A Associação de Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (AEFLUP) realizou, na noite de sexta-feira, uma palestra dedicada ao papel e contributo do desporto e da atividade física na saúde mental. Com a participação de Miguel Lucas, psicólogo e preparador mental de atletas, e Bernardo Poças, jogador de andebol do Boavista Futebol Clube, ambos reconheceram o impacto positivo do mesmo no bem-estar psicológico dos praticantes, mas alertam que o desporto também tem os seus aspetos negativos.
Numa fase em que a pandemia e o confinamento obrigam a um maior isolamento e uma menor mobilidade, o treinador e formador de treinadores de atletismo, que trabalhou com Carlos Calado, recordista nacional de salto em comprimento e décimo classificado nas olimpíadas de Sydney, em 2000, começou por referir que “quando ficamos privados de movimento, isso afeta o nosso bem-estar emocional”.
Miguel Lucas salientou também que saúde mental não é apenas a ausência de um transtorno psicológico, mas que diz igualmente respeito à capacidade para nos sentirmos motivados, satisfeitos e autorregulados a nível emocional. Ao utilizar o caso de Bernardo Poças como exemplo, o preparador mental destaca que a lesão é algo que abala o atleta, que o “puxa para a negatividade”.
Nesse sentido, aponta que uma ferramenta útil para o bem-estar psicológico é o perspetivar “de um caminho para chegarmos ao ponto que queremos” e ter sempre em mente que o “mau momento é temporário. Não é fixo. Não vai ficar para o resto da vida”. Dessa forma, a atividade física ajuda na medida em que estimula a persistência e a procura de continuar esse percurso até ao objetivo final.
Ainda assim, ao longo da sua carreira ligada ao desporto, Miguel Lucas relata que existem muitos casos de atletas “que recuperam fisicamente das lesões, mas não recuperam emocionalmente”, não tanto ao nível da perda de faculdades, mas sim da perda de conquistas, que por vezes é acompanhado pelo abandono por parte de outros agentes desportivos. É dentro desse âmbito que o treinador de atletismo alerta que “nem sempre o desporto faz bem”.
“O desporto faz bem quando se verificam um conjunto de aquisições e desenvolvimento de habilidades e experiências que possamos considerar positivas. Quando elas são fundamentalmente negativas, aí os atletas veem a sua saúde mental comprometida. É sempre uma faca de dois gumes”, explica. Apesar de estar vendido como “algo que só faz bem”, Miguel Lucas considera que, se tal fosse o caso, os Estados Unidos da América não registavam uma taxa de desistência acima dos 70% nos atletas de competição até aos 14 anos.
Bernardo Poças, ponta de 20 anos da equipa de Andebol do Boavista FC, partilha da mesma opinião e diz acreditar que “o exercício físico faz bem, o desporto não faz”, em particular o desporto de alta competição, que leva o corpo para além dos seus limites naturais. Apesar da tenra idade, o estudante da licenciatura de Gestão de Marketing no Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM) teve um percurso bastante acidentado até à estreia na principal divisão do Andebol nacional esta temporada.
Aos 17 anos, sofreu a primeira rotura de ligamentos no joelho. Depois de seis meses de recuperação, voltou a sofrer a mesma lesão no encontro que marcava o seu regresso à competição. Viria depois a sofrer um acidente de viação que o deixou em estado crítico. Passou dois meses no hospital, partiu a bacia, rompeu os ligamentos do pulso esquerdo – o seu dominante -, partiu o osso escafoide do pulso direito e rompeu ligamentos do outro joelho.
Nesse momento, “tu pensas que não és capaz de viver sequer”, afirmou. O atleta do Boavista destacou a importância do apoio psicológico dos profissionais, da família, dos amigos e namorada para ultrapassar esse período adverso. Como menciona Miguel Lucas, esse apoio é fundamental porque o ser humano precisa “de ventilar, de desabafar”. A simples presença física de alguém, mesmo que não saiba o que fazer para ajudar, “está lá a diluir a nossa dor” e torna-a mais suportável.
No regresso a casa, Bernardo Poças admite que “passou dias a chorar” devido à dor, mas salienta que o carinho nem sempre é a resposta. Deu o exemplo dos seus fisioterapeutas que, mesmo perante as suas lágrimas e dor, recusaram ajudá-lo a calçar-se e obrigaram-no, dessa forma, a encarar o problema, a esforçar-se e a superar-se.
Para Miguel Lucas, “a saúde mental fica debilitada quando nós sucumbimos à dor”, mas alerta que dor e sofrimento são conceitos distintos. “O sofrimento existe quando não conseguimos perspetivar alívio de qualquer forma”, ou seja, quando existe uma redução da vida à dor. No caso do jovem de 20 anos, o psicólogo refere que este encontrou o significado e a esperança na sua procura pelo regresso à competição.
Para além disso, destaca a importância de se perceber que, mesmo nos momentos de sofrimento e dor, “não deixamos de ter a faculdade de conseguir sentir alegria” e é “nesse momento que tem de se fazer luz na nossa cabeça” para superar as dificuldades. Destaca também que devemos saber guiar o nosso raciocínio, ao referir que não se deve fazer perguntas para o futuro cuja resposta não existe, pois “levantam incerteza e pânico na cabeça da pessoa”.
Para o “cidadão comum”, o psicólogo não duvida que uma “boa dose de atividade física” é importante para diminuir os valores negativos associados ao estado de humor. “Quem faz mais atividade física reduz a tensão, tem menos irritabilidade, é menos confuso, é menos depressivo e tem menos fadiga”. No sentido inverso, apresentam níveis mais altos de vigor, que se traduz em maior ânimo, energia e força de vontade.
No entanto, Miguel Lucas realça que é importante atribuir um significado a essa prática desportiva: “Eu devo ir praticar atividade física, ou exercício físico, ou um desporto de lazer, tendo na ideia que, no final de eu praticar aquilo, eu vou-me sentir bem. Aquilo vai ser bom para mim. É uma coisa que eu quero. Não é porque me dizem que faz bem”.
“Para termos uma melhor saúde mental, fundamentada no desporto de lazer, devemos fazer disso um estilo de vida. Se não passar a ser um estilo de vida, passa a ser um sacrifício. Se é um sacrifício, eu aguento-me pouco tempo a fazer sacrifícios e vou desistir. Esse é o problema das taxas de prática de atividade física na população. Tomam aquilo como um sacrifício”, concluiu.
Artigo editado por João Malheiro