Gostam de ler a bíblia e de passar a tarde a apanhar ondas. De uma "Jesuscidência" nasceu este grupo intercultural de cristãos que também são surfistas. Esta é a segunda de uma série de reportagens que o JPN volta a dedicar ao tema "Comunidades".
O local é Matosinhos, não por mera coincidência, mas porque seria impossível para uma comunidade voltada para o mar afastar-se muito da costa. Ao princípio, o GPS do telemóvel parece não encontrar o caminho certo por entre as ruas poeirentas da cidade. O relógio corre apressado e aproxima-se das 10h00, horário do encontro marcado com um dos fundadores da Surf Church. São 10h05. À entrada, a bicicleta com o emblema do grupo colado numa cadeirinha para criança informa que esta é a casa da família Cianelli.
Pastor desde os seus 20 anos, Samuel Cianelli é o responsável pela Surf Church no Porto, para onde se mudou com a mulher Claudia há sete anos. Lailah, uma das filhas do casal, nasceu em Portugal e caminha pela sala descalça, embalando nos braços um exemplar da bíblia para crianças. Apesar do sotaque adocicado e de ter vivido a vida toda no Brasil, também Samuel tem origens em Portugal, local que escolheu para iniciar um projeto pioneiro.
Em abril de 2015, nasceu a Surf Church, “um sonho, uma ideia”, começa por contar o pastor. Troy Pitney, um dos fundadores da comunidade que atualmente já não vive em Portugal, dinamizava um projeto em que proporcionava a jovens uma experiência de surf. Uma conferência internacional foi o palco que uniu o desejo de Troy de constituir uma comunidade capaz de reunir o convívio, o ensino da bíblia e o desporto com o desejo já presente de Samuel e Claudia de iniciar uma nova fase noutro país. O pastor interrompe o relato com um sorriso e introduz uma definição própria utilizada pelos fundadores – “Jesuscidência” – é assim que apelidam o encontro entre os dois. “Não existem acasos, foi Jesus que nos conectou”, afirma.
O que é a Surf Church?
Há uma pausa para Lailah, a filha mais nova de Samuel, entregar um par de chinelos ao pai que durante toda a entrevista se manteve descalço, algo muito comum durante os seus momentos de convívio na praia. Chinelos, pés descalços, fatos de banho, é assim que se apresenta boa parte daqueles que integram o grupo, caracterizado pelo fundador como “beach friendly”. O “amor pela praia” é fator harmonizante entre as diversas “tribos” que compõem a comunidade que se assume internacional. Entre crianças, jovens, adultos e idosos, a prevalência faz-se notar entre os 20 e 30 anos, na sua maioria falantes naturais de Portugal e do Brasil.
Mas o grupo não se define apenas pela prancha de surf, o vestuário casual e as variadas nacionalidades. Enquanto igreja, a Surf Church apresenta-se de uma forma alternativa na maneira de comunicar. Aliando sempre o português e o inglês, a convivência não se faz de uma maneira pragmática apesar de se fundamentar numa certa cronologia de atividades, entre momentos de convívio na praia, reuniões na casa dos participantes e o “partilhar a mesa e o pão”.
A liderança exercida por Samuel, que atua como pastor do grupo, é dividida com os demais integrantes da comunidade, ainda que a crença e a presença do estudo da bíblia sejam uma constante. Como refere o pastor, esta experiência religiosa mais casual e “diferente do convencional”, em muitos casos é o que “mantém as pessoas no grupo, não tanto o surf ou a praia, mas o ambiente fora do tradicional.”
Apesar de já não fazer parte da “direção da comunidade”, Troy deixou como legado os seus sogros, Jan e Kevin, que atualmente exercem um papel fundamental nas atividades, presidindo e disponibilizando a sua casa ao grupo. Com experiência em trabalho missionário nos Estados Unidos, o casal de americanos conta que é “apaixonado pela Europa e pela diversidade cultural”.
No Porto há três anos, explicam que se mudaram para Portugal para “estar perto dos netos” e integrar o projeto. A princípio, Kevin confessa ter “demorado algum tempo” a habituar-se à realidade de fazer igreja de chinelos e calções, mas afirma que “Deus não olha para o nosso exterior, não olha para as roupas que vestimos para ir à igreja, preocupa-se com o nosso coração”. Para o casal, “é incrível viver [a fé] num ambiente de praia”, principalmente tendo a oportunidade de lidar com jovens. “É incrível poder dar-lhes um lugar que não é o que eles pensavam que seria”, afirmam.
“A igreja não precisa de ser ficar sentada com as mãos cruzadas e os olhos fechados, Deus está aqui, a toda a hora, então, podemos simplesmente relaxar e desfrutar das relações, porque foi para isso que Ele nos fez”, declara Jan, anfitriã de boa parte dos momentos de convívio da comunidade.
Mesmo as atividades mais convencionais no contexto religioso abarcado pelo grupo são marcadas pela forte conexão familiar. O momento de comungar, símbolo máximo para aqueles que acreditam em Cristo, é realizado de forma descontraída durante as refeições que o grupo realiza em conjunto, com o “pão e o vinho que fazem parte da mesa portuguesa”, sem palavras decoradas ou expressões contidas. Feito no mar sobre a prancha, também o ato do batismo é definido por Samuel como sendo “um motivo de alegria”, para além “de uma confissão ou profissão de fé”.
“Seita” ou uma nova escola de surf em Matosinhos?
“O que é a comunidade?”, começa por definir o fundador, “é este estilo de vida onde nós somos uma família, cuidamos uns dos outros”. Para Samuel, o desporto e a crença religiosa são pontes que ligam os membros do grupo, mas não constituem a parte mais importante da Surf Church. “Nós nos importamos com o relacionamento, com aqueles que fazem parte, porque querem estar juntos e não se importam muitas vezes com as dificuldades que qualquer família possa ter”, explica.
Inicialmente, o desconhecimento do trabalho que a comunidade realiza trouxe algumas complicações à implantação do projeto. O fundador relata que, devido ao cariz religioso do grupo, experienciaram alguma resistência por parte da população local. “Cá em Portugal existe muito a ideia da seita, aquilo que não é católico é uma seita, então, não querem se aproximar, têm algum medo disto”, afirma o pastor.
Também por parte de outras escolas de surf surgiram dificuldades iniciais, já que eram percecionados como sendo um grupo que promovia o acesso gratuito ao surf sem qualquer regulamentação. Um cenário que com o tempo acabou por se modificar. De acordo com Samuel, hoje a Surf Church mantém “um bom relacionamento” com os seus campos de atuação, tanto as demais escolas de Surf que coabitam na areia da praia de Matosinhos, como também as igrejas da região, com as quais já organizaram eventos.
Apesar de “não haver nada do género em Portugal na altura” em que o grupo chegou, à volta do mundo é possível encontrar outras comunidades com o mesmo nome e conceitos que se assemelham. O movimento “Christian Surfers” começou na Austrália, na década de 1970, e hoje conta com elementos em todos os continentes.
No Porto, a Surf Church já existe há sete anos e há três também se estabeleceu em Viana do Castelo, estando programada para este ano a criação de uma terceira sede, em Leça da Palmeira. Um dos objetivos iniciais traçados pelo grupo é a formação de 50 comunidades em 15 anos, contabilizados a partir de quando o projeto se iniciou em Viana do Castelo, restando 12 anos para cumprir a meta programada.
Ser comunidade à distância
O período vivenciado pela comunidade durante a pandemia foi “muito complicado”, mas Samuel reforça que “não deixaram de ser família”, ainda que a fase tenha impossibilitado os momentos de convívio. Durante os meses de confinamento, o grupo abandonou o seu habitual ponto de encontro no Edifício Transparente, em frente à praia, e os encontros mantiveram-se via Zoom e através das redes sociais.
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Entre manhãs e tardes de reuniões online, a comunidade que chegou a atingir um total de 80 integrantes, hoje resiste com 30 membros. De acordo com Samuel, “as pessoas já estão cansadas do online” e, apesar de manter contacto regular com os membros que não marcam presença virtual, compreende que a impossibilidade de se reunirem pessoalmente faz com que se “perca um pouco a essência” do projeto.
Apesar disso, o líder acredita que o atual processo de desconfinamento traz expectativas para o futuro e o retorno por parte daqueles que não se mantiveram online. O novo espaço que está para vir também será uma mais-valia. “Provavelmente, no verão, já vamos ter o nosso próprio espaço e quando houver esta reabertura das coisas, no nosso espaço não vai ser difícil ter de novo as 80 pessoas.”
O cenário online permitiu também que novos contactos fossem realizados e pessoas de outros pontos do globo fossem capazes de se conectar com a Surf Church em Portugal. “No ano passado, o volume de pessoas a interagir connosco através da internet foi muito maior”, refere Samuel, mencionando que, apesar das diferenças de fuso horário, conseguiram agregar novos membros ao grupo.
Com o desconfinamento, já é possível realizar alguns encontros pessoalmente. Ao domingo, a tarde é passada na praia a surfar ou apenas em contacto com o mar e segue-se o habitual momento de convívio e lanche em grupo. Mais tarde, realizam a celebração religiosa, “um momento de sentarem todos juntos” animado com música pop-rock cristã ao vivo, partilha da bíblia e períodos de reflexão e descontração entre os presentes.
A semana também costuma ser movimentada, com atividades como o encontro do grupo de jovens, o dia da “open table”, que reúne os membros para um momento de descontração em ambiente familiar, o estudo da bíblia em português e inglês e os encontros casuais para praticar surf. Para além destas, contam também as atividades que realizam em conjunto fora da rotina. Para Samuel, são estes momentos que contribuem para a união do grupo. “Qualquer coisa que nos conecte, nós topamos”, conclui.
Hora de ir ao mar
O relógio marca 15h00. A praia está cheia e o calor de abril traz à memória um dia de verão. Uma carrinha vermelha está encostada ao passeio. É o transporte utilizado como recurso para transportar o material e alguns dos membros da Surf Church.
Samuel é o primeiro a chegar. O ponto de encontro com os restantes que decidiram passar a tarde entre as ondas é o largo junto à Rotunda da Anémona.
À medida que vão chegando, as pranchas e os fatos são distribuídos por todos. Há no ar o entusiasmo do reencontro e do que aí vem. Entre eles, maioritariamente jovens, conversas em diferentes idiomas vão surgindo à medida que vão vestindo os fatos, ansiosos para a atividade de grupo.
Samuel faz as apresentações. O cartão de visita é um sorriso largo nos rostos já queimados pelo sol. Aproximam-se Kevin e Jan, o casal de norte-americanos reformados que dedica grande parte do seu tempo à igreja. “Nice to meet you!”, é a frase mais ouvida. Kevin com uma postura mais resguardada, Jan a cumprimentar os jovens com uma atitude maternal. O casal faz-se ouvir e relembra que têm todos encontro marcado na quinta-feira, ali mesmo na rua ao lado, para a sessão de estudo da bíblia. Acabam por se despedir de todos, com a piada de não terem nascido com o “bichinho do surf”.
Depois de equipados, o próximo passo é pisar a areia. É já de pés descalços que dão ouvidos às indicações de Samuel, que foca a sua atenção em duas jovens, iniciantes no surf. Victória é brasileira e fez Erasmus em Portugal em 2017. Conheceu vários membros da igreja através das redes sociais. De acordo com a estudante, o que mais a cativou no projeto foi a forma como todos se reuniam antes da pandemia. “Era muito em casa, era o convívio, o pequeno-almoço e então era sempre algo muito leve e natural. Deus agia e acontecia”. A família sempre aceitou as suas escolhas e confidencia que partilha com eles algumas reflexões e momentos “de uma forma leve também para que possa atingir outras vidas”, afirma.
Mais inquieta e nitidamente ansiosa está Gosha, uma jovem polaca, que se juntou à Surf Church há cerca de um ano. Quando fez Erasmus em Portugal, percebeu que precisava de uma comunidade cristã que a pudesse acolher. Depois de várias pesquisas sobre igrejas, Gosha encontrou a Surf Church e lá ficou. Para a jovem, o facto de falarem inglês foi muito importante, já que na altura ainda não sabia o português.
Mesmo depois de ter retornado à Polónia, Gosha regressou ao Porto este ano para ocupar um cargo no departamento de comunicação de uma empresa. Sem bilhete de volta, a jovem admite que o grupo onde está integrada teve peso na decisão de escolher começar uma vida em Portugal. “Comecei a fazer algumas coisas na Surf Church, a surfar aqui e comecei a ter amizades realmente ótimas que são muito preciosas para mim e estou muito grata pelo que Deus colocou na minha vida através destas pessoas. Não sei como será depois, mas agora estou aqui”, revela.
Lado a lado e em trocas de ‘galhardetes’ estão Daniel e Greg, que mesmo com o grupo mais afastado em tempos de pandemia, se encontravam regularmente para surfarem juntos. Daniel é um jovem músico brasileiro, que contribui com o seu talento para a comunidade. Já conhecia os fundadores da Surf Church e foi pela necessidade de um músico na igreja que acabou por se tornar também uma peça do puzzle.
O jovem foi conquistado pela maneira “leve e livre” da Surf Church ver não só a religião, mas a vida. “Mudou a minha vida, porque eu tinha muitas paredes no que toca à religião e à sociedade, ter que me vestir direito, falar certo e agir de certa maneira. Com a Surf Church senti-me mais à vontade”, explica o músico. Também o surf e o estilo “tranquilo” das celebrações cativaram o jovem que, sorrindo, afirma, tal como todos os membros, que anda “sempre de chinelos”.
Alto, de pele clara e barba ruiva, o americano Greg solta uma gargalhada e conta que já não se lembra da primeira vez que esteve na Surf Church, mas conheceu o projeto através de antigos membros e decidiu juntar-se há cerca de dois anos. “Sem dúvida que já tinha fé antes de me juntar à comunidade, mas fazer parte de uma comunidade destas ajuda sempre a cultivar a nossa fé”, explica, referindo que as várias atividades acabam por unir cada vez mais o grupo.
Há um homem adulto que se destaca entre o grupo, é o mais reservado, mas a energia contagiante de todos envolve-o e de vez em quando solta uma palavra. Muito próximo de Samuel, de camisola na mão e o corpo tatuado, Júnior é um “brasileiro de Portugal”. Deixou o Brasil há 18 anos e, desde então, só sai em trabalho. Pertence à comunidade há dois anos e relata que foi a “melhor escolha que fez na vida”.
Quando veio para Portugal começou a desenvolver o vício do álcool, comum na família, conta-nos. “Perdi a direção e perdi o controlo, não pensava em mais nada. E foi quando eu senti que as paredes estavam caindo e eu falei: não, espera, eu preciso de ajuda”, recorda. A dada altura, colocar o travão parecia quase impossível. Foi nessa travagem que Samuel teve um papel fundamental.
Conheceu o pastor em Espinho enquanto surfavam e, seis anos depois, este foi capaz de o acolher na “família” que criou. “É como uma família, porque estamos perdidos em algo e estamos sozinhos e aí eles nos abraçam e nos tornam um membro da família deles, eles dão o que a gente não tem”, explica.
Apesar de sempre ter nutrido uma forte ligação com Deus, Júnior acredita que a sua fé se ampliou com a força de querer vencer o vício. “Deus é que te prepara, não fui eu que procurei, eu fui preparado para isso. Não adianta querer. Você, para cortar o cabelo, tem que ir no cabeleireiro. Então, a fé é igual. Você é resgatado”, afirma o surfista.
Júnior conta que depois de entrar na comunidade, tornou-se uma pessoa mais sensível e empática, que pensa nos seus atos e que “evita tentações”. Hoje, livre do vício, tornou-se numa referência para todos os que o conhecem e acaba por aconselhá-los a participarem também. Na Surf Church sente-se “respeitado” e está profundamente agradecido à comunidade que escolheu e que o auxiliou na sua transformação.
É hora de ir ao mar. Antes de partirem de prancha debaixo do braço, Samuel abraça Júnior e, de palmas viradas para o céu e corpo voltado para o horizonte, rezam juntos. Os restantes posicionam as pranchas e alongam os membros. Samuel dá as últimas indicações a Victoria e a Gosha e, finalmente, partem rumo às ondas.
Perto do céu
Para os encontros semanais, apanha-se um elevador até ao oitavo andar. À porta, trocam-se abraços em várias línguas e abandonam-se os sapatos com areia e as barreiras interpessoais. Aqui o espaço é seguro, aquecido, amistoso. A praia está tão perto que quase entra pela grande janela da sala de Kevin e Jan, o casal que organiza o estudo semanal da bíblia e acolhe os amigos e os desconhecidos de todas as partes do mundo como quem acolhe um familiar que acaba de chegar de viagem.
A campainha toca. Os primeiros a chegar são os MacDonald, uma família da África do Sul que se junta ao grupo pela primeira vez. “Obrigado por nos receberem, nós não conhecemos ninguém cá”, ouve-se da entrada, ao que Jan responde com um “estou tão feliz por estarem connosco”.
Bruce, o pai, é produtor de cinema e fazia parte dos Christian Surfers em África. “Eu fiz um filme chamado ‘A onda perfeita’”, começa por contar ao anfitrião. Ao contrário de Kevin, Bruce faz surf há 35 anos e une essa paixão à do cinema. Também a crença na bíblia está presente no seu trabalho. Realizou recentemente “Sansão”, um filme histórico baseado na vida da personagem hebraica.
Em Portugal há menos de um mês, Skye e Savannah, duas das filhas do casal MacDonald, confessam: “nós queríamos emigrar, já não há muitas oportunidades lá para os jovens”. Skye é chefe de cozinha e admite que planeia dedicar-se a aprender português para poder começar a trabalhar. “Mal posso esperar por falar com toda a gente”, afirma animada. Troy, o irmão de 13 anos, estuda em casa de momento, mas o objetivo é iniciar a escola em Portugal no próximo ano letivo. “Estamos entusiasmados”, contam.
A porta continua a abrir e a fechar e rapidamente se enche o acolhedor apartamento do casal americano. A mesa da sala compõe-se com flores, frutas, bolachas e copos brilhantes. O inglês assume sotaques diversificados, num grupo que junta pessoas de três continentes diferentes, e o sol começa a pintar as divisões de tons alaranjados ao descer no horizonte. A cozinha, divisão contígua à sala, enche-se de aromas e os jovens misturam-se com os mais velhos, conversando alegremente de meias nos pés e caneca de chá na mão.
Kevin cumpre o papel de líder e arruma a sala em círculo, juntando cadeiras e poltronas e diminuindo a luz da divisão. É tempo de estudo religioso. Um a um, os membros da Surf Church vão-se sentando naturalmente e ocupando os lugares à disposição. Até esta sessão, a reunião decorria somente online, através do Zoom, devido à pandemia, mas hoje voltam a encontrar-se para partilhar a tarde.
“Estou no sítio certo?” Thomas faz-se ouvir através do monitor pousado na mesa de apoio. É de Singapura e todas as semanas acompanha as sessões de estudo pela internet, onde tomou conhecimento do grupo. Em Nova Iorque, onde vive atualmente, é meio-dia, mas nem isso nem os mais de 5 mil quilómetros que o separam da praia de Matosinhos impedem-no de interagir com os outros.
O burburinho de vozes acalma e o anfitrião começa a atividade. Ninguém se benze, não se ajoelham. Sentam-se confortavelmente nos sofás e nas cadeiras de sala, com bíblias em português e inglês no colo e ouvem. Kevin pede silêncio para rezar e começa: “Obrigado Senhor pela vida, obrigado por cuidares de nós, por nos amares. Obrigado por quem és, pelo que fizeste por nós, por podermos ter vida em ti”. Agradece ainda pela oportunidade de se voltarem a reunir pessoalmente, pelos novos visitantes e, até, pela nova série “The Chosen”, que conta a vida de Jesus Cristo e está a correr o mundo.
Ao longo da última semana, cada um estudou 18 capítulos do antigo testamento e Kevin começa por realçar alguns episódios mais relevantes, discorrendo calmamente sobre o que leu. A palavra passa de boca em boca por quem quer intervir. Do bom samaritano a Moisés, durante cerca de uma hora discutem-se passagens e personagens da Bíblia, fazem-se reflexões e partilham-se experiências e memórias que o texto despertou. Quase em jeito de clube de leitura, o anfitrião vai relembrando a importância de ler e de deixar que o livro “diga algo ao coração de cada um”.
Gosha, a jovem polaca, conta ao grupo que está a iniciar o primeiro trabalho da vida dela. “Eu estava a ler esta passagem ontem a caminho do meu primeiro dia e sentia-me da mesma forma que Moisés [se sentiu quando Deus o encarregou de liderar os hebreus]”, relata a jovem. Tal como a personagem bíblica, Gosha não se sentia preparada para assumir uma nova responsabilidade e revela estar fora da sua zona de conforto. “Deus tira-nos da nossa zona segura onde somos fortes e ficamos a sentir-nos fracos, mas eu quero confiar e depender mais dele”, afirma.
No final, passam uma girafa de peluche pelo círculo ao jeito jovial de quem joga um jogo e cada membro resume em algumas palavras o que retirou da sessão. Na Surf Church, Deus é bom e indulgente, “valoriza todos e cada um na sua singularidade”, é um ombro amigo em quem podem confiar e uma figura paternal que decide sempre o melhor caminho para quem o louva. “Deus, estou tão grata por poder aprender mais sobre ti e sobre mim mesma, estou tão grata por esta igreja”, termina a jovem em oração.
Lá fora já é noite, há luzes que brilham no mar que a esta altura se confunde com o céu. É hora de comer e conversar, falar sobre tudo à volta da mesa da sala, num ambiente que lembra qualquer festa familiar. Perpetuam-se os sorrisos e os abraços e o espaço está tão preenchido de vozes que facilmente se salta de tema em tema. Partilha-se o banal do dia a dia, celebram-se as diferenças culturais e as semelhanças ideológicas, até ser hora de deixar esta igreja espontânea que não se vê, mas que se constrói em qualquer lado.
Trabalho editado por Filipa Silva e João Malheiro
Esta reportagem multimédia integra a série “Comunidades” estreada em 2020 pelo JPN. A série de 2021 teve o seu pontapé de saída a 1 de março no âmbito da atividade Editor por um Dia, este ano a cargo da jornalista Catarina Santos.