Aceitam o que têm, orgulham-se do que são e lutam pela divulgação e normalização da doença. Tal como a Associação Portuguesa da Síndrome de Tourette, com menos de cinco anos de vida, à qual todos estão ligados. É preciso desmistificar a Síndrome, dizem-nos, porque a Tourette estranha-se, mas não impede quem a tem de viver a vida ao máximo. Esta é a terceira de uma série de reportagens que o JPN volta a dedicar ao tema "Comunidades".

A Síndrome de Tourette (ST) pode tornar o dia a dia de quem padece do problema um desafio. Detetá-la não é simples, e a forma como se manifesta varia muito de paciente para paciente. A doença é crónica e incurável, mas viver com ST não é uma sentença, como nos provam os testemunhos que recolhemos para esta reportagem.

“É preciso normalizar, porque é uma coisa normal”, afirma Vasco Conceição, investigador no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes e membro da Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette (APST). A síndrome, por muito incomodativa que possa ser, não os define. 

O Bernardo, de 9 anos foi diagnosticado aos 3, e tem uma paixão pela construção e pela pintura. O Afonso, nos seus maduros 13 anos, está a escrever um livro e já criou o seu próprio jogo de cartas.

O Cláudio, de 16 anos, é jogador de andebol e vive de mãos dadas com o piano e o seu setup de produção musical. O Paulo, de 27, foi alvo de uma operação que o tornou menos dependente da mãe, Carla Moreira, e o fez “renascer”. Contra todas as probabilidades, está a tirar a carta de condução e a tentar integrar-se no mercado de trabalho.

E o Maurício, de 33 anos, é chefe de cozinha em Braga, músico e apresentador de um programa na rádio.

Falar abertamente sobre o assunto, desmistificar algumas ideias e sobrepôr, sempre, o lado positivo e mais sorridente ao negativo e lamentoso é uma característica que parece unir os que de algum modo se veem afetados pelo problema. Mas há, ainda, um longo caminho a percorrer: “Em Portugal, ainda vemos as doenças do foro psiquiátrico como algo muito mau. Tem uma conotação ainda muito negativa dizer que alguém vai ao psiquiatra. E isso ajuda a explicar porque é que muitas pessoas que têm esta síndrome tentam esconder o problema”, salienta Vasco Conceição ao JPN.

“Quem tem Síndrome de Tourette não faz aquilo para irritar”

Para desmistificar é preciso explicarMaurício Horsth não tem dúvidas de que é importante que a sociedade perceba que os tiques associados à ST são involuntários, mas ressalva que os portadores da síndrome também devem mostrar abertura para explicar o que têm.

Vasco Conceição, por seu turno, considera que é muito importante explicar o que é a Síndrome de Tourette para “ajudar a normalizar a doença” e para que “as pessoas sejam muito melhor integradas na sociedade”.

Para enfrentar o “monstro”, é preciso “saber qual é”

De forma simplificada, a Síndrome de Tourette “é caracterizada pela manifestação de tiques”, explica o investigador Vasco Conceição em entrevista por videochamada dada a partir de Lisboa. 

Infografia Síndrome de TouretteTrata-se de um transtorno neuropsiquiátrico, diagnosticado quando alguém apresenta “pelo menos dois tiques motores e um tique fónico, durante o período de pelo menos um ano, e com início antes dos 18 anos”, explica. 

Contudo, diagnosticar a Síndrome de Tourette não é simples: é fácil um médico não especializado não reconhecer de imediato esta perturbação, a partir do momento em que existem transtornos mais frequentes que apresentam alguns dos mesmos sintomas, como a ansiedade

“Outro fator que agrava [a dificuldade do diagnóstico] é que a severidade dos tiques varia muito com o tempo. Portanto, até pode acontecer que o doente, quando vai ser observado por um médico, por algum motivo, não esteja com muitos tiques nesse dia. De facto, estes diagnósticos, para serem bem feitos, exigem bastante acompanhamento”, acrescenta o investigador e membro da APST.

É de destacar ainda que, embora a componente dos tiques seja o principal critério de diagnóstico, a verdade é que os pacientes com Síndrome de Tourette exibem outras características que “também definem a doença”.

Uma delas é a existência de “urgências premonitórias”, uma espécie de “sensações desconfortáveis” que, segundo nota Vasco Conceição, têm tendência a ser a causa dos tiques.

Além disso, é raro existir um paciente que tenha exclusivamente a síndrome. Normalmente, esta é acompanhada por outras doenças psiquiátricas, como a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção e a Perturbação Obsessivo-Compulsiva.

Carla Moreira, mãe de Paulo Gonçalves, que tem Síndrome de Tourette, destaca que, à medida que o filho ia sendo acompanhado, os diagnósticos só aumentavam. “À medida que o Paulo ia fazendo exames, foram identificados outros problemas”, entre os quais, o défice de atenção, “que o Paulo tinha muito destacado”, e crises de ansiedade, conta. 

 

Apesar de, na maioria dos casos, a severidade da ST ter tendência a diminuir ao longo do tempo, a doença não tem cura e “há muitas causas que podem levar ao mesmo tipo de sintomas”, havendo, por isso, formas diferentes de tratar a síndrome, que variam entre pacientes.

Segundo Vasco Conceição, as formas mais comuns de tentar mitigar os sintomas são as terapias comportamentais, o tratamento farmacológico – sendo que os medicamentos mais eficientes “atuam direta ou indiretamente no sistema dopaminérgico”, como é o caso dos antipsicóticos -, ou, em casos mais graves, a Estimulação Cerebral Profunda. 

Sobre o tratamento que faz, Cláudio Silva conta ao JPN que toma dois comprimidos por dia. “O objetivo é deixar-me um bocado mais tranquilo, mais relaxado. Eu sinto que, quando tomo os comprimidos (…), se mexo a cabeça um pouco mais rápido, começo a ver tudo às voltas. Mas isso é só nos primeiros cinco minutos. Depois, fica tudo bem”, relata. 

Cláudio Silva, paciente com Síndrome de Tourette.

Cláudio Silva, de 16 anos, produz música, que divulga num canal de YouTube. Foto: Ana La-Salete Silva

Já Paulo Gonçalves foi submetido à cirurgia de Estimulação Cerebral Profunda. Apesar disso, mantém ainda o tratamento farmacológico. Antes da operação, foi justamente a parte dos medicamentos, que a mãe, Carla Moreira, garante ter trazido consequências no dia a dia de Paulo, que foram muito além dos tiques. Entre aumentos nas doses e acrescentos no tipo de medicação, estas “tentativas” de adaptação aos sintomas, levaram-no a tomar entre 16 e 18 comprimidos por dia. Paulo tornou-se, como a mãe descreve, “apático”.

O mesmo aconteceu com Maurício Horsth. Chegou a ser medicado para mitigar os tiques, mas os efeitos secundários levaram-no a desistir do tratamento e, hoje, não se vê na necessidade de combater a Síndrome de Tourette, algo que abraçou como apenas mais uma característica sua. 

“Eu nunca me incomodei com os tiques. Pelo contrário, incomodei-me com não tê-los, porque, na única vez que fiz tratamento, dormia 20 horas e ficava acordado quatro. E até quando estava acordado, estava meio sonolento!”, relata ao JPN.

Bernardo Ribeiro, de 9 anos, acompanhado pela mãe, que ele diz ser o seu maior pilar.

Já Afonso e Bernardo fazem terapia comportamental, que serve como um acréscimo à medicação. No caso de Afonso, ele próprio explica que uma das principais vantagens do seu tratamento é a aprendizagem de técnicas para controlar a ansiedade, o que, consequentemente, alivia a manifestação de tiques.

Uma montanha russa de tiques

São como ondas do mar, que vão e voltam a todo o instante, sem nenhuma razão aparente. Os tiques são a parte mais percetível de uma doença que afeta a vida de quem a tem. Alguns aprendem a lidar com ela. Outros tentam adaptar-se, com diferentes métodos que divergem de indivíduo para indivíduo. 

Os testemunhos que ouvimos contam que existem fases piores e outras em que raramente se lembram do que têm. Maurício Horsth, Claúdio Silva, Afonso Santos e Bernardo Ribeiro explicam os tiques que têm e como evoluiu no caso deles a doença.


Para combater estes ciclos, cada qual arranja a sua distração. Com idades compreendidas entre os 9 e os 33 anos, a diversidade é grande – desde a música ao desporto, passando pela construção e pelos jogos de cartas. Cada um com a sua mania para se concentrar e evitar fazer o inevitável. 

Maurício Horsth, chefe de cozinha, músico e apresentador de um programa na rádio, dá o exemplo da luta e dos videojogos, que são muito benéficos para si. “Existem determinadas atividades que para uns pode melhorar e para outros não. Por exemplo, os videojogos dizem que piora muito [a manifestação de tiques]. No entanto, para mim, ajuda, relaxa e melhora. Assim como o exercício físico. A vida toda lutei. E no período em que estava a lutar, era o melhor momento para mim. Ficava, literalmente, sem nenhum tique, porque estava focado no que estava a fazer”, conta ao JPN.

Maurício Horsth, paciente com Síndrome de Tourette.

Maurício Horsth é chefe de cozinha num restaurante em Braga, músico e apresentador. Foto: Ana La-Salete Silva

Também Afonso Santos tem um baralho de cartas que foi colecionando com o pai ao longo dos anos. Apesar de confessar que o desfecho nem sempre lhe é favorável, gosta de competir e jogar. A estratégia inerente ao jogo obriga-o a pensar e isso ajuda a estimular o cérebro.

No entanto, nem sempre é possível, e é aí que passam por momentos de maior stresse, que provocam os piores tiques. Maurício dá o exemplo do confinamento, período em que teve mais dificuldades por ter estado fechado em casa, sem poder fazer o que mais gostava no exterior.

Claúdio Silva, estudante e jogador de andebol, confessa que o medo do desconhecido lhe causa inquietude, como ir de férias para um novo sítio ou inserir-se num novo ambiente escolar.

Magoar-se a si próprio e ficar com dores corporais, estar sempre a repetir a mesma palavra ou expressão e inserir objetos dentro do corpo, são alguns dos tiques que podem deixar, para sempre, danos físicos ou psicológicos. O importante é estar relaxado e fazer aquilo que mais se gosta para evitar estas fases.

“Ninguém tem o direito de rejeitar uma pessoa, porque tem um problema de saúde”

A Síndrome de Tourette é uma doença quase desconhecida, até considerada estranha. É pelo menos o que sentem todos aqueles com quem o JPN teve a oportunidade de conversar.

Assim, o olhar alheio é algo constante no dia a dia de quem tem tiques. Começa cedo, com os colegas de escola, como foi no caso de Maurício Horsth, de Cláudio Silva e de muitas outras crianças que chegam à APST com problemas de bullying muito complicado”, como descreve a presidente, Gisela Santos. Já Afonso Santos, seu filho, teve mais sorte e, com muito apoio da família e da professora primária, Alzira Martinho, conseguiu integrar-se facilmente. 

Afonso Santos, de 13 anos, está a escrever o seu próprio livro. Conta a história de um psicólogo com Síndrome de Tourette, que ajuda pessoas como ele.

E as dificuldades não terminam com o percurso escolar. Estendem-se muitas vezes até à entrada do mercado de trabalho. “Há pessoas que não conseguem determinado emprego, porque têm tiques, porque aquilo vai causar má imagem. Então se forem profissões que exigem um contacto direto com o público, muitas vezes, temos queixas de pessoas que não conseguem, porque a doença é um impedimento”, relata Gisela Santos, presidente da APST.

O apoio familiar é “essencial”

Gisela Santos, mãe de Afonso, decidiu criar a Associação Portuguesa de Síndrome de Tourette (APST) em 2017 depois de perceber que ainda havia pouca investigação sobre a doença em Portugal.

Gisela Santos conta que um dos objetivos da associação passa por auxiliar as famílias a lidar com a Síndrome de Tourette, visto que o “apoio familiar” é um aspeto “essencial” para melhorar o dia a dia dos pacientes.

Afonso, filho de Gisela, participa em diversas atividades organizadas pela APST e tem o desejo de, no futuro, assumir a presidência da associação.

Gisela Santos, criadora da APST e mãe do Afonso

A falta de uma rede de apoio quando Afonso foi diagnosticado levou Gisela Santos a criar a primeira associação para a ST em Portugal. Foto: Ana La-Salete Silva

O apoio e compreensão da família foram importantes no crescimento de Maurício Horsth, de 33 anos, que revela que nunca sofreu pressão familiar e que a família lidava com ele da mesma forma que lidava com os seus irmãos.

Para além da família, os amigos podem ter também um papel importante no dia a dia. Carla Moreira, mãe de Paulo Gonçalves, não tem dúvidas de que o filho teve “muita sorte” com os amigos, que não só o auxiliam a lidar com a doença, como são os primeiros a defendê-lo em situações mais desagradáveis. 

Gisela conta que a história mais “comovente” que acompanhou foi a de um homem na casa dos 40 anos que chegou à APST sem ter ainda um diagnóstico, com um passado difícil porque a família “não aceitava a doença” e a Síndrome foi “sempre  evoluindo da pior forma possível”.

“Ele não tinha trabalho, já tinha trocado de trabalho ‘ene’ vezes e todos os relacionamentos acabavam falhados”, relata. Um ano depois de receber o diagnóstico e com o auxílio da APST, este portador da doença conseguiu mudar o rumo da sua vida e controlar a Síndrome. Histórias como esta deixam Gisela “extremamente feliz”.

A operação: “O meu filho perdeu uma infância e perdeu uma adolescência. Tem que se lhe dar um futuro”

Nos casos mais graves, em que os tiques têm um impacto muito negativo no dia a dia dos pacientes, a solução que alimenta a esperança num futuro melhor é a cirurgia. De “cérebro aberto”, é colocado um aparelho no paciente que controla e acalma a manifestação da Síndrome de Tourette. Trata-se de uma operação de risco, mas que pode mudar vidas. 

Foi o que aconteceu com Paulo Gonçalves que, com 23 anos, foi submetido a uma cirurgia de Estimulação Cerebral Profunda. Esta cirurgia consiste, simplificadamente, na implantação de um aparelho (neuroestimulador) por baixo da clavícula, cujos fios – também eles aplicados por baixo da pele – estão ligados a determinadas zonas do cérebro e dão choques elétricos que, posteriormente, vão modelar o sinal elétrico do cérebro. A voltagem deste aparelho pode ser adaptada externamente por um profissional de saúde.

Apesar dos riscos que sabia que corria, Paulo aceitou o desafio sem hesitar e “com um sorriso nos lábios”. Quase quatro anos depois, as diferenças são notórias e o grau de recuperação ultrapassa qualquer expectativa, como contou ao JPN a mãe a partir de Lisboa.

“Não se perdeu nada. Na minha perspetiva, ganhou-se tudo”

Sabendo o que sabe hoje, Gisela Santos, que tem quatro filhos, “faria tudo de novo” e acredita que a família beneficiou da experiência que teve. As suas crianças, diz-nos, desenvolveram uma “empatia muito grande pelo próximo”.

Cláudio, por seu turno, ressalva que no seu caso a pele engrossou. O bullying de que foi alvo ensinou-o “a ser mais forte”. Para Carla e Paulo, fica a sensação de que há “uma minoria” na sociedade “com uma sensibilidade acima da escala”. A doença colocou-os em contacto com o melhor e o pior que as pessoas têm para dar.


Mês de sensibilização arranca este sábado

Num país onde, segundo Vasco Conceição, “a quantidade de dinheiro investida em investigação é muito baixa”, raramente se ouve falar da Síndrome de Tourette de uma forma que vá além dos tiques e palavras obscenas. A maior consequência é a inexistência de dados relativos à população portuguesa com a doença, e até indivíduos que chegam à idade adulta sem saber que a têm.

Para uma perturbação em que até o diagnóstico é subjetivo, um dos objetivos da APST é dar origem aos primeiros dados, fomentando esta investigação,  até “porque há muita coisa sobre a doença que não se sabe atualmente”, ressalva Gisela Santos.

Por enquanto, fazem chegar às pessoas a informação que já existe. Este sábado, 15 de maio, inicia-se o mês de sensibilização para a Síndrome de Tourette, que vai até 15 de junho e, a propósito, a APST tem um conjunto de atividades planeadas.

A propósito, os que já estão familiarizados com o problema têm mensagens importantes para partilhar. “Nada é impossível”, reitera Maurício.

Trabalho editado por Filipa Silva e João Malheiro

Esta reportagem multimédia integra a série “Comunidades” estreada em 2020 pelo JPN. A série de 2021 teve o seu pontapé de saída a 1 de março no âmbito da atividade Editor por um Dia, este ano a cargo da jornalista Catarina Santos.