Milhares de agricultores indianos têm protestado nos últimos meses contra medidas de desregulamentação do setor. O dia 6 de março marcou os 100 dias desde que estes decidiram acampar nos arredores de Nova Deli.

Desde junho que a maior democracia do mundo tem sido assolada por protestos do seu setor agrícola contra medidas pouco populares impostas pelo governo de Narendra Modi. Começaram pequenos no estado de Punjab, no norte da Índia, e desde então chegaram à periferia da capital.

No último sábado, 6 de março, vários camiões e tratores rumaram a uma das principais autoestradas da Índia, Kundli-Manesar-Palwal, para bloquear o acesso a Nova Deli por cinco horas. Assinalava-se o centésimo dia em que zonas periféricas da cidade, como Singhu e Gazhipur, foram transformadas em comunidades de agricultores unidos pela sua contestação às novas reformas agrícolas.

A revolta dos cem dias teve início a 26 de novembro do ano passado, quando uma greve geral foi convocada. Aderiram cerca de 250 milhões de pessoas, um recorde sem paralelo no mundo inteiro. Já os protestos em si, têm reunido consistentemente dezenas de milhares de pessoas, superando, por vezes, a marca das cem mil.

Os manifestantes contestam três leis, aprovadas pelo Parlamento Indiano a 20 de setembro, que antecipam a abertura da agricultura do país aos privados. Sob as novas medidas, os privados poderiam passar a negociar diretamente com os agricultores, sendo que atualmente o setor baseia-se num sistema de intermediários apoiado pelo Estado.

A inabalável resistência dos agricultores

Os protestos começaram nos estados de Punjab e de Haryana, dois estados onde o setor agrícola tem uma grande predominância e onde os mercados controlados pelo Estado adquirem um maior relevo e nível de desenvolvimento. É lá que o Estado indiano adquire grande parte do trigo e do arroz consumidos pelo país todo.

Mulheres cozinham num dos acampamentos formados para os protestos. Foto: Harvinder Chandigarh/Wikimedia CommonsCreative Commons

Rapidamente, os protestos foram-se expandindo e aproximaram-se da capital. A 26 de novembro, dezenas de milhares de agricultores mudaram-se para três zonas periféricas da cidade de Nova Deli, transformando-as em sítios de grandes acampamentos, com cozinhas comuns, camiões transformados em quartos e tendas médicas com voluntários para ajudar os feridos e doentes.

Apesar da resiliência e do esforço de rotação de protestantes, segundo a Força Conjunta de Agricultores, “Samyutka Kisan Morcha” (SKM), uma das principais organizações por detrás dos protestos, até ao dia 6 já tinham morrido pelo menos 248 pessoas nos acampamentos improvisados. Problemas de saúde e suicídio encontram-se entre as principais causas.

Embora marcados, em geral, pelo princípio da não-violência, os protestos atingiram um ponto de maior tensão a 26 de janeiro, Dia da República, quando tratores em protesto abandonaram a rota prevista e furaram as barreiras policiais. Mais de 80 pessoas acabaram feridas e uma chegou mesmo a morrer, Navreet Singh, um agricultor de 25 anos.

O Forte Vermelho, onde o primeiro-ministro indiano tem por hábito fazer um discurso anual, foi alvo de tentativas de invasão. Na sequência dos confrontos, o acesso à internet foi bloqueado em algumas partes da capital e fecharam-se algumas estações de metro. A morte resultante destes confrontos – a polícia garante ter sido fruto de um acidente, a família assegura que o jovem agricultor foi abatido pela polícia – levou mesmo, segundo a BBC, à abertura de processos criminais contra oito jornalistas, por, na visão das autoridades, reportarem “incorretamente” o incidente.

De acordo com a polícia municipal, em finais de janeiro eram cerca de 15 mil os tratores concentrados perto de Nova Deli. No Dia da República, contudo, os sindicatos dos agricultores estimaram a presença de 200 mil tratores.

Reivindicações falhadas

Na Índia, 59% da mão de obra trabalha na agricultura. Neste universo, 82% são pequenos agricultores, contribuindo para 23% do PIB. Ignorá-los nunca foi uma opção. Assim, foram já mais de dez as reuniões falhadas entre sindicatos dos agricultores e o governo, representado por um painel de oito membros. O governo mostra-se disposto a cedências, mas os manifestantes querem a revogação total das leis que criticam. O principal ponto de divergência está nos preços mínimos de apoio assegurados pelo governo.

Entretanto, o Supremo Tribunal ordenou a suspensão das leis e a formação de um comité de mediação formado por quatro membros, de forma a acalmar os ânimos. Em resposta, a Força Conjunta de Agricultores já recusou participar em qualquer mediação de tribunais por suspeitar que o comité formado tenda a assumir posições próximas do governo de Modi. Do lado do governo, a resposta é também negativa.

Existe uma fratura clara entre o governo e a oposição. Os aliados do primeiro-ministro, Narendra Modi, criticam os protestantes, que acusam mesmo de “antinacionais”. Já vários líderes e representantes da oposição afirmam que as novas medidas para o setor primário são contra os próprios agricultores.

Governo alvo de acusações de autoritarismo

Do lado da oposição, que se tem mostrado solidária com os protestantes, têm vindo acusações de um crescente autoritarismo por parte das autoridades governamentais, com a detenção de opositores. Um dos opositores de maior destaque é o chefe de governo da cidade de Nova Deli, Arvind Kejriwal. Este acusa o governo de o ter posto em prisão domiciliária, impedindo qualquer pessoa de entrar em sua casa e ele de sair.

Agricultor indiano nos protestos contra as medidas do governo de Modi. Foto: Randeep Maddoke/Wikimedia Commons

Outros opositores como Akhilesh Yadav e outros líderes do seu partido, o social-democrata Samajwadi, foram detidos em dezembro. Contudo, não são só políticos os visados pelo governo indiano. O líder do Exército Bhim, organização de defesa dos direitos da casta mais baixa da sociedade indiana, os Dalit, foi, entretanto, também detido tal como a ativista climática Disha Ravi.

A repressão e abuso de poder de que o governo de Modi é acusado expandem-se para além das detenções. Este tem feito pressão para a suspensão de contas críticas no Twitter e as próprias circunstâncias da aprovação das três leis agrícolas encontram-se envoltas em críticas. A sua passagem pelo Parlamento deu-se com as atenções viradas para a pandemia da Covid-19 e sem a discussão passar por qualquer comité parlamentar.

Para além do crescente autoritarismo de que é acusado, o Estado indiano viu-se envolto em polémica quando o Juiz-Chefe da Índia apelou às mulheres e aos idosos em protesto para abandonarem as manifestações, de modo a protegerem-se do inverno. Estes não responderam ao apelo. Segundo a Oxfam India, 80% das mulheres ativas trabalha na agricultura, mas só 13% das terras são controladas por estas. Dentro da mão de obra agrícola, 33% são mulheres.

O antes dos protestos

As três medidas legislativas que estiveram na origem destes protestos foram aprovadas a 20 de setembro pelo Parlamento e receberam o aval do Presidente Ram Nath Kovind dia 27. Estas concedem aos privados, como grandes empresas e cadeias de supermercados, o direito de negociar diretamente com os agricultores, facilitando aos grandes a compra de produtos e terrenos dos mais pequenos. Foi ainda banida a queima da palha resultante da colheita de grãos, devido à poluição.

Além disso, a nova lei abre a possibilidade de os privados acumularem produtos essenciais para venda posterior, algo reservado a entidades autorizadas pelo Estado, até agora. São ainda estabelecidas regras para contratos de compra e venda, permitindo adaptar a produção a cada comprador.

Enquanto que o governo considera estas mudanças legislativas uma forma de aumentar a produtividade e os rendimentos dos agricultores, a grande maioria destes considera que os pequenos produtores vão ficar sob ameaça dos grandes. A desconfiança em relação a políticas de desregulamentação do setor é grande, sendo que atualmente muitos agricultores vendem os seus produtos em mercados com preços controlados pelo Estado, os chamados “mandis”.

Mercado em Chandigarh, Norte da Índia. Foto: Sarbjit Bahga/Wikimedia Commons

Porém, uma proporção significativa de agricultores vende já fora destes mercados, muitas vezes por produzir pouco. Assim, ocorrem muitas vendas a negociantes locais. As próprias leisvariam de estado para estado. Dos 29 estados e oito territórios, 18 permitem mercados privados, 19 permitem vendas diretas a privados e outros 12 não obrigam os agricultores a vender nos “mandis”, que são aproximadamente sete mil pelo país todo.

Os Estados de Punjab e Haryana, onde os protestos começaram, são regiões agrícolas do norte da Índia em que a maioria dos agricultores ainda vende nos mercados controlados por comités de agricultores, Comité do Mercado de Produtos Agrícolas, e negociantes, os intermediários. Nestes mercados, são assegurados pelo Estado preços mínimos relativamente a vários produtos, o que assegura a estabilidade do setor.

As novas medidas expandiriam a venda direta a todos. O receio é que os agricultores se sintam atraídos por esse mecanismo e os “mandis” saiam enfraquecidos, apesar de o governo assegurar a sua sobrevivência. Muitos temem que os grandes produtores desçam os preços e contribuam para a redução dos rendimentos já instáveis dos agricultores, que se encontravam nas 20 mil rúpias (o equivalente a 229 euros) em 2016, de acordo com uma pesquisa económica citada pela BBC.

A Revolução Verde e os problemas que atingem a agricultura indiana

O atual sistema foi implementado nos anos 60 com a denominada Revolução Verde, tendo começado a sua liberalização a partir dos anos 90. Este período de reformas agrícolas veio instituir o sistema que ainda garante um preço mínimo para várias produções, mas não foi essa a única mudança significativa. Novas variedades de arroz e trigo, mais caras e de melhor qualidade, foram introduzidas para aumentar a produção e diminuir a fome, prevalecente na altura.

Deu-se lugar também a uma forte modernização das práticas de cultivo, com a adoção da irrigação e a popularização de fertilizantes e pesticidas. O seu uso indevido tem levado, contudo, ao crescimento da terra infértil, inadequada para produção. Com piores solos, estes têm vindo a sofrer uma maior exploração de forma a encontrar a água necessária ao cultivo das diferentes plantações. Tal tem-se traduzido num aumento de despesas que, por vezes, leva mesmo a dívidas dos agricultores.

Vários outros têm sido os problemas resultantes destas reformas. A aposta em novas plantações levou à diminuição de produções indígenas, causando problemas de diversidade. Quanto à fome, apesar de ter registado uma quebra considerável, estima-se que atualmente um quarto da população malnutrida do mundo vive na Índia, de acordo com o Global Nutrition Report de 2018. Não obstante esses problemas, o país foi capaz de se tornar autossuficiente em alimentos e, ao passo que antes importava exclusivamente, é agora exportador.

Idoso sentado nos protestos dos agricultores. Foto: Randeep Maddoke/Wikimedia CommonsCreative Commons

Mais recentemente, os agricultores têm sofrido com uma falta de modernização do setor e uma produtividade em declínio. Os rendimentos vão diminuindo e muitos dos lucros acabam por ficar nas mãos dos intermediários. As novas leis, que não tiveram a colaboração dos agricultores, podem piorar a situação, de acordo com estes.

As já débeis condições económicas e sociais de muitos agricultores têm contribuído para um outro problema, o número de suicídios. Dados do Serviço Nacional de Registos Criminais apontam que mais de dez mil trabalhadores envolvidos no setor agrícola se suicidaram em 2019, 7,4% do total. Destes, quase seis mil eram agricultores.

Da Índia para o mundo

Os protestos dos agricultores indianos já passaram as fronteiras do país do sul da Ásia. No Canadá e no Reino Unido, onde a diáspora indiana é bastante significativa, alguns protestos de solidariedade têm sido organizados. Da parte das autoridades políticas dos dois países, também há vozes a manifestar-se sobre os acontecimentos mais recentes.

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, mostrou preocupação em relação às manifestações e assegurou que o Canadá “sempre estará lá para defender os direitos de protesto pacífico”, a propósito de um evento de comemoração dos 551 anos desde o nascimento do fundador do Sikhismo, Guru Nanak. Já o Alto-Comissário Britânico para a Índia afirma que é um “assunto interno” que só à Índia diz respeito.

Fora desses dois países, figuras públicas como a ativista Greta Thunberg e a cantora Rihanna já reagiram em apoio aos agricultores em protesto, através do Twitter. A partilha de um kit para ajudar os protestantes por parte da ativista climática chegou mesmo à polícia de Nova Deli, que elaborou vários relatórios a visar protestantes.

De facto, as repercussões do que se está a passar no subcontinente indiano vão muito para além de um único país. A Índia é o maior produtor, consumidor e exportador de especiarias do mundo. Metade das trocas comerciais envolvem o país. Ao mesmo tempo, o estado indiano figura como o segundo maior produtor de arroz, trigo e cereais e, ainda, de frutas e vegetais. Dentro do mercado global, lidera quanto à produção de leite.

A agricultura indiana tem ainda grandes contribuições para a indústria do vestuário. Não há maior produtor de algodão no mundo inteiro. O Departamento da Agricultura dos Estados Unidos divulgou em 2020 que a área de cultivo de algodão na Índia constitui cerca de 40% do total no mundo.

O depois do amanhã

Embora os protestos e greves tenham atingido grandes proporções e estabelecido recordes a nível mundial, o apoio ao primeiro-ministro Narendra Modi parece não desabar. Segundo o Morning Consult, 74% do povo indiano aprova do trabalho de Modi. Este não deixa, todavia, de ser o maior desafio que lhe é colocado desde que chegou ao poder em 2014.

Primeiro-Ministro indiano a cumprimentar pessoas em Varanasi em 2014. Foto: Gabinete do Primeiro-Ministro da Índia/Wikimedia Commons

A falta de um acordo até agora parece distanciar a possibilidade de uma solução para breve. O governo acredita, contudo, que a época de monções vai tirar as pessoas da rua. Não é essa a expectativa daqueles que insistem em permanecer nas imediações da capital. A maior democracia do mundo deve continuar a ser palco de alguns dos protestos mais participados da história e, ao mesmo tempo, estranhamente ignorados.

Artigo editado por Filipa Silva