Um ano depois dos educadores do Serviço Educativo da Fundação de Serralves terem contestado a sua precariedade laboral, os julgamentos em tribunal estão a decorrer. À causa dos arte-educadores, já se juntaram os técnicos de museologia e as equipas de receção e assistência de sala. O JPN foi conhecer dois rostos desta luta: Inês Soares, arte-educadora, e António, rececionista.

A pandemia de COVID-19 ecoou um tema já antigo na Fundação de Serralves.  A precariedade dos trabalhadores é cada vez mais exposta e as contestações dos mesmos alastram-se. Os primeiros a abrir caminho para este debate foram os arte-educadores, em abril de 2020, que se identificaram como falsos recibos verdes. Depois, os técnicos de museografia e, em último, os rececionistas e assistentes de sala que fizeram uma denúncia à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), em outubro de 2020, declarando-se como falsos outsourcings

Vamos por partes. Comecemos pelos arte-educadores. O Serviço Educativo da Fundação de Serralves existe desde 1989 e era formado por 28 membros: 25 educadores, alguns deles a trabalhar lá desde 1992, sempre a recibos verdes. O problema não surge por estarem neste formato de trabalho, mas sim por, na prática, as regras laborais implementadas não coincidirem com as de um trabalhador a recibos verdes. 

Para entendermos melhor o cenário, é essencial colocar os pontos nos i’s. Ser um trabalhador a recibos verdes significa ser independente. Isto é, não é um trabalhador da entidade empregadora, mas presta serviços para a mesma. Por exemplo, uma pessoa a recibos verdes não obedece às mesmas regras do que os trabalhadores do quadro da empresa. Tem a liberdade de decidir quais os métodos e meios de trabalho, não obedece a hierarquias da empresa a quem presta os serviços e não se encontra sujeito a um horário e/ou um período mínimo laboral (a não ser que isso resulte da aplicação direta de normas de direito laboral)

Os arte-educadores da Fundação de Serralves alegaram obedecer a uma hierarquia (recebiam ordens da administrativa, coordenadora e produtora). Para além disso, o horário que praticavam era definido semanalmente pela instituição, sendo que tinham de disponibilizar, obrigatoriamente, 3 dias ou 6 turnos (cada turno corresponde a uma manhã ou tarde). Quando pretendiam realizar um trabalho externo ao da Fundação tinham de avisar com um mês de antecedência. Exerciam as funções nas instalações de Serralves e utilizavam os seus materiais.  

Em abril de 2020, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) realizou uma inspeção à Fundação, à qual concluiu, numa fase inicial, que não se verificava nenhuma ilegalidade. No entanto, essa primeira análise foi muito limitada, por forças da pandemia de COVID-19 que levou ao encerramento das atividades de Serralves desde o dia 13 de março do mesmo ano. Por essa razão, não foram ouvidos nem trabalhadores, nem  administração. A inspeção teve uma segunda fase, quando as atividades retomaram e, dessa vez, foram detetados 21 casos, dos 32 prestadores de serviço contactados, onde a ACT afirmou “existirem indícios de uma relação de trabalho subordinado”.

Nessa segunda fase da inspeção os trabalhadores foram ouvidos, mas a administração não. De acordo com um artigo do jornal Público, Ana Pinho, Presidente do Conselho de Administração, contestou a atuação da ACT por esta não os ter ouvido. Ainda assim, os casos de falsos recibos verdes foram identificados e foi atribuído um limite para a administração legalizar as situações de irregularidades laborais. O qual não fez e deixou que o processo seguisse para o Ministério Público. 

Inês Soares tem 28 anos, é formada em Artes Plásticas e trabalhava como arte-educadora no Serviço Educativo da Fundação de Serralves desde 2018. Porém, a sua história com a instituição já vem desde 2015, quando começou a trabalhar como assistente de sala e, depois, como rececionista. Confessa: “Creio que já chegamos todos a uma situação limite em que não dá mais para fechar os olhos e, no caso dos educadores, tomamos esta posição porque não tínhamos nada a perder.

E, ainda que não vençam esta batalha, vão continuar a exigir aquilo que, por direito, é deles: “Mesmo que percamos em tribunal, nós vamos continuar com as nossas reivindicações e com a nossa luta porque esta é uma situação de verdadeiro contrato de trabalho. Para além do mais, não são apenas questões legais que estão em cima da mesa. Neste momento, são também questões éticas às quais Serralves não pode continuar a fechar os olhos.”   

A ilustradora conta que a equipa de 25 educadores não rodava ao longo do ano, sendo um núcleo fixo da Fundação, e explica: “Tínhamos que dar o mínimo de 3 dias por semana de disponibilidade, sem qualquer garantia de termos trabalho e sem qualquer compensação financeira por disponibilizarmos esses dias.” Conta ainda que o trabalho da equipa vai muito além da interação direta com o público: “implica, não só as visitas guiadas e as oficinas artísticas, mas também a conceção das atividades do programa educativo. Todas as atividades que compõem a brochura fomos nós que as concebemos.”

Inês Soares refere que, ainda que agora não exista: “Serralves deixou de contactar-nos à demasiado tempo, por isso é que também partimos para uma denúncia à imprensa em abril do ano passado”, até se chegar a este limite houve procura de diálogo entre os arte-educadores e a Fundação, ainda que pouco eficiente:  “No entanto, houveram tentativas de diálogo connosco. Tentativas muito infelizes, devo dizer.”

Por volta dos meses de abril e maio as direções reuniram com os educadores e comunicaram que não havia perspetivas de trabalho, tal como nos explica a artista plástica: “Não sabiam dizer-nos se sim ou se não. Se estávamos descartados totalmente ou se poderíamos voltar a Serralves, portanto, deixaram-nos num limbo absoluto em que teríamos de continuar a depender da palavra de Serralves para avaliar se seria pertinente arranjar outro trabalho ou não.

A resolução do problema através da comunicação entre as duas partes parece já não ser uma opção : “Há uma falha de comunicação absoluta connosco. Serralves continua a dar-nos um tratamento de silêncio e nós desistimos de falar com a Fundação porque não sai nada dali. É um diálogo de um só canal, de uma só via”, relata a ilustradora. 

Inês Soares esclarece-nos uma bipolaridade que aparece existir na postura da Fundação de Serralves. Se, numa perspetiva de valorização, a administração reconhece a importância da formação dos arte-educadores: “Também é importante perceber que um dos critérios para integrarmos a equipa de educadores é, precisamente, esta experiência fora de Serralves. Muitos de nós são professores ou artistas plásticos, historiadores, arquitetos, antropólogos, precisamente, porque Serralves reconhece que isto é uma mais valia para o seu programa educativo e, muitas vezes, o reconheceram publicamente”, agora essa relevância parece não existir: “Embora sintamos agora que Serralves tenha dito isto apenas para ganhar a candidaturas de financiamento porque a forma como nos tratou não reflete, de todo, esse respeito e essa mais valia que considera que nós somos.”

A artista plástica comenta que a equipa estava a preparar um projeto exclusivo com a Fundação de Serralves e a Câmara Municipal de Porto. É com frustração que nos esclarece que está a ver esse projeto avançar, enquanto os seus autores estão a ser deixados para traz: “Um projeto nosso com escolas profissionais e que implicava a parceria da Câmara do Porto e Serralves… tivemos esse trabalho apropriado. Serralves pediu-nos exclusividade por 2 anos, ou seja, até 2021. E, qual é a nossa surpresa quando recebemos um e-mail de um professor a mostrar que este projeto avançou e que nós não constamos, apesar de estarem aqui em causa direitos de autor.”

Há cerca de um ano que as atividades estão encerradas na Fundação de Serralves, consequente da pandemia de COVID-19. Há cerca de um ano que diversos trabalhadores de Serralves ficaram quase sem rendimentos: “Alguns de nós têm recebido apoios, eu própria vou no meu terceiro apoio da Segurança Social porque com Serralves eu obtinha mais de 90% do meu rendimento. Outros, felizmente, vão tendo algum trabalho” afirma Inês Soares.

O caso arrastou-se até ao Ministério Público. Inicialmente, as ações estavam previstas decorrer entre 8 e 25 de março, mas prolongaram-se. A artista plástica, Inês Soares, apenas lamenta que a situação se tenha arrastado até aqui: “Acho lamentável ao ponto a que isto chegou. Se tivesse havido um diálogo absolutamente transparente desde o início, muita coisa poderia ter sido diferente. Por um lado, ainda bem que chegou a este ponto porque as pessoas  estão a perceber o que é que se passa realmente em Serralves.”

Depois da denúncia dos arte-educadores, também outros grupos de trabalhadores da Fundação denunciaram a precariedade laboral a que estão sujeitos. A mais recente foi a das equipas de receção e assistência de sala. A pessoa com quem o JPN falou pediu anonimato. Será denominado pelo nome António e este nome não vem ao acaso. 

“Chamo-me António”

António trabalha com a Fundação de Serralves há 4 anos, ou trabalhou. Até então, através de uma empresa de outsourcing, a Egor. Desde que as denúncias por parte das equipas de receção e assistência de sala começaram, nunca mais foi chamado para nenhum trabalho: “Em Serralves suspeitam que eu sou a cabeça do grupo e já fui excluído das minhas funções porque estou a recibos verdes”, afirma. Ainda que tenha mantido anonimato.

Pediu especificamente para o designarmos como António e, mais tarde, explicou-nos o porquê: “Criei um perfil que se chama “Chamo-me António” porque, quando fiz a minha primeira entrevista, deram-me esse nome fictício. A partir daí, começaram a surgir pessoas solidárias connosco,  que começaram a comentar nas publicações de Serralves:  «Eu chamo-me António».  Na página são colocados testemunhos de funcionários, ex-funcionários e situações que se passaram em Serralves.”

A dispensa dada a António por reclamar os seus direitos laborais é o reflexo daquilo que muitos trabalhadores têm receio: “Todos os meus colegas que não se juntaram a mim tinham medo exatamente por estas represálias. No fundo, todos tinham medo de perder o seu posto de trabalho, o que explica o silêncio durante tanto tempo: “Isto foi sempre algo que nós quisemos fazer, mas nunca tivemos coragem porque o nosso lugar ali é sempre muito instável”, confessa. É a política do “Não estás bem, vais para a rua”, e quem lá está chega mesmo a sentir “como se nos estivessem a fazer um favor porque estavam-nos a dar trabalho e na Fundação de Serralves”, diz-nos António.

A primeira denúncia feita pelos arte-educadores foi, para o grupo de rececionistas e assistentes de sala, uma luz de esperança que deu coragem para que, finalmente, trouxessem à luz do dia toda a precariedade que vivem:  “Alto lá! Parece que, afinal, talvez se possa ter a ousadia de realmente mostrar que nós não estamos bem, que precisamos de ajuda e que isto não está certo. Não é legal.” 

António trabalha na Fundação através de uma empresa de outsourcing, a Egor. Isto quer dizer que António não é funcionário de Serralves, mas sim da Egor, empresa que presta serviços à Fundação. No entanto, o rececionista explica-nos que, muitas das vezes, desempenhavam funções internas que iam muito além das funções de loja, livraria e bengaleiro: “Nós somos muitas vezes, também por causa dos nossos conhecimentos, o que mostra a importância de ter funcionários da casa a exercer estas funções, contratados diretamente para fazer funções internas. Estamos a dar apoio interno a departamentos, que são vários, por prazos prolongados, onde já não existe Egor.”

Trabalham como se de funcionários de Serralves se tratassem: usam os materiais da casa, picam cartão, são-lhes definidos objetivos mensais e alguns têm vários anos de casa: “Temos colegas que estão a trabalhar lá há oito, dez anos. Como é que eles justificam o facto de estarem a contratar uma empresa de outsourcing, de trabalho temporário, onde há uma constante aprendizagem, métodos que ficam diferentes… há uma linha contínua de aprendizagem de coisas que depois têm de ser exercidas”, explica-nos o rececionista.

No entanto, “Se houver algum problema, é com a Egor, nunca é com a Fundação… mas é sempre com a Fundação. No fundo, somos da Fundação, só que temos um contrato com uma empresa diferente” relata-nos António e acrescenta que A Egor é apenas um intermediário para haver uma espécie de poupança para a Fundação em relação aos funcionários.”

O grupo de trabalhadores apresentou uma queixa à Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) no dia 22 de outubro de 2020. Foi realizada uma visita inspetiva, ainda que muito pobre, mas até à data da entrevista com o JPN, ainda não tinham obtido uma resposta.

A luta continua, com a segurança de que “Nós não temos condições e nós merecemos. Nós não estamos a fazer um favor a ninguém, nós estamos a trabalhar. Trabalhamos muito, então isto é merecido”, diz-nos António.

Os trabalhadores de Serralves têm contado com o apoio de diversos partidos, nomeadamente, com o Bloco de Esquerda, o PCP e o Partido Socialista. A manifestação dos trabalhadores de Serralves luta pelo combate à precariedade laboral, um cenário frequente no setor da cultura. Também os trabalhadores da Casa da Música manifestaram a sua insatisfação, uma luta que, aliás, começou antes da dos trabalhadores de Serralves.

Artigo editado por João Malheiro