A chegada da Democracia, depois da Revolução de 1974, provocou grandes mudanças sociais, sobretudo no mundo rural. Será que a população portuguesa estava pronta a aceitá-las? O JPN falou com o realizador José Filipe Costa sobre o seu novo trabalho e os tabus que persistem até hoje.

Prazer, Camaradas!” estreou a 20 de maio nas salas de cinemas por todo o país. O novo filme de José Filipe Costa é um mockumentary sobre o rescaldo do 25 de Abril.

“Em 1975, no Portugal pós-revolução, uma mulher e dois homens viajam da Europa do Norte para trabalharem nas cooperativas das herdades ocupadas no Ribatejo. Como muitos outros, vêm fazer a revolução sexual, abalando as velhas certezas de quem viveu tanto tempo em ditadura“, pode ler-se na sinopse.

Como o próprio género indica, o filme é um falso documentário – um documentário ficcional – em que atores idosos interpretam versões jovens de si próprios. A ação decorre em 1975, mas tiram-se fotografias com smartphones e usam-se carros do século XXI.

Esta viagem ao passado através do presente foi inspirada por dois diários dos professores Eduarda RosaJosé Rabaça, que “descreviam os abortos que se faziam na altura, as primeiras experiências sexuais, os casos de violência doméstica”, conta José Filipe Costa ao JPN. Estes relatos “que eram muito vivos e sugestivos daquilo que se passava na época” levaram o realizador a fazer “Prazer, Camaradas!“.

Mas se os diários destes professores alfabetizares serviram de inspiração à temática do filme, as entradas diarísticas narradas no filme são retiradas de um outro diário de uma médica alemã que esteve na Comuna de Aveiras, em 1975. “Escreveu um diário onde dava conta das nossas contradições e da complexidade que era estar em Portugal e, ao mesmo tempo, compreender os portugueses sem falar a língua”, explica José Filipe Costa.

“As mentalidades só mudam no longo prazo”

A premissa de recriar o dia a dia de uma cooperativa em 1975 – é, aliás, um regresso a esta época depois da realização de “Linha Vermelha” (2011) – está ligada ao passado da sociedade portuguesa. Não obstante, grande parte de “Prazer, Camaradas!” é enquadrada pela visão das personagens estrangeiras.

O filme parte muito dos encontros e desencontros, dos choques entre estrangeiros e portugueses” afirma José Filipe Costa. “Eram dois universos distintos que conviviam no mesmo lugar. Os estrangeiros vinham com outro tipo de leituras e mundividência”, completa.

Em mais do que uma ocasião no filme, os cidadãos de outros países mostram-se surpreendidos por serem sempre as mulheres a tratarem das tarefas domésticas. O realizador aponta que os estrangeiros “chegavam a estas zonas rurais isoladas e não compreendiam como a revolução não alterava certos aspetos da vida” daquelas pessoas.

“Ficavam espantados com a ideia do macho latino ribatejano e a subalternização e submissão das mulheres”, explica.

Helga Novak, uma escritora alemã que também esteve numa das cooperativas que o filme retrata, dizia que “as leis não escritas são mais difíceis de mudar que as leis escritas“. Para José Filipe Costa, as mentalidades e as regras sociais “só mudam a longo prazo”.

“Ainda estamos perante a questão da submissão da mulher. A violência doméstica, a desigualdade salarial. Ainda estamos perante uma série de questões que nos devem despertar para a luta.”, afirma o realizador de 51 anos.

Se o progresso social não foi imediato, José Filipe Costa também defende que o período pós-revolução foi um “tempo jubilatório em que as pessoas se emanciparam de alguma maneira”. Como se pode ver no filme, os tabus não acabaram, certos pudores continuaram, mas houve uma abertura e o início de luta que continua até hoje. “Mudamos alguma coisa, o aborto foi legalizado, entre outras conquistas das mulheres. Mas ainda estamos em falha“, considera o realizador.

Se o mundo rural tem os seus problemas e conflitos, “Prazer, Camaradas!” também realça os aspetos positivos deste ambiente e evita vilificar os seus intervenientes: “É uma ruralidade que tem um lugar próprio e deve ser mostrada e explorada. As pessoas deste meio, normalmente, são retratadas pelo cinema e pela televisão de forma paternal. Tentei que isso não acontecesse”, explica José Filipe Costa.

Imagem do filme “Prazer, Camaradas!” Foto: D.R.

“Tudo depende do nosso presente”

O retrato impressionista que “Prazer, Camaradas!” faz de 1975 é, em grande parte, improvisado pelo elenco. “Foi uma forma de deixar uma certa genuinidade e espontaneidade revelar-se durante o processo de trabalho”, conta o realizador.

O improviso como “maneira de ter vivacidade” só foi possível graças à “generosidade dos atores e à forma como participaram com alegria neste filme“, acrescenta.

E qual é o papel de um realizador quando uma boa parte do filme é improvisada? “É tornar as pessoas mais confortáveis, para elas sentirem que estão a ser protegidas e que o que estão a fazer é importante e terá impacto que vai muito além do momento”, responde José Filipe Costa.

De facto, “Prazer, Camaradas!” provoca um efeito estranho ao espectador. Apesar de estarmos cientes de que estamos a assistir a uma encenação, somos absorvidos para este 1975 paralelo. As barreiras do espaço e do tempo dissolvem-se e, mesmo com atores mais velhos do que era suposto, sentimo-nos a conviver neste Portugal pós-revolucionário, tão realista é o seu retrato, ainda que seja ficcional no método em que é retratado.

Um desses casos é uma simples conversa entre mulheres que lavam roupa num tanque – para choque das estrangeiras habituadas às máquinas de lavar. Numa cena gravada à primeira, segundo José Filipe Costa, as intervenientes femininas discutem os seus afazeres, as suas experiências sexuais, a sua posição social perante o homem. Uma conversa tão genuína “que não se pediu para repetir nada“, conta o realizador.

José Filipe Costa, realizador de “Prazer, Camaradas!” Foto: Joana Linda

O desfocar das linhas que separam o presente do passado acontece, porque “o passado só pode ser visto através do presente“, defende José Filipe Costa. ” Tudo depende do nosso presente e da maneira como olhamos para o passado que está sempre a ser reescrito”, explica.

Para o realizador, no presente, as memórias deste período revolucionário “ainda estão muito vivas” e foi por isso que conseguiram ser dramatizadas desta forma. “Não há uma imagem do passado que esteja delimitada e determinada de uma vez por todas“, acrescenta.

A banda sonora também reflete a forma como o passado pode ser reescrito. Ouvem-se canções de Zeca Afonso e José Mário Branco, as típicas canções de intervenção que associamos à época, mas também músicas disco dos anos 70. “É um som brincalhão, que joga com as expectativas, mas tem a ver com a alegria e a celebração”, explica José Filipe Costa.

É a alegria da revolução, os conflitos da mudança, o choque de realidades que compõe “Prazer, Camaradas!” – um filme sobre o passado que fala também sobre o nosso presente.