Passados 63 anos desde a primeira impressão, foi lançada a milésima edição do jornal local de Ermesinde. O JPN esteve à conversa com o diretor, Manuel Augusto Dias, que desvenda a história, o modo de funcionamento e antecipa o futuro do periódico.

A partir do Largo António da Silva Moreira, em Ermesinde, foi lançada a 31 de março a edição número mil do jornal “A Voz de Ermesinde”, cuja primeira impressão remonta a janeiro de 1958. Passados 63 anos, Manuel Augusto Dias, atual diretor do periódico, garante que o único jornal local da região com esta longevidade dá voz aos ermesindenses.

Amplamente reconhecido pela população de Ermesinde, recetiva a servir de fonte para as notícias, “A Voz de Ermesinde”, atualmente de periodicidade mensal, conta com um conjunto preferencial de leitores que Manuel Augusto Dias facilmente aponta. “Não há muitos leitores que não tenham nada a ver com Ermesinde”, “é lido sobretudo pela comunidade política, a gente sente. Nas assembleias gerais e nas assembleias municipais, aqueles que lêem os jornais, às vezes, puxam dele. Isso tanto acontece em Valongo, como acontece noutro concelho qualquer. Ele [jornal] é lido, mas é lido quase por uma elite”, reflete em declarações ao JPN.

O jornal que chegou, no dia 31 de março, às mil edições, funciona como um testemunho da história de Ermesinde, em construção. Salvaguardar o património físico do jornal é um objetivo do atual diretor, também professor de História na Escola Secundária de Rio Tinto. Assim, vai ser iniciada “em breve” a digitalização do arquivo. A iniciativa, apoiada pela autarquia, tem também a vantagem de tornar mais cómoda a consulta da publicação.

Manuel Augusto Dias na sala onde são guardadas as mil edições de A Voz de Ermesinde.

Manuel Augusto Dias na sala onde são guardadas as mil edições de A Voz de Ermesinde. Diogo Metelo

Manuel Dias acredita que, desta forma, novas oportunidades podem surgir no que diz respeito ao estudo sobre Ermesinde e a região, através deste jornal sexagenário. Por exemplo, historiadores ou investigadores deixam de se deslocar às instalações de “A Voz de Ermesinde” ou aos 14 pontos obrigatórios por lei, nos quais é possível encontrar, pelo menos, um exemplar de quase todas as edições. Para já, são sobretudo os alunos das escolas locais que seguem a área de Humanidades, quem utiliza o arquivo para realizar pequenos trabalhos escolares de investigação.

A milésima publicação do jornal “A Voz de Ermesinde”, propriedade do Centro Social de Ermesinde, inicia com páginas de memória e homenagem à história do periódico e aos oito diretores que antecederam Manuel Augusto Dias. “Quatro deles já morreram”, lamenta. “São cidadãos muito interventivos, ou em termos políticos ou associativistas, ou escrevem, isto é, têm livros publicados”, lembra enquanto folheia a página.

Segue-se um artigo no qual aparecem escritos os destaques de cada edição “centenária”, do número cem ao número novecentos. Um trabalho de pesquisa desenvolvido por Miguel Barros, o único jornalista renumerado do periódico, a quem compete a redação de artigos, edição e paginação do jornal.

Além deste capítulo de comemoração e dos artigos de história local e nacional habituais, a edição mil aborda temas atuais do concelho. A título de exemplo, é noticiada a nomeação dos primeiros candidatos à Câmara de Valongo às Eleições Autárquicas de 2021, os desenvolvimentos para a construção do Parque do Leça, e o regresso às vitórias da equipa de seniores do Clube de Propaganda da Natação (CPN), na liga feminina de basquetebol. A pandemia, e a consequente redução de eventos e jogos de várias modalidades, deitou por terra o suplemento desportivo.

O diretor assume que, por vezes, especialmente durante a pandemia, é difícil planear conteúdo para as 32 páginas do jornal regional, mas confessa que, com o aproximar da data de impressão, o difícil é escolher quais os conteúdos que ficam de fora. Contudo, o diretor reconhece que a inclusão de artigos de opinião e de celebração de efemérides em cada edição acaba por ser uma estratégia para compor o jornal, dada a dificuldade em enviar um repórter.

A falta de meios de deslocação, as ocupações pessoais dos colaboradores e a simultaneidade de alguns eventos, como reuniões. “O maior problema de um jornal deste tipo é não ter um conjunto de pessoas necessárias para cobrir acontecimentos, no momento, com certeza”, garante Manuel Augusto Dias.

“A Voz de Ermesinde” – cujos colaboradores são voluntários, à exceção de Miguel Barros -, privilegia as fontes próprias, o rigor e a pontualidade, aponta Manuel Augusto Dias. O jornal recorre a vários colaboradores e especialistas “de norte a sul”, além de incorporar várias colunas de opinião. “As colaborações sejam de quem for, de médicos, advogados, militares [são] sempre no regime de voluntariado: escrevem porque aceitam escrever, sem receber nada. Fotografam porque aceitaram fotografar sem receber nada em troca”, frisa o responsável pelo jornal.

Além da distribuição e venda, “são estes os problemas principais com que lida a imprensa regional: a falta de gente interessada em ler, a falta de gente para colaborar, sobretudo se for graciosamente. As pessoas não têm de gostar de fazer isto graciosamente. É preciso ter muito gosto“, acrescenta.

O professor orgulha-se do seu gosto pelo jornalismo. “Acho que desde Coimbra, desde estudante, ainda antes da universidade. Já gostava de escrever jornais de parede e colaborar em jornais”. Manuel Dias encarrega-se agora da escrita de artigos de carácter histórico ou comemorativo n’”A Voz de Ermesinde”, como por exemplo, noticiar aniversários de coletividades locais. “Às vezes, nem eles sabem e somos nós que os informamos”, graceja.

Contudo, o essencial na redação é o compromisso. “As pessoas assumem depois essa obrigação e a gente já sabe que, chegando àquele dia, temos que ter a colaboração que o jornal precisa, senão… O jornal não se faz só com ideias, é preciso depois ter as peças”, afirma o diretor, em funções desde janeiro de 2018.

Uma das suas bandeiras, a aposta na pontualidade, que resulta em “ter tudo pronto dias antes da data de capa”, fica comprometida pelo serviço prestado pelos CTT, queixa-se Manuel Augusto Dias. O jornal depende do serviço para distribuir mil exemplares pelos seus assinantes – apenas cem unidades são colocadas à venda em banca, em papelarias de Ermesinde – e “mesmo enviando dois ou três dias antes, chega com vários dias de atraso”.  Inconformado, Manuel Augusto Dias não poupa nas críticas. “Os correios atrasam muito, prestam um mau serviço. Chateia-me. Raramente [os assinantes] recebem a tempo e horas”, afirma.

Através da subscrição digital, na qual a versão PDF d'”A Voz de Ermesinde” é disponibilizada de forma imediata e automática, os leitores conseguem contornar o problema do atraso na receção do jornal impresso.

Mesmo não sendo subscritor, qualquer utilizador do site do jornal consegue “ler o essencial de todos os artigos”, garante o diretor. Contudo, Manuel Augusto Dias enaltece o valor histórico e duradouro do papel, para quem a fonte é muito importante. “Em papel, é facilmente consultável em qualquer altura. Se for em suporte digital, a gente às vezes vai ver o Facebook, quer encontrar uma coisa, nunca mais encontra e até perde as estribeiras“, ”queria ver uma coisa que gostei de ler, agora nunca mais. Mas se for em papel, fica para sempre”.

Chegar aos jovens é um objetivo a longo prazo

Ciente que os jovens consomem poucas notícias, especialmente em jornais impressos, Manuel Augusto Dias deseja captar a atenção de uma nova geração de ermesindenses que acompanhem o jornal local. Assim, “A Voz de Ermesinde” expandiu a sua presença online. Mensalmente, o diretor do jornal apresenta os principais destaques da edição do mês correspondente, na página de Facebook e no Youtube do Canal Regional de Valongo.

De igual forma, o jornal iniciou, em fevereiro, um podcast semanal com a mesma personagem principal e com a mesma finalidade. A Rádio Zona Z, um meio de comunicação comunitário, exclusivamente online, do Centro de Formação do Centro Social de Ermesinde, acolhe Manuel Augusto Dias e “A Voz de Ermesinde”.

“Os jovens são muito preguiçosos para a leitura”, comenta Manuel Augusto Dias, que adianta que o processo de renovação gradual do painel de colunistas está em curso. “A forma de atingir a gente mais nova é colocar gente mais nova aqui a escrever”, “falando uma linguagem que os mais jovens entendam”, analisa o diretor.

Independência e autonomia editorial

“Em casa de ferreiro, espeto de pau”, enuncia Manuel Augusto Dias. Apesar de o jornal ser propriedade do Centro Social de Ermesinde, não há restrições ao conteúdo publicado, segundo o diretor do periódico. “Há aqui plena autonomia e às vezes até a crítica”, acrescenta.

Primeira publicação da "Sopa dos Pobres", em 1958. Periódico designa-se, atualmente, A Voz de Ermesinde.

Primeira publicação da “Sopa dos Pobres”, em 1958. Periódico designa-se, atualmente, A Voz de Ermesinde. A Voz de Ermesinde

A instituição surgiu com o nome “Sopa dos Pobres”, em 1955, mas a primeira edição do jornal, com o mesmo nome, apenas apareceu três anos depois. Na altura, ainda com o estatuto de vila, também Ermesinde sofria com as consequências indiretas da Segunda Guerra Mundial, na qual Portugal não participou.

O professor de História, Manuel Augusto Dias, conta como foi esse período marcado pela fome e pela pobreza: “Na década de 50, a crise formalizou-se”, “Salazar vendeu alimentos que dizia que eram as sobras de Portugal. Afinal eram as falhas, faltou comida a muita gente, houve racionamento de comida em Portugal e, portanto, gente mais pobre em meios mais urbanos, sem apoio, que passava por uma situação complicada”.

A “sopa dos pobres” era, então, uma sopa distribuída, diariamente, aos pobres e o jornal surgiu pela necessidade de divulgar a iniciativa e ajudar a pagar o custo dos alimentos. “Era necessário pagar alimentos, às vezes, oferecidos, utensílios e pagar à gráfica”, “quando aparece, era uma folha dobrada, as condições eram outras”, comenta o professor.

De volta ao papel de diretor e aos anos mais recentes, Manuel Augusto Dias refere que a imparcialidade é constante, mas que se não fosse o apoio financeiro do Centro Social de Ermesinde e alguns apoios governamentais para a comunicação social, “A Voz de Ermesinde” teria dificuldades em sobreviver e continuar a “dar voz às pessoas”. “Temos dezenas de jornais em que não temos nenhuma notícia do Centro Social e eles têm muitas valências”, defende o diretor.

Para Manuel Augusto Dias, no geral, o jornal regional “ainda tem alguma razão para sobreviver, e em papel, porque essas pessoas que emigraram, mais antigas, também estão ainda habituadas ao papel e alguns colecionam”. “Se continuarmos a ter pessoas que continuem a escrever gratuitamente, não me parece que da instituição haja vontade, para já, de acabar com o jornal, até porque no concelho não há mais algum que tenha 63 anos”, “começa a ser um orgulho manter”, defende o diretor.

Na região, como é referido na milésima edição de “A Voz de Ermesinde”, apenas existiram duas tentativas de criação de um jornal. A “Gazeta de Ermesinde” foi lançada, em 1956, como suplemento de outro jornal, o “Jornal de Felgueiras“, com sete ou oito publicações e, no mês seguinte, o “Jornal de Ermesinde”, que só contou com uma edição.

“A gente não pode prever o futuro com rigor, especialmente na imprensa escrita, mas quero acreditar que ‘A Voz de Ermesinde’ ainda vai durar muitos anos”, perspetiva Manuel Augusto Dias.

Artigo editado por Filipa Silva