Nos últimos meses, assistimos ao fecho de estabelecimentos de ensino e à transferência das atividades letivas para um regime de educação à distância. Zooms, meetings e links tornaram-se correntes no dia-a-dia da escola e a aquisição de competências digitais é agora prioritária para o exercício profissional dos docentes. O JPN falou com três profissionais do Ensino para perceber os desafios de lecionar em contexto de pandemia.

O professor Pedro Costa começa a entrevista por lamentar, mais uma vez, o sucedido no dia anterior. Tinha entrevista marcada com o JPN, mas uma avaria no computador obrigou a reagendar: “Com isto do ensino à distância é o segundo que já vai ao ar”. São muitas horas passadas em frente ao computador. O professor admite que o esforço é pesado para ele, para os alunos, e também para o material.

O exemplo de Pedro Costa é representativo do esforço que as escolas estão a fazer, desde o início da pandemia, para adotar um regime de funcionamento online – e das dificuldades que enfrentam para pôr em prática uma metodologia de ensino baseada nas tecnologias da informação.

O impacto desta mudança de paradigma estende-se à formação dos professores e restantes profissionais que trabalham no ensino. “Após o confinamento ditado em Março de 2020, em escassos dias, deslocamos todas as nossas atividades, para realização em regime a distância”, admite Jorge Lima, do Centro de Formação de Associação das Escolas de Matosinhos (CFAE_Matosinhos).

Esta estrutura promove anualmente cerca de 40 ações de formação em que participam mais de 4 mil profissionais, docentes e não docentes.

Antes concebidos como sistemas excepcionais, a utilizar apenas “desde que adicionalmente comprovada a vantagem desse modelo”, conforme se pode ler nas orientações do Conselho Científico-Pedagógica da Formação Contínua, o ensino em regime à distância (e-learning) ou misto (b-learning), fruto das circunstâncias, tornou-se dominante.

Esta nova metodologia de trabalho pode ser atrativa para os docentes, confirma o responsável pelo CFAE_Matosinhos, pois “a procura de formação aumentou significativamente” desde o início da pandemia, sobretudo na área das Ferramentas de Apoio ao Ensino a Distância.

A tecnologia ao serviço do ensino

O Mestrado de Ensino em História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto tem a seu cargo a formação inicial de professores de História do terceiro ciclo do Ensino Básico e Secundário. Cláudia Ribeiro, que é diretora do curso, reconhece que o confinamento de 2020 foi um verdadeiro “soco no estômago” para o qual ninguém estava preparado, mas que o ano lectivo em curso tem sido “muito mais pacífico em termos de adaptação”.

Em 2018, um estudo mostrou que mais de 90% dos professores continua a preparar as aulas apoiados no manual escolar

As novas tecnologias não são, de todo, estranhas para os alunos deste mestrado de ensino. Desde 2014 que o mestrado integra uma unidade curricular, designada A Web e o Ensino da História, especificamente vocacionada para “desenvolver competências próprias da utilização das tecnologias digitais do ensino”.

Isto permite aos professores em formação maior facilidade na construção de “recursos digitais, instrumentos de avaliação, aulas e visitas de estudo virtuais”.

Uma aplicação móvel com utilidade pedagógica

Um exemplo de como as novas tecnologias podem ser colocadas ao serviço de processos formativos, é-nos dado por uma aplicação móvel desenvolvida pela Inducar, no projeto A Par e Passo, realizado em parceria com a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, o Agrupamento de Escolas da Arrifana, a Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica do Porto (FEPUCP) e a Bizview.

Filipe Martins é professor na FEPUCP. Está também há muitos anos ligado à Rede Inducar, de que foi co-fundador, uma organização que reúne profissionais e investigadores das áreas da educação, formação e intervenção social.

O projeto A Par e Passo procura trabalhar de forma inovadora a formação contínua de professores. Uma das ideias chave passa por trabalhar em contexto de “formação-ação”, isto é, desenvolver competências à medida que se implementam atividades concretas, em vez de simplesmente organizar sessões de formação em sala de aula (física ou virtual).

A aplicação móvel vem ao encontro deste conceito. É uma ferramenta que permite aos professores desenhar projetos com os alunos de forma interativa e participada.

A pandemia apanhou, no entanto, a intervenção a meio e foi necessário transferir para o ambiente digital uma dinâmica que se queria o mais participada possível. A aplicação “acabou por ser muito útil, porque ofereceu uma plataforma diferente para trabalhar” o projeto.

O professor da era digital

Para Cláudia Ribeiro há um resultado positivo em todo o processo que estamos a viver que é a “reabilitação social da figura do professor”. Ficou evidente para todos a importância da escola e de todos os profissionais que lá trabalham.

Se há coisa que já não funciona na sala de aula, e nunca irá funcionar à distância, é o método expositivo – a construção do aluno enquanto um sujeito passivo, que recebe conhecimento.

No entanto, a professora alerta que a transição para um contexto tecnológico não assegura, por si só, um salto qualitativo no ensino: “Podemos usar as novas tecnologias e ter um ensino totalmente tradicional muito pouco construtivista e ativo por parte do aluno”.

Este pode ser precisamente um dos obstáculos a uma transição suave para um novo contexto em que o ensino à distância e os recursos digitais sejam dominantes: As ferramentas tradicionais, como o manual escolar, continuam a ter uma enorme centralidade dos processos pedagógicos: “Em 2018, um estudo mostrou que mais de 90% dos professores continua a preparar as aulas apoiados no manual escolar e que aconselha os seus alunos a estudar pelo manual”. explica a professora.

O consultor do projeto A par e passo concorda: “Se há coisa que já não funciona na sala de aula, e nunca irá funcionar à distância, é o método expositivo – a construção do aluno enquanto um sujeito passivo, que recebe conhecimento”, defende Filipe Martins.

A mudança do ensino para um ambiente digital torna evidente “a necessidade do professor ser mais um catalisador e um animador da aprendizagem, um interlocutor no processo de aprendizagem, do que propriamente um transmissor de conhecimento para os alunos”.

A isto soma-se a facilidade de partilha de conhecimento, práticas e experiências, que tem tido um impacto positivo nos processos formativos: “Toda esta fluidez da colaboração, criação e disseminação do conhecimento, oxalá perdure para lá do confinamento e seja um acrescento positivo e não só um tapa buracos como até agora”.

Gosto do professor das emoções, que tem muita ligação aos sentimentos na sala de aula. Estou mais mecânico e isso afectou-me bastante a nível anímico.

Pedro Costa, porém, considera que este processo está a ser pesado para ele e para os alunos. Excetuando o ano de estágio, o professor recém-licenciado ainda não esteve a trabalhar nenhum ano em regime totalmente presencial.

A distância imposta pelos ecrãs impõe a figura de um professor “programado” que contraria tudo aquilo que considera ser o essencial da relação pedagógica: “Gosto do professor das emoções, que tem muita ligação aos sentimentos na sala de aula. Estou mais mecânico e isso afectou-me bastante a nível anímico. Quando me dizem ensino à distância eu já quero fugir a sete pés. Não gosto nada do ensino à distância”.

A interação perde-se por um lado, mas ganha-se por outro

O ensino à distância inibe necessariamente certos aspetos do desenvolvimento dos alunos. “Os miúdos sentem falta da escola. Penso que este distanciamento veio mostrar a importância do ensino presencial”, sublinha Cláudia Ribeiro.

As dificuldades surgem essencialmente ao nível da interação e sociabilidade, onde “há aspetos que se perdem”. A adaptação da didática do ensino ao novo contexto digital também é complexa.

O ensino online é muito mais desgastante e exigente porque os professores, agora, estão “à distância de um clique, sempre disponíveis”, de tal forma que se torna impossível manter a diferença entre a vida pessoal e profissional, afirma a responsável pelo Mestrado do Ensino de História da FLUP.

“Nunca estive tão próxima dos meus estudantes”

Contudo, a utilização de recursos digitais tem também um enorme potencial em termos pedagógicos. Mesmo ao nível da interação, sendo certo que não existe a presença física, há outros aspetos que podem até ser melhorados: “Desde que começou o ensino à distância, nunca estive tão próxima dos meus estudantes”, diz Cláudia Ribeiro, referindo que tal acontece porque está com eles de múltiplas formas (zoom, reuniões, aulas online, …).

Como as possibilidades de comunicação aumentam de forma exponencial, o professor vê-se na necessidade de “pensar em formas diferentes de ensinar” e em ser criativo.

Assim, todo este processo está a ser rico para os alunos do Mestrado em Ensino de História. É verdade que faz falta aos alunos “estar na sala de aula. Mas estão também a ter uma oportunidade única”, que é a de adaptar todo um modelo de ensino às novas condições impostas pela pandemia.

Investimento na infraestrutura tecnológica para diminuir assimetrias

O governo prevê a alocação de 500 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência para investimento em infraestrutura tecnológica. Pedro Costa não tem dúvidas de que esse investimento é decisivo: “A escola existe para pôr fim à desigualdade social”.

Para o professor de História, é essencial proporcionar a todos os alunos condições iguais de acesso ao processo educativo e isso passa por todos terem computadores e acesso à internet, para que possam assistir às aulas em condições iguais.

Para Cláudia Ribeiro, “este ensino à distância veio mostrar as desigualdades” que existem entre os alunos, não apenas de carácter económico, mas também ao nível das assimetrias regionais (locais onde existe um bom acesso à internet, comparando com outros onde a qualidade de ligação não permite sequer ter a câmara ligada durante uma aula realizada através do zoom).

Formar para a plasticidade

A formação inicial deve ter um currículo “atualizado e que nos oriente para qualquer tipo de ensino”, diz Pedro Costa, mas “ser professor é aprender a vida inteira”, pelo que a formação contínua tem que ser valorizada.

Filipe Martins, que lecciona na Universidade Católica, sublinha que as competências com que o professor tem que lidar são, “no seu cerne”, as mesmas: “Não vejo que mude a essência do que é ser professor e do que deve ser o professor”.

“Continuamos a tentar capacitar para um trabalho colaborativo, para um trabalho de diferenciação pedagógica, de dar protagonismo ao aluno, continuamos a trabalhar no mesmo sentido do trabalho em equipa e interdisciplinar, continuamos a trabalhar por uma visão da educação enquanto projeto de aprendizagem, mais do que uma transmissão de conteúdos e isso parece-me tão necessário no presencial como no online”, diz Filipe Martins.

“A escola existe para pôr fim à desigualdade social”

Pedro Costa elege também a flexibilidade como a competência determinante que o professor deve desenvolver no contexto atual: “A formação tem que passar muito por esta plasticidade, de dar ao professor a capacidade de se adaptar a todos os meios: ao zoom, ao presencial, a uma visita de estudo, a vários contextos”.

A complexidade é o novo normal

Cláudia Ribeiro concorda que é necessário investimento em infraestrutura (computadores, ligação à internet) e formação dos profissionais, mas destaca que existem outras variáveis que devem ser tidas em conta.

A existência, por exemplo, de plataformas digitais adequadas, que sirvam de suporte ao desenvolvimento das atividades formativas, é essencial.

Neste aspeto, será preciso desmistificar a ideia de que o digital é mais barato do que o analógico. Não só “é mais caro” como é também mais sujeito “à erosão do tempo, à desatualização do software”. O hardware também rapidamente se torna obsoleto, alerta a professora universitária.

A tudo isto acrescem outras questões que ficam por resolver: “Como é que se faz quando um miúdo perde o tablet, parte o tablet, como é a utilização dos recursos digitais em sala de aula se não for de uma forma autónoma, com acesso individual às ferramentas?”.

“Os professores foram à frente, nós fomos atrás a tentar apanhar o comboio”

Para responder aos desafios, o sistema educativo tem assim que aprender a conviver com este contexto de enorme complexidade.

O futuro que não se pode desperdiçar

Na perspetiva de Cláudia Ribeiro, é preciso aproveitar este momento para “dar um novo fôlego à escola”.

O futuro deverá passar por soluções híbridas: “Um trabalho mais diversificado, que alie a possibilidade de haver momentos  em que não se vai à escola porque se está em casa a trabalhar num projeto, e há mais tempo para isso, mas mesmo assim acompanhado pelo professor, e dias em que as aulas são presenciais”.

No seu entender não há razões para limitar a utilização das novas tecnologias e cita Sugata Mitra: “Todo o professor que tem medo de ser substituído por um computador, merece sê-lo”.

Já para Filipe Martins, a mudança que estamos a viver ao nível do sistema educativo está a obrigar o professor a desenvolver “uma capacidade enorme de autoformação“, pois “os professores foram muito activos no processo de formação” – a quantidade de webinars e cursos online de formação de professores está aí para prová-lo.

Numa fase em que os professores passam muito do seu tempo fora da escola, a formação contínua à distância permite “criar redes de suporte”, em que os profissionais se apoiam mutuamente, não só a nível técnico, mas também humano.

O mérito da capacidade de adaptação a este novo contexto é, assim, inteiramente “dos professores, não é dos formadores”, diz Filipe Martins. “Os professores foram à frente, nós fomos atrás a tentar apanhar o comboio”.

Artigo editado por João Malheiro