Soube que queria ser escritor, ainda em criança, quando percebeu que os livros não se escreviam sozinhos. Itamar Vieira Júnior é um dos autores de língua portuguesa de maior sucesso nos últimos anos, acumulando prémios em Portugal e no Brasil. Em entrevista ao JPN, o autor nascido na Bahia, há 41 anos, revela que continua a alimentar esse espanto original que só a literatura provoca.

Quando viajou da Bahia para Portugal, em 2019, para se apresentar na edição desse ano do Correntes d’Escritas, Itamar Júnior trazia já na bagagem o prémio Leya de 2018 por “Torto Arado “, o seu romance de estreia, que lhe valeu reconhecimento imediato em terras lusas.

O escritor recorda, ao JPN, um acontecimento que o marcou na passagem pelo festival literário da Póvoa do Varzim. A escritora Lídia Jorge, cruzando-se com ele no corredor, aplaudiu o seu posicionamento como escritor-ativista e a sua defesa de princípios políticos através da literatura. “Guardei o que ela disse com muito afeto”, lembra Itamar.

O ativismo como resposta à desesperança

A política e a literatura são indissociáveis, porque a literatura espelha sempre aquilo que “o autor pensa sobre o seu tempo”. Itamar Júnior assume-se como um escritor de causas, comprometido com o mundo que o rodeia: “Não tenho nenhum problema com o rótulo de escritor engajado”, afirma.

O autor baiano critica de forma particular líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que acusa de serem “autocráticos” – eles “flertam com o totalitarismo e vêm corroendo a democracia”.

A sua voz, até aí tranquila, ganha uma certa rispidez para apelar à vigilância dos cidadãos: “Vivemos uma crise aguda da democracia” e cada um tem que fazer a sua parte, defende. “Precisamos de ser a transformação que queremos para o mundo. Então precisamos de começar agora, naquilo que fazemos. Conversando, escrevendo, atuando.”

Precisamos de ser a transformação que queremos para o mundo.

São as personagens que movem o texto

Itamar Vieira Júnior sublinha, porém, que o livro não começa na vontade de tratar certos temas pensados apriori, mas na “vontade de contar uma história”. Em vez dos temas moverem as personagens, dá-se o inverso: esta é “movida antes de mais nada pelas personagens”.

O seu projeto literário consiste em aproximar a literatura do quotidiano, contexto a partir do qual “temas que são importantes no nosso tempo vão aparecer, vão-se refletir na narrativa”, porque as “personagens não estão vagando no ar, têm um mundo, uma realidade ao seu redor.”

As páginas da história da diáspora africana que continuam por escrever

“Torto Arado” (Leya, 2018) conta a história dos quilombolas, uma comunidade de descendentes de escravos que vivem no interior nordestino do Brasil.

Capa de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, vencedor do Prémio Leya em 2018. Miguel Marques Ribeiro

O livro relata o seu esforço para sobreviver num contexto de grande dificuldade, o arreigamento às tradições culturais e religiosas em que se misturam referências africanas e indígenas, a luta para se libertarem dos resquícios do esclavagismo, muito presente ao longo do século XX, e ainda hoje, na sociedade brasileira.

Ao dar voz a estas pessoas, na maioria, analfabetas, a viver em terrenos cedidos por fazendeiros em troca de trabalho braçal, sem direito a receber um salário ou a construir uma casa de alvenaria, que possa perdurar mais que uma geração, Itamar Júnior aproxima-nos de um mundo que, a pouco e pouco, vamos intuindo ser perturbadoramente atual.

Temas como a violência sobre a mulher, a exploração laboral, ou o movimento operário no Brasil vão aflorando ao longo do livro. Há, contudo, uma problemática que antecede (e enforma de certo modo) todas estas: a diáspora africana e o regime de escravidão que ela impôs. “Eu falo a partir do continente americano e, para a formação da nossa sociedade, a diáspora africana teve uma importância incontornável”, afirma.

Sem olhar de frente esse movimento histórico que arrancou milhões de pessoas dos seus lugares de origem no continente africano e os deslocou, em condições sub-humanas, para a América, onde viriam a desempenhar trabalho escravo, não é possível “compreender as desigualdades sociais em que a América Latina e do Norte, os Estados Unidos principalmente, estão hoje mergulhadas”.

Itamar está convencido que o Brasil preservou até hoje, através de “uma pequena oligarquia”, esse regime colonial e escravocrático: “[ainda somos] colonizadores de nós mesmos”.

Jacques Roumain, Maryse Kondé, Jamaica Kincaid, Toni Morrison, Alice Walker ou James Baldwin, autores latino-americanos, norte-americanos e caribenhos que tratam estes temas, são assim referência para o seu percurso literário.

Agarrar o fio que o liga aos seus antepassados indígenas e africanos

Itamar tem antepassados negros, indígenas e também portugueses. Escrever um texto como “Torto Arado” é “uma forma também de conectar com o passado, com a ancestralidade e com a história”, admite.

O escritor sublinha, contudo, uma diferença de fundo entre a memória histórica da sua ancestralidade europeia, em comparação com a africana e ameríndia. A história dos seus trisavós minhotos, que chegaram ao Brasil no início do século XX, “está documentada. Eu sei a origem, a região de onde vieram”.

A História quase sempre foi contada pelos vencedores, por quem tinha poder.

Já a a história dos seus antepassados negros e indígenas (a etnia a que pertencem, o seu local e nome de nascimento, a história de que são tributários) “foi apagada de inúmeras formas, seja pela colonização, seja depois pelo próprio estado brasileiro que era dominado por uma elite que guardava ainda um ranço da colonização”.

A literatura surge como uma via possível “de resgatar essas histórias“. “Ainda que seja de maneira ficcional, mas conseguimos compreender na subjetividade que a literatura nos dá, o que pode ter sido esse processo e de que forma nos atinge ainda nos nossos dias”.

O lugar das estátuas dos escravocratas deve ser nos museus

Deste modo, não há como evitar uma revisitação crítica da História, conclui o escritor: “A História quase sempre foi contada pelos vencedores, por quem tinha poder, por uma elite e muitos dos sentimentos que não faziam parte dessa elite, desse grupo, ficaram de fora como se não tivessem existido”. Hoje é preciso “compreender essa História a partir do olhar do outro”.

A forma como as sociedades europeias, nomeadamente a portuguesa, continuam a encarar este período da História, a partir de um olhar complacente com o esclavagismo e a colonização, é bem ilustrado pelas polémicas que surgiram, nos últimos anos, em Portugal, em torno do Museu da Descoberta e da estátua do Padre António Vieira.

“A descoberta e colonização daqueles países poderia ser algo natural para aquele tempo, mas para os povos originários, para quem estava aqui [no Brasil] foi mais uma invasão. Fomos ocupados por um povo externo aos povos originários brasileiros e essa colonização foi traumática de inúmeras formas”, sublinha o escritor.

Itamar identifica-se com a reivindicação de que as estátuas de antigos escravocratas sejam removidas: “Não é mais concebível que no espaço público possamos transitar em monumentos que são uma homenagem à violência”. Deveriam estar em museus, devidamente contextualizadas, defende.

O escritor está convencido que uma mudança de perspetiva sobre este tema é inevitável. “Uma coisa que eu percebi, de muitos portugueses, leitores que eu encontrei, pessoas com que eu debati e discuti, é o interesse nessa revisão histórica. A sociedade portuguesa não é refratária a isso”, acrescenta.

Um percurso de múltiplas vocações que enriquece a escrita

Nesta fase da sua vida, ainda não consegue dedicar-se exclusivamente à escrita, pois não seria possível assegurar a sua subsistência económica apenas por essa via. Itamar continua assim a trabalhar como geógrafo para o Estado brasileiro, essencialmente com comunidades rurais nordestinas. A necessidade de compatibilizar a escrita com uma atividade profissional diária obriga-o a ser muito disciplinado.

Escrevo todos os dias e tem dias em que escrevo duas, três páginas. Tem dias em que eu escrevo apenas um parágrafo. Às vezes eu paro numa frase e fico a remoer, a refletir, e no dia seguinte escrevo mais. Esse rigor, essa disciplina é importante para chegar ao fim de qualquer projeto literário”.

[“Torto Arado] faz da oralidade um poderoso projeto estético e literário.

Estas obrigações profissionais têm também, contudo, um retorno positivo: “Muitas das coisas que atravessam a minha literatura foram alimentadas por esse contacto que eu tenho com o mundo rural do Brasil“.

Para além da sua atividade como geógrafo, Itamar fez investigação académica no mundo rural com as comunidades de quilombolas, uma atividade que foi essencial para o processo de apropriação cultural e até linguística do povo que é retratado em “Torto Arado: “Tenho quase uma centena de horas de gravação. Enquanto as transcrevia para trabalhos académicos ou relatórios administrativos do serviço público, eu escutava aquele ritmo, aquele falar”.

Começou a escrever a primeira versão de “Torto Arado ainda na adolescência. O projeto acabou por ser interrompido, em parte porque não estava totalmente satisfeito com o resultado.

Foi o contacto direto com a vida dos quilombolas que clarificou o sentido que “Torto Arado haveria de adotar: fazer da “oralidade um poderoso projeto estético e literário”.

Ao contrário da primeira versão, escrita na terceira pessoa, a versão amadurecida é narrada na primeira pessoa pelos próprios intervenientes e com a preocupação de manter “algumas características que se verificam na oralidade, sobretudo no interior do nordeste brasileiro”.

O escritor baiano dá o exemplo do uso do pretérito mais-que-perfeito, que não é usado naquela região, e por isso ele decidiu exclui-lo da obra. Ou da preferência dada à próclise (colocação do pronome antes do verbo) em detrimento da ênclise (colocação do pronome depois do verbo), pois essa é a forma como essas populações se exprimem.

Opções que, no seu entender, lhe permitiram “aproximar a narrativa da oralidade” e o texto do leitor.

O sucesso em linha reta de “Torto Arado

O percurso do romance tem superado todas as expectativas, êxito que Itamar atribui, em parte, a essa capacidade de “falar diretamente com o leitor”.

Em 2018, venceu o prémio Leya. Um galardão ao qual concorreu porque não tinha forma de publicar o livro no Brasil: “O meu livro é tão brasileiro, fala de uma realidade tão nossa, não é? O interior do nordeste. (…) Não vai prosperar em Portugal, pensei. E fui surpreendido com o anúncio do prémio”.

Este reconhecimento, admite, mudou a forma de encarar a própria atividade de escritor: “Quase que me profissionalizou como escritor”. Foi também fundamental para o próximo passo: A sua publicação no Brasil.

E “Torto Arado conquistou de imediato o país natal do escritor, vencendo a edição 2020 dos prémios Jabuti e Oceanos.

Espero guardar a ingenuidade, a ansiedade da primeira vez, ao escrever.

Desde a publicação no Brasil, há cerca de ano e meio, foram vendidos mais de 130 mil exemplares do romance. O livro lidera ainda a tabela dos mais vendidos no Brasil, na categoria de ficção.

Os prémios ajudaram a obra a tornar-se mais conhecida e apetecível para o leitor, mas Itamar espera que não mudem a sua relação com a escrita: “Espero guardar a ingenuidade, a ansiedade da primeira vez, ao escrever”.

O lado menos brilhante do êxito

O livro vive agora um processo de internacionalização, conquistando novos públicos. Em Itália, já circula uma edição desde o ano passado. Noutros países há também versões do livro a caminho: no México, na Colômbia, na Bulgária, na Croácia e na Eslováquia, bem como traduções já contratualizadas para inglês, alemão e francês.

A internacionalização é o que cria maior perplexidade em Itamar: “Num país tão urbano como a Alemanha, com as pessoas tão afastadas do campo, o que desperta interesse no livro?”.

Há também um projeto audiovisual em curso, dirigido por Heitor Dhalia, que “só não avançou mais, porque temos vivido esse momento tão difícil da pandemia”. Itamar ainda não sabe se o mesmo resultará numa minissérie ou num filme.

Todo este êxito tem contudo um lado menos brilhante: Dar entrevistas e falar sobre o livro rouba-lhe tempo precioso para escrever. “Eu até brinco. Se eu não tivesse vencido o prémio Leya, talvez eu já tivesse outro romance pronto”.

Itamar promete, à semelhança do que fazia José Saramago, reservar três meses por ano para atender a compromissos de divulgação do trabalho literário. Os restantes meses serão dedicados exclusivamente à escrita: “Acho que ganha o autor e também os leitores que terão material novo para ler”.

O novo livro versará sobre o papel da Igreja na escravatura brasileira

Para já, vai-se embrenhando no seu novo romance. Uma história que, como era seu objetivo desde o início, estará vinculada a “Torto Arado.

“O próximo livro volta ao tema da terra. Não é com as mesmas personagens. É uma terra que pertence à Igreja, numa região diferente,  mais húmida, próxima do litoral, aqui no recôncavo da Bahia. É a história de famílias que vivem em terras que pertencem à Igreja, uma Igreja que também escravizou indígenas e pessoas negras nos séculos anteriores”, conta.

O escritor baiano prossegue assim um itinerário artístico que tem sido, até ao momento, brilhante. O desafio que nos lança é de sermos capazes de compreender a história, a sociedade, aquilo que somos, a partir desse lugar impossível – mas que a literatura nos ajuda a construir -, em que podemos ver o mundo a partir do olhar do outro.

Artigo editado por João Malheiro