Nas palavras da autora, a “Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa” é um livro que quis “leve e atrativo” e a apontar a um objetivo: mostrar que “os autores contemporâneos são grandes leitores dos autores do passado”.

Em entrevista ao JPN, Rosa Maria Martelo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e autora de ensaios, estudos e diversas obras, explicou que a ideia para a antologia, publicada pela Assírio & Alvim, surgiu de um exercício de leitura que ia fazendo e da constatação de que havia muitos diálogos “entre diferentes poetas” que habitualmente lê.

A característica que diferencia estes poemas dos restantes e os liga entre si é a capacidade dada ao leitor de identificar neles uma referência, quer numa ideia presente no texto, quer no título ou mesmo na transcrição de um ou mais versos, de um poema já escrito. Este fio condutor, onde, de acordo com a autora, o poeta mais recente “retoma, celebra, interroga ou mesmo emenda” a sua interpretação de um poema mais antigo, constitui o diálogo inerente à poesia contida na obra.

Rosa Maria Martelo nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1957. É professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde fez o doutoramento em Literatura Portuguesa, em 1996. É também investigadora no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, Unidade I&D da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Tem-se debruçado particularmente sobre a Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, as Poéticas do Século XX e a Literatura Comparada, como domínios de investigação. Tem ensaios inseridos em revistas ou obras coletivas e publicou mais recentemente obras como “Ofício Múltiplo: Poetas em Outras Artes” (Afrontamento, 2018), “Os Nomes da Obra: Herberto Hélder ou O Poema Contínuo” (Documenta, 2016) ou “O Cinema da Poesia” (Documenta, 2012).

Os poemas “dialogantes” escolhidos, que abrangem nove séculos de literatura, têm a particularidade de “serem muito explícitos”, de se encontrarem em circunstâncias onde o poema mais recente “nunca teria existido sem o poema anterior”, explica a autora. Por essa razão, a docente e investigadora sublinha que nunca foi sua intenção compor uma obra “exaustiva”, mas antes um livro que permitisse, a quem lê, partilhar da sua própria experiência enquanto leitor de poesia e “continuar [o livro], se quiser”.

JPN – Considera que o poema é frequentemente veículo de diálogo entre poetas do presente e poetas do passado?

Rosa Maria Martelo (RMM) – Sim e não só. Também entre os poetas do presente e os poetas do presente, outros poetas do presente. Não temos só, aqui neste livro, diálogos com o passado. Também temos diálogos de um poeta consigo mesmo, por exemplo, em diferentes momentos da sua obra. Há um poema de Gastão Cruz em que ele refaz, de alguma forma, um poema que tinha escrito vários anos antes perante uma pintura que é “Os embaixadores” de Hans Holbein, que ele viu num primeiro momento na National Gallery. Uns anos depois, ele volta a ver esse quadro e faz um poema em que retoma o poema anterior.

E também há um caso de um texto em que Fiama Hasse Pais Brandão também retoma ou responde, refaz de alguma maneira, um poema que já tinha feito, já tinha escrito numa fase inicial da obra.

Portanto, há vários tipos de diálogos, não necessariamente com o passado, embora este exemplo que lhe dei seja de um autor consigo mesmo e com o passar da sua própria obra. Na maioria dos casos é certo que são diálogos com autores do passado. Mas também temos diálogos com autores contemporâneos.

Na verdade, o que também acho que tentei mostrar é que, de certa forma, aquilo a que nós podemos chamar a “literatura hoje” ou a “poesia hoje”, inclui todos esses poetas do passado que estão na nossa memória. E uma coisa que eu também gostava que a antologia mostrasse é que os autores contemporâneos são grandes leitores dos autores do passado.

JPN – O facto de a quantidade de textos literários ser cada vez maior (“haver muita gente a falar”) é uma boa escola e herança para o poeta contemporâneo ou um desafio cada vez maior de produzir algo novo?

RMM – Quem fez essa afirmação foi o poeta Manuel António Pina, não eu. Há um dos versos logo no primeiro livro de Manuel António Pina, que é de 1974, que é esse livro que tem um título muito longo, “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo, calma é apenas um pouco tarde”. Há nesse livro uns versos nos quais ele diz: “já não é possível dizer mais nada/mas também não é possível ficar calado”, o que é uma espécie de resposta àquela ambição modernista da valorização absoluta do novo, à qual Manuel António Pina diz: “nós não vamos poder refazer esse novo absoluto” – que de resto os modernistas também não fizeram, é preciso que se diga – “mas vamos continuar a escrever. Independentemente de não podermos dizer nada de absolutamente novo, nós também não podemos ficar calados.”

Então, de facto essa afirmação é de Manuel António Pina, sendo que Manuel António Pina é um autor que começa a escrever nos anos 70, que é um momento em que realmente essa consciência de que a literatura é muito mais feita de diálogos e de situações e de revisitações. Não me parece que isso seja um problema, sinceramente. Há autores que usam precisamente esse diálogo como um motor de escrita e que são extremamente originais e inovadores.

Já o que pode constituir um problema é uma outra coisa, que é uma certa facilidade de edição e de auto publicação que hoje existe, que faz com que as pessoas publiquem muito cedo, publiquem muito, de uma forma muito simples. Basta usarem as redes sociais para se publicarem, por exemplo. Hoje as pessoas mais novas publicam muito e isso cria de facto algum ruído, porque nós temos uma circulação de textos muito grande e, às vezes, há uma certa dificuldade em distinguir o que é que vale a pena ler, o que é que não vale a pena ler. Há uma forma um bocadinho acrítica de publicar e também uma certa urgência. Uma urgência excessiva, às vezes, e as pessoas têm pouco tempo ou preservaram pouco tempo para refletirem um pouco sobre aquilo que querem dizer, para experimentar.

Por outro lado, também acho que uma antologia deste género mostra como todos os escritores são, antes de mais nada, grandes leitores.

É impossível ser original sem ter lido

JPN – É preciso ler para escrever?

RMM – Com certeza. É impossível escrever sem ler e muito. Há uma ideia ingénua que eu já tenho ouvido de algumas pessoas novas, até estudantes, dizerem que ler é um problema, porque as pessoas ficam influenciadas ou podem ser menos originais. Mas é uma ideia totalmente errada, como Ruy Belo dizia: “Não perdoo aqueles autores que eu li e não me influenciaram”. Porque realmente nós precisamos que os outros nos ensinem coisas, nos influenciem e, em função disso, depois, podemos encontrar o nosso caminho, a nossa originalidade em relação àquilo que lemos. Mas é impossível ser original sem ter lido, embora esta minha frase possa parecer um paradoxo, é assim mesmo.

A autora Rosa Maria Martelo.

JPN – Há, no prefácio, a pista de que esta obra pode vir a ser “retomada e expandida”. É uma realidade, e um desejo?

RMM – Sim. Na altura, quando organizei esta antologia, a minha ideia era fazer um livro leve e atrativo, que ilustrasse uma forma de leitura e um tipo de relação entre os textos. Nunca quis fazer uma obra exaustiva, até porque muitos destes autores têm ocorrências deste tipo de relações na obra em grande quantidade, portanto, eu fiz seleções de situações. Por exemplo, Gastão Cruz é um autor que recorre muito à intertextualidade, a Fiama também, o Jorge de Sena. Há muitos autores aqui que, só com um, eu conseguia fazer uma antologia.

O objetivo nunca foi o da exaustividade, simplesmente, também foi feito num dado momento e as coisas evoluem, as situações evoluem. Não é uma ideia que neste momento seja para mim uma urgência, mas sim, acho que se pode perfeitamente voltar a esta antologia daqui a algum tempo e completá-la com outras obras, outros poemas, outros autores, sim.

Aliás, acho que também uma coisa que pode ser interessante ou, a mim, seria uma ideia que me agrada, é pensar que cada leitor, quando lê este livro, é capaz de se lembrar de poemas que leu, que não estão aqui e que poderiam estar aqui, portanto, de certa maneira é uma antologia que o leitor também pode continuar, se quiser.

JPN – Acho que mais do que isso até é abrir na mente do leitor essa oportunidade, essa visão da leitura.

RMM – Exatamente, a ideia era um pouco essa. Porque é que eu fiz esta antologia? Porque eu sempre achei muito divertido o modo como diferentes autores respondem a diferentes textos e a maneira como um determinado poema, por exemplo, pode ter uma elaboração totalmente inesperada na obra de outro autor. Isso, às vezes, dá diálogos que são inesperados, que são surpreendentes, outras vezes são divertidos, outras vezes são irónicos, outras vezes são até muito intimistas. Então, como acho que essa experiência é uma experiência interessante, do ponto de vista da leitura, é uma coisa que a mim me interessa. Achei que podia partilhar isso com as outras pessoas. Acho que este livro é um livro que proporciona – eu pelo menos imaginei-o assim – uma leitura agradável e com algumas surpresas. Era isso que eu queria proporcionar.

Acho que a poesia se inscreve em todas essas formas de suspensão do tempo, de interrupção daquilo que é a nossa experiência, da vida e criação de um intervalo no qual nós podemos encontrar-nos e encontrar as coisas à nossa volta com mais rigor e com mais atenção.

JPN – Qual é a importância da leitura de poesia no mundo contemporâneo?

RMM – Eu acho que a poesia tem uma particularidade. Ela assenta – como a literatura de um modo geral, aliás – num uso muito consciente das palavras, do discurso verbal. Normalmente, a poesia assenta num uso reflexivo da linguagem, ela é uma linguagem que se pensa. Mas não se limita a pensar, é um pensar que tem a ver com o ritmo e por isso tem a ver também até com a experiência do corpo quase como uma caixa de ressonância em que os sons e as ideias se interligam de uma forma inextricável.

Essa ligação entre as ideias e os sons e essa condição de atenção absoluta que esse exercício envolve, tem a vantagem de nos tornar atentos e exatos no modo como nós vemos o mundo. E também acho que nos dá uma experiência, uma possibilidade de rigor no uso que fazemos das palavras. E numa sociedade que está totalmente sufocada por gente a falar, com excesso de informação, um vozear constante, um ruído constante, um modo muito terrível de transformar a informação em desinformação, de transformar o diálogo em ruído ou em grito, a poesia tem um papel que, a meu ver, é o de constituir uma espécie de contraponto a isso. A poesia faculta o outro uso do discurso, uma outra atenção às palavras e como nós não conseguimos ver o mundo sem palavras, isso também significa que nos pode facultar um modo mais rigoroso e intimista de nos relacionarmos com o mundo.

Por outro lado, a poesia é sempre intempestiva, no sentido em que ela acontece sempre como uma espécie de ponto morto na experiência que temos do tempo. Acho que a poesia se inscreve em todas essas formas de suspensão do tempo, de interrupção daquilo que é a nossa experiência da vida e criação de um intervalo no qual nós podemos encontrar-nos e encontrar as coisas à nossa volta com mais rigor e com mais atenção. Acho que é para isso que serve a poesia, mas não só a poesia. Serve a poesia e servem outras artes.

JPN – Qual é a sugestão de diálogo do seu livro que gostaria de deixar para o Dia Mundial da Poesia?

RMM – Talvez, atendendo a que é o Dia Mundial da Poesia, um poema que contém uma reflexão sobre para que é que serve a poesia, que é o “Poema ensina a cair”, de Luiza Neto Jorge e depois o diálogo de Jorge de Sena com Luiza Neto Jorge com o “Vilancete sobre o Poema Ensina a Cair”, que estão na página 229 e 230. Na verdade, o “Poema ensina a cair” é um belo poema e é um poema sobre a fruição da poesia, portanto, tem tudo a ver com essa experiência muito particular do tempo que estávamos a falar há pouco, até porque o poema do Jorge de Sena acaba assim: “O que um poema ensina/Nem o poeta imagina”.

Artigo editado por Filipa Silva