No dia 10 de março, foram transmitidas orientações aos jornalistas da TDM (Teledifusão de Macau), para seguirem “o princípio do patriotismo” e de “amor a Macau”, proibindo a divulgação de informações e opiniões contrárias às políticas da China. O JPN ouviu dois profissionais lusos que trabalham no território e o Sindicato dos Jornalistas sobre a onda de insatisfação que a diretriz originou.
Duas semanas após terem sido tornadas públicas orientações “patrióticas” para os departamentos de língua portuguesa e inglesa da Teledifusão de Macau (TDM), o ambiente que se vive na estação pública é de apreensão. Entre os ecos de descontentamento e as demissões já apresentadas, há um denominador comum: a necessidade de expor o que acreditam ser um ataque à liberdade de imprensa.
A revolta eclodiu a 8 de março, quando a comissão executiva da TDM se reuniu com a direção editorial para um encontro de coordenação de rotina, no qual foram transmitidas “novas instruções” para os 30 jornalistas da redação. A proibição de fazer notícias contra o governo de Pequim e o governo de Macau e a obrigação de mostrar “patriotismo”, “amor à pátria” e “amor a Macau” foram as indicações dadas aos jornalistas. A comissão executiva da estação terá, inclusivamente, indicado que o incumprimento destas diretivas dava direito a despedimento com justa causa.
“Amor a Macau” ou repressão?
A decisão da direção editorial chegou aos ouvidos da redação e o caso tornou-se público. Face ao ambiente de crispação que se foi agudizando, os administradores da TDM receberam uma delegação de jornalistas a 15 de março e a reunião foi marcada por um discurso inverso ao do primeiro encontro.
A administração destacou que a mensagem não tinha sido bem interpretada e que não havia novas diretrizes, tendo sido feita uma “clarificação”. Porém, o mal-estar e a desconfiança causados eram irreversíveis e a poeira levantada em torno deste caso era já densa. Será preciso tempo para assentar e só assim se perceberá o que aconteceu, o porquê e de onde veio a ordem.
Ao JPN, um jornalista português em solo macaense afirmou, sob anonimato, que o cenário que se desenrola em Macau “não é surpresa”, defendendo que esta era uma eventualidade que alguns jornalistas de Macau já esperavam, “especialmente para travar os acontecimentos que tiveram lugar em Hong Kong, em 2019”.
De recordar que na região vizinha começaram, em 2019, protestos pró-democracia, que culminaram com a imposição, no ano seguinte, de uma lei de segurança nacional que previa a proibição de “qualquer ato de traição, separação, rebelião, subversão contra o Governo Popular Central”.
“E aqui há o conceito mais ou menos estranho de que uma sociedade que não questiona, que não critica, é uma sociedade estável”, acrescenta o profissional luso em Macau.
Contornos da diretriz
Desde então, “tem havido uma preocupação muito mais severa para que a estabilidade se mantenha” de forma a fomentar esse “amor à pátria”, pois “Hong Kong sempre foi visto como um filho rebelde da China e Macau é visto como o filho bem comportado da China”. Após os protestos que aqueceram as hostes em Hong Kong, “as coisas em Macau ficaram mais apertadas para os jornalistas, porque os responsáveis quiseram parecer ainda melhor na fotografia perante Pequim. Logo não se percebe bem de onde vêm estas pressões”, disse o jornalista português ao JPN.
Este não é um problema de agora e já se faz sentir no seio dos meios de comunicação em mandarim “há pelo menos dez anos”, afirma o jornalista. Esta atuação, ainda que “não seja um pedido feito expressamente”, acaba por condicionar os profissionais, uma vez que semeia a dúvida nas cabeças dos jornalistas quando estão a fazer uma peça. E essa dúvida “é o suficiente para que não seja preciso fazer censura”, pois cria dentro de cada um o sentimento de autocensura, condicionando “o pensamento jornalístico a priori“.
Na opinião do jornalista português estas pressões são encetadas pelos responsáveis locais de Macau, “quer sejam governantes locais, quer sejam empresários”, munidos de interesses pessoais.
Esta limitação da liberdade de imprensa já levou a que seis jornalistas portugueses apresentassem a demissão, como foi noticiado pelo jornal “Tribuna de Macau”. A situação foi divulgada por duas jornalistas que trabalham na rádio de língua portuguesa da emissora pública macaense.
Na visão de outro jornalista português em Macau que prestou, igualmente, declarações ao JPN sobre a temática na condição de anonimato, o cenário de Macau trata-se de uma clara violação da liberdade de imprensa, uma vez que “há a limitação do espectro das vozes a serem ouvidas”, o que condiciona o trabalho jornalístico. E este não se pode relacionar com patriotismo, pois a sua função é “ouvir as vozes que há para ouvir, levantar as questões que há a levantar, explicar os factos e ouvir opiniões”.
Assim, o objetivo primordial das diretrizes da TDM é, segundo o profissional luso, “transformar os jornalistas numa máquina de propaganda”.
Uma das razões apontadas pelo jornalista para o surgimento das diretivas deve-se em grande parte à influência económica do Governo na imprensa: “Os jornais não têm leitores suficientes, portanto, o rendimento deles é com as publicidades do Governo e subsídios. E isso promove autocensura nos assuntos mais importantes”.
Onda de insatisfação
As orientações foram, prontamente, alvo de uma chuva de críticas nos dias seguintes pela Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) e o Sindicato dos Jornalistas de Portugal, que manifestou “enorme preocupação” e “solidariedade” para com os profissionais, assim como pela Associação de Jornalistas de Macau, que representa repórteres dos média de língua chinesa.
Segundo a AIPIM, “o ponto em questão é particularmente preocupante, na medida em que colide com o pluralismo informativo e a busca do contraditório – princípios basilares da atividade profissional dos jornalistas”.
Em declarações ao JPN, Leonor Ferreira, vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas, reitera as críticas dirigidas à tomada de ação da TDM, mostrando solidariedade para com os profissionais de Macau e destacando que as diretrizes da TDM fazem dos jornalistas um mero “pé de microfone”.
Em sentido oposto, Ho Iat Seng, o chefe do Governo de Macau, refutou todas as acusações e realçou que os média são patrióticos e amam a região administrativa especial chinesa. Em declarações ao “Diário de Macau”, salientou que a liberdade de imprensa nunca foi atacada e nunca houve diretrizes sobre este assunto.
Na sequência dos eventos que abalaram o solo macaense, os Repórteres Sem Fronteiras (RSF) anunciaram que iriam incluir Macau na sua lista de monitorização, que analisa a liberdade de imprensa em 180 países, após a ameaça de “censura” na Teledifusão de Macau. Na classificação da liberdade de imprensa estabelecida anualmente pelos RSF figurava apenas Hong Kong, que chegou a ser considerado um bastião da liberdade de imprensa, mas caiu do 18.º lugar, em 2002, para 80.º em 2020, enquanto a China continental é 177.º em 180 países, numa lista que até aqui deixava Macau de fora.
Lei Básica de Macau
Várias foram as vozes que se posicionaram contra o veredito da estação pública de Macau, entre os quais o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. O político referiu que “o Governo português espera e conta que ambas as partes cumpram a Lei Básica em todas as suas determinações“. Recorde-se que Macau se encontra num processo de transição desde a transferência da administração portuguesa para a administração chinesa em 1999.
Augusto Santos Silva frisou que “essa transição é regulada” por uma lei, que resulta do acordo entre a China e Portugal, que se chama Lei Básica e que, por um período de 50 anos – portanto, de 1999 até 2049 – (…) define os termos da transição em Macau”.
“Essa Lei Básica é muito clara na garantia da liberdade de imprensa e, portanto, da mesma forma que Portugal respeita escrupulosamente a Lei Básica em Macau, Portugal espera que a República Popular da China também respeite escrupulosamente, designadamente, entre muitas outras áreas (…) em matéria de liberdade de imprensa”, acrescentou.
Jornalistas unidos pela mesma causa
A insatisfação parece não ter fim à vista e, esta segunda-feira (29), conheceu novo capítulo. Numa carta enviada a várias entidades na Assembleia da República, incluindo a Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas e todos os grupos parlamentares, uma centena e meia de jornalistas denunciaram a existência de um “ataque à liberdade de imprensa em Macau” e exigem que o “Estado português, enquanto parte contratante da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau”, exerça os seus deveres.
“Vimos apelar junto de Vós para que tornem (…) audíveis as preocupações manifestadas a partir de Macau [relativas à tentativa de limitação das liberdades, direitos e garantias dos seus habitantes], zelem pelo cumprimento dos tratados que Portugal assinou e que a Assembleia da República aprovou, e condenem as violações perpetradas, agindo e fazendo agir no sentido da sua retificação”, pedem os jornalistas.
Destacando o poderio diplomático da China, Leonor Ferreira afirma que não é fácil fazer a China rever as suas ações e decisões, mas realça a onda de reações que se insurgiram contra a diretriz, o que mostra a atenção mediática que se gerou em redor do caso.
Esta diretiva, de consequências mais profundas do que aquilo que aparenta, deixará marcas no jornalismo de Macau. A prioridade das entidades que saíram em defesa dos jornalistas de Macau é que se consiga alcançar um acordo que zele pelo cumprimento dos tratados que Portugal assinou e condenem as violações perpetradas.
Artigo editado por João Malheiro