Em fevereiro de 2006, Gisberta Salce Júnior, uma mulher transsexual brasileira de 45 anos, foi agredida e violada por um grupo de 14 adolescentes. Os maus-tratos prolongaram-se durante vários dias, num edifício abandonado, em pleno centro da cidade do Porto, até que Gisberta foi encontrada, já sem vida, num poço de 15 metros.

Passados 15 anos, a Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho do Porto (COMOP), em conjunto com a atriz e ativista Sara Barros Leitão, entende que está na hora de reconhecer e homenagear a vida de Gisberta. Para isso, propõe que seja dado o seu nome a uma das ruas da cidade Invicta. A proposta é feita através de um abaixo-assinado que foi lançado no dia 17 de março e que se vai prolongar até julho – mês em que, habitualmente, ocorre a Marcha do Orgulho do Porto, que este ano ainda tem data por determinar.

Uma terceira tentativa

Esta não é, contudo, a primeira vez em que o pedido é feito. Já em 2010, o projeto “Viver a Rua” fazia a primeira tentativa de homenagear Gisberta através da atribuição do seu nome a um arruamento – proposta que acabou por ser rejeitada pela Comissão de Toponímia da cidade. Ao JPN, a Câmara Municipal do Porto esclarece que, nessa altura, o pedido não obteve aprovação pela maioria dos presentes.

Já em março 2020, a atriz Sara Barros Leitão entregou à Câmara do Porto um abaixo-assinado com o mesmo objetivo. Essa carta era o resultado de um espetáculo que tinha criado sobre a cidade – “Todos os dias me sujo de coisas eternas” – em que se propunha a refletir sobre as ruas do Porto. A atriz conta, nas redes sociais, que, durante o processo de criação, tinha descoberto que, até essa data, havia um total de 51 ruas com nomes de mulheres, uma ínfima parte do total. Menos até do que o número de ruas começadas por “Doutor”.


Para além da confirmação da sua receção, o documento, que tinha mais de uma centena de assinaturas, nunca chegou a obter uma resposta positiva ou negativa.

Um ano depois, a atriz junta-se agora à COMOP de 2021 com um objetivo definido: “traçar estratégias de mobilização da sociedade civil para que a Câmara Municipal do Porto, através da sua Comissão de Toponímia, atribua o nome de Gisberta Salce Júnior a uma rua da cidade”, lê-se no comunicado enviado à imprensa.

Em conversa com o JPN, Filipe Gaspar, da Saber Compreender – uma das associações que integra a comissão organizadora – explica que entenderam que, uma vez juntos, a “voz seria mais coletiva”.

Proposta está ligada a um ciclo de debates e reflexões com convidados

Por entenderem que a violência de que Gisberta foi alvo continua presente nas ruas do Porto e que a comunidade trans continua exposta à mesma marginalização, este projeto vem de mãos dadas com um ciclo de debates e reflexões sobre a rua. Serão um total de três debates sob o tema “Se esta rua fosse minha”, o primeiro sobre “Reivindicar”, o segundo sobre “Unir” e o terceiro sobre “Agir” – R.U.A..

O objetivo é discutir sobre “sobre questões que envolvem as múltiplas vivências no espaço urbano, trazendo à luz questões como a exclusão social, gentrificação, bem como cidadania participativa, solidariedade e o combate à cisheteronormatividade opressora no espaço público”, lê-se no mesmo documento.

Nestas conversas estarão presentes especialistas e convidados da sociedade civil ou do movimento associativo. Filipe Gaspar conta ainda ao JPN que têm pensado em fazer uma parceria com o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, de modo a estarem presentes profissionais da área, para que “estes debates não fiquem só encerrados no debate, mas que sirvam também para criar uma espécie de cadernos que possam ser consultados mais tarde como documentos históricos”.

Plano Municipal LGBTI+ para o ano de 2022

A COMOP apela também à criação de um plano municipal LGBTI+ no Porto para 2022, que contemple medidas prioritárias para combater a desigualdade e exclusão social, e impedir a violência, que existe sob várias formas, contra a população LGBTI+ na cidade.

A Comissão pede ainda que esse plano seja elaborado em conjunto com grupos de ativistas e organizações que trabalham no terreno. “As partes interessadas devem ser ouvidas porque conhecem as problemáticas e até é interessante partilharem as suas histórias e estarem envolvidos nesse processo. Acho que isso é importante”, refere Filipe Gaspar.

Saber mais

Entre outras tarefas, compete à Comissão Municipal de Toponímia: propor a atribuição de denominações a novos arruamentos com a devida fundamentação; analisar propostas toponímicas apresentadas por cidadãos ou instituições, quando fundamentadas; elaborar pareceres sobre a atribuição de novas designações a arruamentos, de acordo com a respetiva localização e importância; propor a realização de protocolos ou acordos com Municípios de países com quem Portugal mantenha relações diplomáticas, com vista a troca de topónimos, em regime de reciprocidade; definir a localização dos topónimos; proceder ao levantamento, por Freguesia, dos topónimos existentes, sua origem e justificação; elaborar estudos sobre a história da toponímia no Porto.

“A resposta positiva ou negativa terá sempre uma reação de uma nossa parte”

Até ao final da manhã de sexta-feira, o abaixo-assinado já conta com mais de 2.500 assinaturas. Questionado sobre quais são as expectativas da COMOP relativamente aos assinantes, Filipe Gaspar explica que esperam que sejam, pelo menos, 10 mil – o mesmo número de pessoas que participaram na última marcha presencial no Porto. Ainda assim, não rejeita a hipótese deste número poder ser ultrapassado: “Eu acho que ainda pode acontecer serem mais. Isto está a ter um impacto muito grande. Está, inclusive, a ser partilhado pela imprensa no Brasil”.

O abaixo-assinado será entregue em julho à Comissão de Toponímia. Filipe Gaspar admite que estão à espera que a Comissão dê “um parecer positivo em relação a isto”, mas garante que, caso contrário, também “terá uma resposta política” da parte dos proponentes. Se a proposta for aceite, a Comissão admite que ficará muito feliz pela “vitória da sociedade civil”, mas, se isso não acontecer, também haverá uma “contrarresposta”. “Portanto, a resposta – positiva ou negativa – terá sempre uma reação de uma nossa parte”, remata.

Artigo editado por Filipa Silva