Está cumprido um longo desígnio do Vaticano. A 33ª. Viagem Apostólica do Papa Francisco, que teve como palco o Iraque, decorreu entre sexta-feira (5) e esta segunda-feira (8), tendo sido escrita história: pela primeira vez um líder da Igreja Católica visitou um país muçulmano de maioria xiita, naquela que foi a primeira deslocação do Sumo Pontífice ao estrangeiro depois da eclosão da pandemia de Covid-19.

Papa desde 2013, Francisco sempre demonstrou ter o Iraque (e a Síria) no pensamento. Na sua primeira mensagem de Natal, pediu a Deus para “curar as feridas do amado Iraque”, na segunda, que “olhe os nossos irmãos e irmãs do Iraque e da Síria que há tanto tempo sofrem os efeitos do conflito e uma perseguição brutal”. Este período coincidiu com os anos do califado do Daesh e da fuga de cristãos dessa região. 

Agora, passados alguns anos, Papa Francisco vê cumprido o seu desejo de pisar a “Terra de Abraão”, o berço e referência simbólica dos três monoteísmos e de judeus, cristãos e muçulmanos. Esta missão adquiriu uma importância acrescida, tendo em conta a conjuntura que marcou a tentativa sem sucesso de João Paulo II visitar aquele país no início do milénio. O até então Sumo Pontífice estava decidido a fazê-la, no ano de 2000, apesar da oposição dos Estados Unidos da América. Contudo, acabou por ser impedido pelo veto de Saddam Hussein (presidente do Iraque de 16 de julho de 1979 a 9 de abril de 2003) . 

“Não podemos desiludir um povo pela segunda vez”, destacou Francisco na véspera de embarcar numa missão em que se apresentou como “peregrino da paz”, realçando as suas pretensões de solidarizar-se com “uma igreja mártir”. 

Além de um encontro inter-religioso em Ur dos Caldeus, a visita contemplou um encontro em Najaf com o Grande Aiatolá Ali Sistani, a mais alta autoridade religiosa xiita, e ainda encontros nas cidades de Mossul, Qaraqosh e Erbil. No somatório dos três dias, o Papa percorreu 1.445 quilómetros, a maior parte do tempo de avião ou de helicóptero, sobrevoando zonas onde se encontram células clandestinas de grupos de extremistas islâmicos. 

Em conversa com o JPN, D. Manuel Linda, Bispo da Diocese do Porto, afirma que não é possível analisar a religião apenas de forma isolada: “A visita do Papa, embora seja de pastoral, de dimensão religiosa, também se interliga com outros aspetos, aspetos políticos, de reconstrução, militares. O Papa é muito sensível a esta ideia de que já há armas a mais. Não se invista mais em armas. Infelizmente, o Iraque tem sido um laboratório para aplicação de armas”.

Em conformidade com esta afirmação está o Sheik David Munir, líder da Mesquita Islâmica Central de Lisboa. “Visitar o Iraque foi um passo positivo para voltar a falar sobre paz no Médio Oriente. O Médio Oriente é um berço das religiões monoteístas e o papa foi corajoso, como tem sido, e fez essa viagem”, salientou o Sheik, em entrevista concedida ao JPN.

Questionado sobre o aproveitamento das crenças religiosas por parte do poder político ou de grupos armados, D. Manuel Linda é perentório: “Os crentes de todas as religiões, seja do islamismo, cristianismo ou, porventura, outras, aprenderam com a história que de facto há quem os procure instrumentalizar. Estou convencido que neste momento eles terão uma grandeza de alma, uma dimensão de coração, que os leve a não integrar esses setores divisionistas e estarão mais capacitados para dar as mãos e serem mais dialogantes”. 

“Foi historicamente, não só lá [Iraque] mas em praticamente todo o mundo, a tentação da política, a tentação dos governantes: instrumentalizar a dimensão religiosa. Lá não constitui novidade nenhuma. Nós aqui temos, bem pertinho, temos o conflito Irlanda do Norte – Irlanda do Sul. Não é, ao contrário do que podem pensar, um conflito religioso, é um conflito político que se aproveitou da dimensão religiosa”, lembrou o Bispo do Porto. 

Chegada a Bagdad 

Aguardada com grande expectativa no Médio Oriente, a inédita chegada do Papa Francisco a Bagdad foi preparada com pompa e circunstância. Aterrou em solo iraquiano na sexta-feira (5), com o objetivo primordial de estar perto da comunidade cristã do país, brutalmente perseguida pelo grupo jihadista Daesh. 

Conforme planeado, o avião da Alitalia que transportava o Papa, a sua comitiva e um grupo de 75 jornalistas aterrou no Aeroporto Internacional de Bagdad pouco antes das 14 horas locais (11 horas em Portugal continental). O Pontífice foi saudado ao pé da escada do avião pelo primeiro-ministro, Mustafa al Kazemi, e por duas crianças em trajes tradicionais que lhe ofereceram flores. Numa discreta cerimónia de boas-vindas, foram apresentadas as delegações dos dois Estados e tocados os hinos.

Uma mensagem de paz e apelo para a convivência pacífica entre os vários grupos étnicos e religiosos foi o mote do primeiro discurso do Sumo Pontífice em terras iraquianas. “Calem-se as armas! Limite-se a sua difusão, aqui e em toda a parte”, pediu num discurso durante um encontro com as autoridades iraquianas, a sociedade civil e o corpo diplomático, no palácio presidencial em Bagdad.

 “Chega de violências, extremismos, fações, intolerâncias! Dê-se espaço a todos os cidadãos que querem construir juntos este país, no diálogo, no confronto franco e sincero, construtivo”, afirmou Francisco, lamentando a morte, a destruição e as ruínas ainda visíveis causadas pelos “infortúnios das guerras, o flagelo do terrorismo e conflitos sectários muitas vezes baseados num fundamentalismo incapaz de aceitar a convivência pacífica de vários grupos étnicos e religiosos, de ideias e culturas diferentes“.

Paralelamente, o presidente iraquiano, ​​​​​​​Barham Salih, deu as boas vindas ao Papa Francisco, destacando que se trata de um “convidado valioso”. O chefe de estado lamentou ainda a existência de uma “crise de consciência” no Ocidente, reforçando a relevância da coexistência pacífica e da preservação da comunidade cristã presente naquele país há quase 2.000 anos. “O leste não pode ser imaginado sem cristãos”, afirmou.

O encontro histórico

No segundo dia desta viagem ao Iraque, Francisco rumou à cidade sagrada de Najaf, na região sul do país, considerado o terceiro lugar mais sagrado do mundo para os muçulmanos xiitas, para um encontro com o Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, o principal clérigo deste ramo religioso. O encontro afigurou-se como um marco histórico nas relações entre o Vaticano e o Irão. 

Os dois líderes religiosos estiveram juntos cerca de 40 minutos, numa reunião privada, na modesta casa do grande Aiatolá, sem a presença da imprensa. No encontro de cortesia, o líder religioso xiita Ali Al-Sistani expressou ao Papa a sua “preocupação de que os cidadãos cristãos vivam, como todos os iraquianos, em segurança e paz, e com todos os seus direitos constitucionais“, de acordo com um comunicado do gabinete de Al Sistani. 

Foram ainda abordadas questões relativas às “injustiças, assédios económicos e deslocamentos sofridos por muitos povos” da região, “especialmente o povo palestiniano nos territórios ocupados” por Israel, sobre os quais “o papel que os grandes líderes religiosos e espirituais devem desempenhar para conter todas essas tragédias” é crucial.

De Ur dos Caldeus para o mundo 

A agenda do segundo dia de visita prosseguiu com a peregrinação à planície de Ur. Considerado o lugar de Abraão – onde é recordado que as três principais religiões monoteístas (Cristianismo, Judaísmo e Islamismo) têm a mesma origem, foi aqui que, de acordo com a Bíblia, Abraão vivia quando ouviu o apelo divino para que viajasse para o ocidente em busca da Terra Prometida e desse início ao povo de Deus. 

Foi a etapa mais espiritual da viagem do Sumo Pontífice em território iraquiano e um momento de exaltação para os fiéis que acompanharam atentamente todas as celebrações. Para os devotos, visitar os locais sagrados é sempre uma oportunidade de materializar e reviver o que se lê nos livros Sagrados. D. Manuel Linda ainda espera que as condições de segurança melhorem para que existam peregrinações regulares a um sítio tão emblemático como Ur.

O dia ficou, ainda, marcado pela primeira missa pública de rito oriental no Iraque perante uma assembleia escassa devido à pandemia de Covid-19, com cerca de 180 fiéis e onde esteve o Presidente iraquiano curdo, Barham Salih. Esta celebração terminou o segundo dia de visita de Francisco ao território iraquiano. Com esta missa papal sem precedentes, que teve como palco a Igreja de São José, bem no coração de Bagdade, o chefe da igreja católica, de 84 anos, celebrou a sua primeira missa de rito oriental que foi falada em árabe, em aramaico, curdo e turcomano, bem como o italiano.

Sofrimento e pomba da paz

O terceiro dia de visita prometia mensagens fortes contra os ataques levados a cabo pelo Daesh aliadas à memória do sofrimento dos cristãos na região. De manhã, o Papa saiu de Erbil rumo a Mossul, antiga base do Daesh. A cidade não consegue esconder as feridas da guerra já que na mesma praça, Hosh al-Bieaa, persistem as ruínas de quatro igrejas, destruídas durante a sua ocupação do Estado islâmico, entre 2014 e 2017.

Junto às igrejas sírio-católica, arménio-ortodoxa, sírio-ortodoxa e caldeia, a partir de um altar construído no meio das ruínas, o Papa Francisco lamentou o exílio dos cristãos orientais e dedicou uma oração às vítimas da guerra. “Como é cruel que este país, berço de civilizações, tenha sido atingido por uma tormenta tão desumana, com antigos lugares de culto destruídos e milhares e milhares de pessoas – muçulmanas, cristãs, yazidis e outras – deslocadas à força ou mortas”, constatou. 

Durante a cerimónia, foram relatadas algumas das atrocidades e relembradas as perdas de vidas humanas. O Papa lançou uma pomba branca como sinal de paz. Francisco mostrou-se assertivo e convicto ao falar de esperança: “Hoje, apesar de tudo, reafirmamos a nossa convicção de que a fraternidade é mais forte que o fratricídio, que a esperança é mais forte que a morte, que a paz é mais forte que a guerra”.

A mensagem orientada para a reconstrução da fé foi reforçada pelo líder católico, a 60 quilómetros de Mossul, em Qaraqosh (Bakhida): “Mesmo no meio das devastações do terrorismo e da guerra podemos, com os olhos da fé, ver o triunfo da vida sobre a morte”.

No encontro com a comunidade cristã na igreja da Imaculada Conceição, onde rezou o Angelus, o Papa enalteceu a diversidade de culturas, “a vossa presença aqui lembra que a beleza não é monocromática, mas resplandece pela variedade e as diferenças​”, e encorajou os fiéis a não esquecer as suas origens e a sua identidade.

O dia terminou com uma missa no estádio de futebol Franso Hariri, em Erbil, presidida em latim pelo Papa Francisco. Dez mil pessoas, metade da lotação devido à pandemia, assistiram à chegada do carro do líder do Vaticano, o “papamóvel”, que só foi utilizado nesta ocasião durante a viagem ao Iraque.

Na hora da despedida da capital da região autónoma do Curdistão iraquiano, e a quarta maior cidade do país, com cerca de 2 milhões de habitantes, D. Bashar Matti Warda, o arcebispo de Ebril, enalteceu a “coragem” demonstrada pelo sumo pontífice, insistindo na visita que lhe foi desaconselhada a “um conturbado país, uma terra tão cheia de violência, de intermináveis disputas, de deslocamentos e sofrimento para o povo”. 

“Agradecemos a mensagem de paz que trouxe para Erbil e para todo o Iraque. A sua poderosa mensagem de fraternidade e perdão é agora um presente para todo o povo do Iraque, deixando-nos, a cada um de nós neste país, com a responsabilidade permanente de dar vida continuamente à sua mensagem na nossa vida diária a partir de hoje”, refletiu o arcebispo.

A viagem de regresso a Roma ficou marcada pelos elogios do líder da Igreja Católica ao líder xiita: “Senti o dever de fazer esta peregrinação de fé e de penitência, e de ir encontrar um grande, um homem sábio, um homem de Deus: só escutando-o é que se pode perceber isto”. Ainda durante a viagem, em declarações aos jornalistas, Francisco revelou que o acordo assinado com o Grande Imã da Al-Azhar, a maior instituição de ensino do islão sunita, o xeque Ahmed el-Tayeb, em 2019, já tinha sido preparado e refletido, em conjunto, nos seis meses que antecederam essa visita aos Emirados Árabes Unidos.

Por fim, enquanto justificava a decisão da deslocação ao Iraque, – insistência por parte de embaixadoras e do presidente do Iraque e por ter lido o livro “A última garota” de Nadia Mourad, no qual descobriu a história dos Yazidis – surgiu um comentário sobre as viagens planeadas para o futuro: “Não sei se as viagens se tornarão realidade ou não, só confesso que nesta viagem fiquei muito mais cansado do que nas outras. Os 84 anos não vêm sozinhos, é uma consequência”.

Não só a idade do líder da Igreja Católica ou o perigo para a sua vida – foram mobilizados 10 mil soldados iraquianos para proteger Francisco – contaram para o risco atribuído a este momento histórico. Apesar do líder religioso ter recebido as duas doses da vacina da BioNTech/Pfizer, a população iraquiana está longe de estar vacinada, pelo que se temia a propagação do coronavírus durante os ajuntamentos para ver o Papa. Não raras vezes, os iraquianos juntaram-se ao longo das estradas percorridas pelo argentino, assim como foram também realizadas cerimónias em espaços interiores com várias pessoas – a chegada ao aeroporto e a comissão de boas vindas no Palácio presidencial são disso exemplo.

O uso da máscara por parte da comitiva do Vaticano foi cumprido, embora o próprio Papa não a tenha colocado em algumas situações. O destaque vai para o encontro com o Aiatolá que, para além dos dois líderes religiosos não fazerem uso da máscara, fica marcado pelo contacto físico entre os dois.

Artigo editado por João Malheiro