Acaba a sequência de movimentos com as massas, dá um pequeno salto, desliza o chapéu pelo braço e rodopia-o no ar. Agradece e percorre, saltitando, a fila de carros com o chapéu estendido. Foi assim que o JPN encontrou Sonya Maliboo, natural da Rússia, numa passadeira de um cruzamento movimentado junto ao Hospital de São João, no Porto.

“Escolhi esta passadeira em particular por causa do tempo do semáforo. A maioria dos semáforos no Porto dão menos de um minuto aos peões para atravessar a rua. Isso não é muito confortável para mim, porque não quero atuar só para ter dinheiro, também quero mostrar alguma coisa para que as pessoas tenham tempo de ver e divertir-se”, começa por explicar Sonya, que estuda Circo, em Famalicão.

Sonya Maliboo quer espalhar sorrisos pela cidade.

Sonya Maliboo quer espalhar sorrisos pela cidade. Diogo Metelo

Impedida de entrar nas escolas de circo tradicionais na Rússia, dadas as restrições de idade para novos alunos, Sonya Maliboo, de 25 anos, procurou outras alternativas para aprender.

Após um período em que se dedicou à antropologia, a artista decidiu abandonar a carreira científica para seguir a vertente artística do teatro e circo.

Antes de chegar ao Instituto Nacional de Artes do Circo, em Famalicão, para o qual se candidatou em pleno período pandémico, Sonya estudou nos Países Baixos e viajou por alguns países. Em Israel, a convite de outros viajantes, experimentou atuar em semáforos. Em Portugal, onde está há cerca de oito meses, Sonya pratica as sequências da sua autoria e tenta segui-las com rigor. “É como um espetáculo de rua, mas com uma intenção diferente. É mesmo divertido, porque as pessoas estão a sorrir”, comenta.

A atitude com que se parte para este palco de alcatrão é muito importante, como explica a artista. “Se eu vier pelo dinheiro, não recebo nada”. “Eu venho para partilhar os meus sentimentos, a minha maneira de viver a vida e para dar alegria às pessoas. Se elas gostarem, sorriem e dão dinheiro, ou não”.

Em comum, os malabaristas entrevistados pelo JPN, têm a paixão pela arte circense. Contudo, as origens e percursos de vida são distintos e nem todos trabalham com os mesmos objetos, nem tão pouco para os mesmos objetivos.

Da Argentina para Portugal

No dia seguinte, no mesmo local, junto ao Hospital de São João, Mariano Quirelas era o protagonista da tarde, dando toques com três bolas pequenas. Mariano escolheu este sítio porque “tem muitos carros, tem pessoal que vem da universidade”. “É quase sempre pessoal jovem, está muito feliz e traz muita alegria. Um ambiente positivo é muito melhor para fazer malabarismo”, conclui.

O argentino também chegou a Portugal há oito meses e diz, imediatamente, que não é um malabarista profissional, até porque, confessa, ainda não domina muitas sequências.

No verão passado trabalhou como nadador-salvador, uma profissão sazonal para a qual pode voltar quando viajar para o Algarve, o seu próximo destino. Dividido entre pequenos trabalhos e a arte de rua, Mariano destaca o poder de meditação que este passatempo, “inofensivo” e rentável a nível financeiro, proporciona. “É uma boa saída laboral”, afirma.

Mariano, que não se deixou fotografar, gosta de fazer malabarismo, mas rejeita a ideia de iniciar uma carreira no circo. Aos 27 anos, continua a fazer atuações nos semáforos porque dá “dinheiro e para poupar”.

Poupar dinheiro é essencial quando se viaja de um lado para o outro, como referiu Nicolas Moroni, um artista itinerante de passagem pela Invicta. O local escolhido para apresentar a sua sequência foi uma coincidência. “Estava a passar e vi um rapaz a fazer malabarismo aqui, mas não conhecia este sítio, só a curiosidade para saber se era bom. É bom e a gente gosta”, diz-nos.

Nicolas Moroni é um malabarista itinerante de passagem pelo Porto. Diogo Metelo

Também natural do sul da Patagónia, na Argentina, como Mariano, Nicolas estudou para ser palhaço depois de abandonar o trabalho na terra natal. Aprendeu a dominar e a moldar as suas técnicas à medida que ia praticando com outros artistas. Há cinco anos, enquanto viajava pela América do Sul, largou o saxofone quando descobriu a arte dos malabares. Da Argentina, rumou para Espanha e, mais tarde, para a Albânia.

Atualmente, utiliza quatro bolas de futebol ou um diablo, para animar os condutores de Lisboa, onde mora.

O argentino lamenta que só pode fazer espetáculos nos semáforos, dadas as restrições impostas pela pandemia. “Nas praças e assim, junta gente. Agora não tem tantas pessoas, e nem te deixam, com as medidas de segurança”, explica ao JPN.

“Normalmente, é uma boa relação, as pessoas gostam. Tu fazes o que tens a fazer, se as pessoas gostam colaboram, se não, não têm uma reação. Eu não estou a pedir carro a carro. Termino, e quando passo, uns colaboram, outros não”, completa.

“Além de conhecer muitas pessoas, e amigos, aprendo línguas, cultura, posso viajar”, lembra com um sorriso na cara. A pandemia de Covid-19 afastou-o de grandes festivais, que já não se realizam. Em breve, deve rumar aos Países Baixos, onde espera voltar aos espetáculos de circo.

15 anos dedicados ao malabarismo

A arte de rua pode ser uma profissão a tempo inteiro e duradoura. Carlos, que começou a manipular objetos em 2006, e que até utiliza o fogo várias vezes, gosta de “fazer semáforos e esplanadas”. Aos 41 anos, no cruzamento da Avenida Antunes Guimarães com a Avenida da Boavista, mesmo com muito vento, o portuense garante o equilíbrio das massas e mantém a precisão na hora de lançar e agarrar as suas ferramentas de trabalho.

A agilidade dos seus movimentos entretém os condutores que esperam nos semáforos.

O artista prefere trabalhar sozinho. Nesta atividade, não há lugares marcados, mas há hábitos que se criam. “Depois de um semáforo estar a ‘funcionar’, ainda leva uns dias para que as pessoas se habituem e comecem a gostar de uma pessoa”, menciona Carlos.

O artista de rua divide-se entre duas passadeiras muito próximas e otimiza, assim, o horário de trabalho. Sem conseguir precisar, indica que trabalha à volta de oito horas por dia, com algumas pausas pelo meio.

Casado e pai de duas crianças, o malabarista garante que a família apoia a sua opção de vida e até gostava que lhe seguissem os passos: “Gostava que, um dia mais tarde, isto fosse uma opção [para os filhos]. Se algum dia as coisas não correrem bem, terem mais esta opção na vida”, diz.

Dada a tenra idade dos filhos, deixou de ir trabalhar para o estrangeiro. Por agora, no Porto, continua a dominar um dos pinos com o queixo ou a rodopiá-lo na cabeça.

Primeiro como fonte de rendimento, agora mais para treinar

A escolha do local para apresentar o trabalho baseia-se em critérios como o fluxo de trânsito, que se quer elevado. Ou nem por isso. Leo Calvino, malabarista e dramaturgo, prefere atuar na periferia do Porto, dando os exemplos da “Circunvalação, Matosinhos e Maia”. Mas esta quinta-feira foi em pleno centro da Invicta que o encontrámos. “Tem muitos lugares que funcionam. Eu não venho muito para aqui [Rua de Damião de Goís] porque é muito centro, muito movimentado e cansativo“, explica.

Leo Calvino lamenta igualmente que a arte de rua esteja condicionada aos semáforos por causa da pandemia. Leo considera que este fator, aliado ao abandono dos estudos circenses por parte de algumas pessoas e as restrições às viagens internacionais, conduzem ao decréscimo do número de artistas de rua no Porto.

Leo Calvino concilia vários projetos artísticos com o malabarismo. Diogo Metelo

Ainda no Brasil, há cerca de seis anos, o dramaturgo começou a aprender movimentos com a bola de acrílico que o acompanha – objeto que potencia a ilusão ótica -, através da internet e de outros malabaristas. Antes trabalhava a vender telemóveis, mas isso não lhe dava felicidade, apenas a componente financeira. Leo não tem um horário específico dedicado ao malabarismo, uma vez que tem vários projetos ao nível da representação, dança e magia, em teatros, quer como artista, quer como diretor técnico, garante.

O sucesso fora das passadeiras manteve o intérprete pela Invicta, mas a situação pandémica – e o cancelamento de espetáculos associado – obrigam-no a passar mais tempo nos semáforos. “Eu venho de vez em quando, porque é uma coisa que faz bem. Especialmente agora que muitos trabalhos foram cancelados, desde que começou a pandemia, então, alarguei, de novo, o tempo que estou na rua”. O seu talento é uma vantagem, ”para mim, é uma carta na manga”, acrescenta.

Para além de dominar a disciplina de superfície de contacto – que não se limita a equilibrar uma bola com o corpo -, o artista, de 34 anos, também pratica a modalidade de cardestry – manipulação de cartas em jeito de malabarismo -, meramente por gosto. “As pessoas não estão acostumadas a ver”, garante.

As diferenças artísticas entre a rua e o teatro são o público e a duração do espetáculo, como aponta Leo. Trabalhar fora de portas é um desafio grande e “é uma escola super interessante”. “Lidas com um público que não tem nenhuma restrição, é todo o mundo que passa pela rua”. Já no teatro, “é um público mais restrito, com outras formas de linguagem. Se eu faço uma coisa super demorada no teatro, as pessoas estão sentadas. Aqui, tem de ser outra linguagem, com toda a informação a acontecer: o carro, a rua, o telemóvel”.

O artista, natural do Brasil, lamenta que exista algum preconceito para com a atividade malabar e reforça que “durante a época medieval aqui na Europa, [a arte de rua] era uma fonte de cultura, de arte e de informação, porque o povo em si não sabia o que acontecia na cidade do lado. Vinham esses grupos de artistas, contavam histórias desses lugares”, recorda. Para Leo, este é um trabalho que privilegia a liberdade de expressão urbana.

Uma questão de estudo

De volta à passadeira junto ao Hospital de São João, Ana Carolina mostra o sorriso enquanto manipula dois arcos. A jovem de 21 anos, deixou o Brasil para fazer a escola preparatória de circo, na SALTO – International Circus School -, na Maia.

“Eu gosto mais do arco, porque é o que faço há mais tempo”, começa por referir antes de revelar que se dedica a várias modalidades. “Eu na escola treino mais acrobacia, mastro chinês, trampolim, e algumas coisas em grupo, como pinos”.

Ana Carolina começou a atuar em semáforos quando chegou a Portugal.

Ana Carolina começou a atuar em semáforos quando chegou a Portugal.

Ana só experimentou atuar em cruzamentos quando chegou a Portugal, há dois anos. A artista quer mostrar o seu talento e pagar os estudos. “Basicamente, é [para] poder mostrar o que eu faço para as pessoas, e ter um retorno também”. O objetivo a longo prazo é estudar em França. “Pagar a escola para poder trabalhar num lugar melhor, tipo um teatro, não que seja ruim, é óbvio que é muito bom poder estar aqui, mas para mim é a formação como artista” a mais relevante, afirma.

Entretanto, a jovem pratica as suas habilidades numa atividade com uma componente de meditação. “É meditação ativa, de verdade, você esquece tudo em volta”, assegura. Mesmo assim, Ana não esquece a especificidade do público nos semáforos. “É desafiante, porque todo o dia tem pessoas novas que eu não conheço e eu não sei se elas vão gostar, mas eu venho, sorrio e mostro o que faço. É um desafio bom”, resume.

Os malabaristas mudam de sítio frequentemente, o que torna difícil encontrar estes profissionais no mesmo local, num curto espaço de tempo. “Se eu ficar sempre no mesmo [sítio], as pessoas pensam ‘já te vi ontem’“, justifica. Leo Calvino também destacou a flexibilidade deste modo de vida. “Podes trabalhar aqui ou noutra esquina, posso ir conhecer outra cidade, outro país”.

Contudo, “a liberdade depende da tua disciplina”, lembra o malabarista. “Eu sou o meu chefe. Se eu entrar [na passadeira], estiver mau ambiente e eu não gostar, posso sair, compenso noutro dia”, conclui.

Errar não é um problema

O nível de preparação para cada atuação é elevado e metódico. Os testemunhos recolhidos são unânimes: errar é humano e a frustração não é resposta. “Se a bola caiu, não é um problema. Nenhum malabarista aprende sem deixar cair milhares de vezes. O segredo é que a bola sempre vai cair”, resume Leo Calvino.

A malabarista russa, Sonya Maliboo, acredita que o público sente empatia para com os artistas e que quando estes se sentem tristes, o sentimento reflete-se na audiência. “Quando eu erro, não quero que as pessoas fiquem tristes”, reflete.

Leo Calvino considera ainda que errar é uma oportunidade para descobrir novas técnicas e o modo como a pessoa reage dita o seu sucesso: “uma pessoa pode inventar um movimento ou um objeto novo, porque ele quebrou. E se eu usasse só esta metade?”, explica entusiasmado.

Agruras: dinheiro e resistência física e mental

“A maior dificuldade é o fim do mês”, quando as pessoas, explica Ana com o gesto correspondente, se ficam pelas palmas. A fazer malabarismo, a maior dificuldade “é ter foco, conseguir ter foco para treinar e aprender truques novos”, conta.

Embora, no geral, os entrevistados digam que “as pessoas são generosas”, a pressão para obter rendimento financeiro existe, como confessam. Desde o desvio do olhar por parte dos condutores e do barulho constante da rua à repetição do espetáculo vezes sem conta, sem receber uma moeda, os malabaristas lutam contra o próprio desgaste.

“É um trabalho que cansa muito emocionalmente. Parece que não, mas tens que investir uma energia muito grande para estar ali de frente para os carros, que a qualquer momento vão começar a andar, pessoas com pressa, pessoas que não entendem o que estás a fazer”, desenvolve Leo.

Apesar da frustração que possa surgir, o nível da performance tem de ser sempre elevado. “Toda a energia que tem de entrar. A cada dois minutos está entrando de novo, entrando de novo, durante horas, é muito desgastante”. Ou seja, é necessário manter a condição física apurada e a balança emocional equilibrada.

As crianças são quem se diverte mais a ver os espetáculos e a energia positiva que passam para os artistas é muito importante. Além disso, incentivam os pais a colaborar financeiramente. “Depende, tem pessoas que ficam muito felizes, batem palmas, gritam. As crianças adoram, são as que mais falam ‘dá uma moedinha’. Mas tem gente que levanta o vidro” e segue, detalha Ana.

Sujeitos às condições atmosféricas, os malabaristas estão igualmente sujeitos a lesões. É de resto, a maior dificuldade apontada por Carlos: trabalhar com os dedos doridos ou partidos. Profissional há 15 anos, mostra as mãos, sorri e conclui: “que nos continuem a apoiar e a ajudar, pelo menos aos que gostam disto. Que nos ajudem, e se não nos ajudarem que nos deem um sorriso pelo menos”.

A mesma ideia é reforçada por Sonya, para quem trabalhar nos semáforos é “mesmo um grande desafio” e um recurso para pagar renda, educação, alimentação e transportes. “Obrigado a todos que ajudam a suportar a minha vida aqui”.

Artigo editado por Filipa Silva