No Dia Mundial do Livro, que se comemora esta sexta-feira (23), o JPN foi perceber como é que os livros podem ter um poder terapêutico e ser uma ferramenta para trabalhar as emoções, a saúde mental e a própria vida.

Em 2017, o ex-presidente norte-americano Barack Obama disse ao “New York Times que os livros o ajudaram a gerir os oito anos de presidência. “Num tempo em que a política tenta gerir o choque entre culturas, fruto da globalização, do desenvolvimento tecnológico e da emigração, o papel das histórias para unire não para dividir, para incluir, em vez de marginalizar – é mais importante do que nunca”, referiu o antigo presidente norte-americano. Nesta frase de Obama está plasmada uma ideia: o poder dos livros vai muito para além da instrução.

Em Portugal, Maria do Rosário Pontes lecionou disciplinas de Literatura durante muitos anos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante o percurso académico, o interesse pelo poder dos livros foi surgindo e descobriu a biblioterapia. Mais tarde, começou a dar formações a bibliotecários, professores e psicólogos sobre o assunto. Apesar de no presente não estar a dar formação, o interesse pelo poder terapêutico dos livros e a vontade de voltar ao ativo continuam vivos.

A docente explica ao JPN que a biblioterapia já era usada na época de Platão, mas é preciso chegar à Primeira Guerra Mundial para encontrar as “primeiras experiências concretas de biblioterapia”. Em 1916, os médicos e bibliotecários do Hospital Militar de Alabama (EUA) “utilizaram os livros para tratar e aliviar os soldados dos traumas de guerra”, conta a professora que nos guia numa viagem no tempo pela evolução desta terapia.

Na década de 50, começam a surgir pesquisas sobre a biblioterapia nas áreas da enfermagem, assistência social e educação, principalmente nos EUA e no Canadá. Mais tarde, em 1961, surge a definição de biblioterapia – “uso de um conjunto de leituras selecionadas como ferramentas em medicina terapêutica e psiquiatria, e um meio para resolver problemas pessoais através de uma leitura guiada”, segundo o Webster Dictionary.

o livro pode ser em geral uma boa companhia terapêutica, que nos acompanha na busca de respostas novas para situações de vida

Em 1970, “as experiências multiplicam-se e investe-se na área da saúde mental na Europa e nos EUA”, refere a docente.  A prática da leitura começa a ser aplicada aos “idosos, indivíduos com distúrbios alimentares ou a crianças com problemas na infância”. “Desde a década de 1980 e até hoje, bibliotecários hospitalares norte-americanos e europeus mantiveram e incentivaram esta prática médica”, esclarece a professora. No novo milénio, assiste-se a “uma espécie de institucionalização da biblioterapia, gradualmente tornada possível por pesquisadores e organizações inglesas e norte-americanas, mas não só”, afirma Maria do Rosário Pontes.

Estão abertas as inscrições para a 4ª edição do Book Camp 2019.Para a antiga docente da Universidade do Porto, “o livro pode ser em geral uma boa companhia terapêutica, que nos acompanha na busca de respostas novas para situações de vida”. Embora reconheça que os livros não são a única forma para fazer terapia, admite que a “biblioterapia oferece-se como espaço nobre para que todas as pessoas possam acabar por fazer da sua biografia uma história dotada de sentido”.

Mas como é que os livros podem ajudar na gestão de emoções? A professora deixa várias respostas. A interação entre “o leitor e o texto escrito” pode “aliviar a pressão psíquica”, “ajudar a lidar com sentimentos de raiva, frustração, solidão, tristeza e medo”. Para além disso, a leitura pode “aumentar a autoestima”, pois o leitor pode perceber que o seu próprio problema já foi vivido por outros e, consequentemente “diminuir a intensidade da dor individual” e “ampliar a visão e o conhecimento de diversos pontos de vista”. Assim, a leitura pode levar o leitor a “repensar as suas emoções em paralelo com as emoções dos outros”, remata a professora.

Trabalhar as emoções e os problemas na adolescência através dos livros é prática em algumas escolas em Portugal e o JPN foi conhecer alguns projetos.

Entre a escola e a família os livros são a ponte

Telma Barros é enfermeira de profissão, mas foi enquanto membro da Associação de Pais do Centro Escolar Figueiró, no concelho de Paços de Ferreira, que propôs um projeto de biblioterapia à direção da escola. “Eu sou completamente apaixonada por livros e acho que os livros têm uma importância enorme na nossa vida e nas crianças e considero que é importante cultivar desde muito cedo este amor pelos livros e pela leitura”, refere.

A paixão pelos livros remonta à adolescência, que não foi fácil, e os livros foram o seu porto de abrigo.  “Os livros tiveram uma importância muito grande na minha vida. E acho que me ajudaram a ser a pessoa que sou hoje. A minha adolescência não foi muito fácil e eu acabei por me refugiar um pouco na leitura e nos livros”. Assim, os livros foram uma forma de “escapar e de viajar para outros universos”, lembra em conversa com o JPN.

Desta forma, em 2017, propôs o projeto “Crescer com Histórias” aos membros da Associação e à Direção do Centro Escolar. Recorda que a ideia foi aceite de imediato e explica que o objetivo é “levar histórias às salas de aula e envolver os pais e professores”, além de “criar o gosto pelos livros e pela leitura” nas crianças com idades entre os três e os dez anos. Todos os meses é lançado um tema, geralmente relacionado com algum dia comemorativo ou com aspetos da inteligência emocional. De seguida, cada turma ouve uma história lida por um encarregado de educação.

Livros

Telma Barros explica que no final da leitura os pais tentam criar uma dinâmica relacionada com a história. “Quando escolhemos falar sobre as emoções, por exemplo, tentámos escolher livros que falassem de todas as emoções, para haver uma certa literacia emocional e para [os alunos] conseguirem identificar as suas emoções”, esclarece a enfermeira.

“Por exemplo, para os mais pequeninos, escolhemos ‘O Monstro das Cores‘, de Anna Llenas. Nos mais crescidos escolhemos ‘O Novelo da Emoções‘, de Elizabete Neves. E no final, fizemos uma atividade em que [os alunos] tinham de identificar momentos em que se sentissem tristes, em que sentiam raiva, alegria”, exemplifica.

Telma Barros afirma que com a participação dos pais é possível “criar uma ligação de colaboração e de proximidade com os professores”. A enfermeira acredita que este projeto está a deixar “a sementinha, em cada menino do gosto pelos livros e pela leitura”. Recorda relatos dos professores que contam que, muitas vezes, os alunos passam por certas situações e fazem uma alusão às personagens dos livros contados pelos encarregados de educação. “Os professores dizem que eles, em alguns contextos, lembram-se da história e dizem ‘foi como na história que ouvimos’”, remata.

Com a pandemia, o projeto teve de ser readaptado e, atualmente, cada encarregado de educação grava a leitura e, de seguida, os professores projetam o vídeo nas respetivas salas de aula.

Os livros como forma de resgate

Natalina Araújo é psicóloga no Agrupamento de Escolas de Monte da Ola, em Viana do Castelo. O agrupamento está incluído no âmbito dos programas TEIP – Território Educativo de Intervenção Prioritária. A psicóloga explica que o agrupamento é frequentado por crianças e jovens provenientes de “meios socioeconómicos e culturais desfavorecidos, nomeadamente de etnia cigana com baixos níveis de sucesso escolar e problemas de assiduidade”.

Para combater estes problemas, o gabinete de psicologia tem várias abordagens, entre as quais a terapia através dos livros para trabalhar aspetos socio-emocionais, além de fortalecer a saúde mental dos alunos. Isto porque a psicóloga acredita que as “histórias têm o poder de cativar as crianças, de as envolver, de as emocionar e de elas se identificarem com as personagens das histórias”.

“O herói nas histórias tem muitas vezes situações complexas ou familiares, ou algo trágico que lhe acontece. E depois vai conseguindo superar com a ajuda de outros personagens”, justifica a psicóloga. Desta forma, entende que os livros “permitem desenvolver a esperança e o sentido de que é com os outros que nós também crescemos e nos desenvolvemos”. Para além disso, os livros podem ser uma ferramenta para os mais jovens resolverem os “dilemas” e “questões emocionais” que possam causar alguma “perturbação”.

histórias têm o poder de cativar as crianças, de as envolver, de as emocionar e de elas se identificarem com as personagens das histórias

O trabalho da psicóloga tem incidido no ensino pré-escolar e no primeiro ciclo do ensino básico e são organizadas sessões por turmas. Natalina Araújo dá conta de que já foram “dinamizadas ações sobre a gestão da raiva, do stress e do luto”.  A partir da leitura de um livro ou texto sobre um determinado tema, é dinamizada uma conversa com os alunos para discutirem o tema. A psicóloga dá o exemplo de uma atividade que foi feita com base num livro sobre famílias diferentes e que depois dessa sessão alguns preconceitos foram derrubados, já que as crianças começaram a abordar de “forma natural a diversidade das famílias”.

É por causa deste impacto nos alunos que Natalina Araújo acredita que as histórias ajudam a “criar uma visão do mundo mais humanista”, porque “os livros apresentam a diversidade”.

Os livros são “magias portáteis capazes de mudar o mundo”

Livros gratuitos para alunos do primeiro ano para o ano letivo 2016/2017

Paula Gomes é professora de Português na Escola Básica e Secundária Leonardo Coimbra – Filho,no Porto. À semelhança do agrupamento de Viana do Castelo, também este estabelecimento faz parte do programa TEIP. “Temos um grau de indisciplina muito elevado, porque [os alunos] trazem para a escola graves problemas afetivos, familiares e sociais”, explica a docente. Por isso, “trabalhar os valores e a cidadania é fundamental e só assim é que conseguimos chegar até eles”, dá conta.

A professora explica que nesta escola os manuais escolares não são presença regular, uma vez que parte do currículo escolar é feito através de projetos. Tal é possível porque, em 2018, o Ministério da Educação emitiu um decreto de lei – o Decreto-Lei n.º 55/2018 – que permite às escolas “autonomia para um desenvolvimento curricular adequado a contextos específicos e às necessidades dos seus alunos”, pode ler-se no documento. Desta forma, 25% do currículo pode ser gerido pelos estabelecimentos de ensino.

trabalhar os valores e a cidadania é fundamental

Com esta alteração, Paula Gomes refere que foi possível adotar um projeto que é trabalhado de forma transversal em todas as disciplinas. O Conselho Pedagógico decidiu como grande tema para este projeto o mote “Interculturalidades”, uma vez que, na visão da professora, “nunca fez tanto sentido a interculturalidade, a resiliência, a aceitação da diferença”. Dentro deste tema, são selecionados outros subtemas.

A professora dá o exemplo do poema “Lágrima Preta” de António Gedeão que serviu de mote à discussão do racismo nas aulas de Português. Nas aulas de História, foi feito um trabalho de investigação sobre George Floyd. No passado mês de janeiro foi trabalhado o texto “A Estrela de Erika” de Ruth Vander Zee e Roberto Innocenti nas aulas de Português. Em Matemática e em Educação Visual os alunos fizeram origamis (símbolos da paz que simbolizam a superação após as bombas de Hiroshima e Nagasaki).

Com este projeto, que existe desde o presente ano letivo, a professora nota “muita envolvência” por parte dos alunos. Apesar de confessar que é um “trabalho difícil e que os resultados vão se vendo paulatinamente”, não esconde a felicidade quando os alunos lhe pedem sugestões de livros para conseguirem ultrapassar os seus próprios problemas.

“Nós temos textos disponíveis sobre igualdade de género e temos alunas com problemas nesse sentido e perguntam ‘oh professora, o que acha que eu deva ler?’ Ou outros alunos que perguntam se temos livros sobre a homossexualidade”.  Paula Gomes diz que “ganha o dia” quando um aluno, por exemplo, lhe diz que “não conseguia parar de ler um livro e nem queria ir dormir”. Nesta escola, os livros são magias portáteis capazes de mudar o mundo.

Artigo editado por Filipa Silva