ponte de Entre-os-Rios colapsou foi também o tema da tese de mestrado de Daniela Santiago, atual correspondente da RTP em Espanha. O trabalho aborda o “reconforto” que a presença da televisão pode ter dado às famílias das vítimas – que vão desde o facto de os lesados se sentirem acompanhados à compensação pelos danos materiais, que aconteceu de forma mais rápida.

Daniela Santiago faz uma separação entre este reconforto  e o sensacionalismo, que reconhece também ter existido. Um exemplo, dado em conversa com o JPN, é a história de um repórter de imagem da TVI entrevistado para a sua tese, que “confessa que houve uma vez em que deixou a câmara à chuva para não conseguir gravar um funeral”.

A jornalista não tem dúvidas de que “foram cometidos erros atrozes em termos de jornalismo”, mas lembra que “era uma situação nova”. Apesar de, na altura, não ter estado no local da tragédia, Daniela Santiago já trabalhou em cenários de catástrofe e sublinha: “são situações ameaçadoras que abalam também a própria vida do jornalista”.

Quando se fala em abordar familiares das vítimas, Francisco Sena Santos alerta para a importância da “sensibilidade do repórter”, no sentido de evitar o erro “clássico”: perguntar ao entrevistado “como se sente”.

“Antes de apontar um microfone, é preciso analisar o que está ali e saber se este microfone é um agente de violação ou não. Se eu tenho o direito de me aproximar ou não”, aponta Sena Santos.

Ainda assim, acrescenta Daniela Santiago, há condicionantes que operam negativamente sobre a prática: “um repórter, quando está há horas no terreno debaixo de chuva, muitas vezes sem comer, a receber indicações, estica o direto, porque ainda não temos a peça pronta ou porque temos de o manter… Há uma série de condicionantes que obrigam, se calhar, a abordar qualquer pessoa que está a passar”.

Sandra Sá Couto está certa de que “teria muitas coisas para emendar”, se visse o seu trabalho de há 20 anos. Já Francisco Sena Santos confessa ter “abusado de falar” e de ter contado “vezes sem conta a mesma coisa”. Castelo de Paiva ensinou muito ao jornalismo português, e a maior lição reside na arte da contenção, de perceber quando contar uma história deixa de fazer sentido.

Entretanto, já lá foram 20 anos, mas a voz do homem que pedia ajuda continua a ecoar na mente de Sandra Sá Couto, juntamente com os rostos de todos os que perderam alguém no dia em que a ponte Hintze Ribeiro cedeu às águas do Douro.

Artigo editado por Filipa Silva