“Um dos nossos propósitos com este exercício é, sobretudo e em primeiro lugar, abrir uma brecha para a discussão e alargamento de horizontes sobre a questão da invisibilidade“, é assim que se define a razão de existir do Dicionário da Invisibilidade, no seu prefácio. O projeto do SOS Racismo foi apresentado este sábado (19) e procura contar as histórias de diversas personalidades que marcaram as mais diferentes áreas.

No total, são mais de três mil nomes divididos por 600 páginas. Desde figuras mais conhecidas do público como Zeca Afonso e Amílcar Cabral até nomes que pouco dizem à maioria, como Phoolan Devi e Leila Khaled. Contudo, todos estes têm em comum lutas e resistências que ajudaram e ajudam a construir a realidade em nosso redor.

A publicação encontra-se organizada por regiões geográficas e, seguidamente, por temas, procurando contar as histórias de várias figuras que se destacaram em áreas como a filosofia, as artes, a ciência e o ativismo, entre outras. É mais uma obra para o arquivo de mais de 800 do SOS Racismo. Obras essas que visam, sobretudo, a “formação“, aponta um dos dirigentes da organização, José Falcão, ao JPN.

Embora, muitas vezes, o foco, numa “Europa eurocêntrica“, vá para as figuras próximas, “as lutas foram feitas pelas pessoas de lá”, afirma. Por isso mesmo, torna-se essencial “falar das pessoas que estão invisíveis“.

A ideia de escrever sobre as histórias de protagonistas esquecidos e relevantes da história da humanidade surgiu em 2018, através de um desejo de “dar nome à invisibilidade e pôr os nomes visíveis”, conta José Falcão. O projeto conta também com a coordenação de Ana Sofia Palma, Mamadou Ba e Txema Abaigar. As ilustrações que acompanham os textos são da autoria do artista André Carrilho.

Os protagonistas “invisíveis”

A partir da discussão da invisibilidade, surge a questão de “porque é que as pessoas são invisíveis”. Para José Falcão, é importante perceber que “a vida não é a Europa ou os países ricos”, mas sim “toda a gente“. Assim, o foco da publicação Dicionário da Invisibilidade é um que se expande para além de quaisquer fronteiras físicas.

Embora considere todas as histórias presentes na obra “incríveis“, o coordenador do projeto destaca os aborígenes na Oceânia. Para o mesmo, o continente é como se fosse “invisível” para os europeus. Ao longo do dicionário, é possível encontrar mais de 100 aborígenes. Do mesmo modo, outras figuras indígenas pelo mundo são incluídas no projeto, podendo-se assinalar, desde logo, o líder indígena Geronimo.

Geronimo, líder indígena da América do Norte. © André Carrilho Ilustração: André Carrilho

Líder dos apaches na América do Norte, destacou-se como o chefe do último grupo de guerreiros contra os americanos brancos, no século XIX. Intransigente na sua recusa em ser levado para uma reserva, foi capturado em 1886. 20 anos depois, acabaria por morrer de pneumonia. A sua filha Naiche chegou a afirmar que o seu pai “não era um bom homem” e que “nunca ouviu nada de bom dele.”

Mas Geronimo é só um nome entre muitos outros. Ken Saro-Wiwa é outro dos nomes presentes na publicação que escapa as mentes de muitos. Inicialmente escritor e produtor televisivo, acabou por se tornar um ativista ambiental. De origem Ogoni, povo do sul da Nigéria, criou o Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni nos anos 90.

Ken Saro-Wiwa, ativista ambiental nigeriano. Ilustração: André Carrilho

O movimento acusava a petrolífera Shell de estragar a beleza natural da região e criticava o facto das pessoas só terem sido prejudicadas pela vinda da empresa. Apesar da vitória em 1993, com a saída da Shell da zona, a ditadura militar nigeriana deteve Saro-Wiwa no ano seguinte, acusando-o de homicídio. Em 1995, acabou enforcado.

Tanto Geronimo como Ken Saro-Wiwa tornaram-se figuras de resistência e representativas de causas maiores do que si próprios. A essas juntam-se muitas outras, algumas com percursos polémicos e divisivos, mas cujo impacto é indiscutível. Figuras como a indiana Phoolan Devi, apelidada de Rainha dos Bandidos, por ter cometido vários crimes, como homicídio e rapto, contra os mais ricos. Acabou assassinada, em 2001, e é hoje encarada como um símbolo das classes mais baixas.

Ou ainda Leila Khaled, antiga militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina, envolvida em dois sequestros de aviões em 1969 e 1970. Ou mesmo figuras cuja memória que fica é a sua morte, como Alcindo Monteiro, assassinado num crime de ódio racista, em 1995.

São estas algumas das histórias que vão sendo contadas ao longo do Dicionário da Invisibilidade. Histórias que marcam o passado e o presente da humanidade nas mais diversas formas, porque a verdade é que “todos e todas contam, de uma ponta à outra”. José Falcão acredita que está a ser feita “alguma diferença”. E é essa diferença que se encontra marcada em 600 páginas de vidas e lutas num mundo em constante mudança.

Artigo editado por João Malheiro