Se no século XX conhecemos a reivindicação de género, neste século XXI vamos ver a reivindicação de espécie. A ideia defendeu-a o cyborg e artista audiovisual Neil Harbisson na sessão de abertura do 6.º Encontro Internacional de Arte e Comunidade – Mexe, que teve lugar no Jardim de São Lázaro do Porto, no passado sábado (18).
Numa conversa conduzida pela jornalista Cláudia Galhós, no âmbito do Mexe, o único cyborg no mundo que é reconhecido como tal por um Governo disse considerar-se numa dupla vertente: como trans espécie, por possuir sentidos que vão para além dos da sua espécie; mas também cyborg, não porque use tecnologia, mas porque, afirma, ele é tecnologia. Tal o determina a antena que tem implantada na cabeça, um olho eletrónico que lhe permite perceber as cores, através de vibrações, uma vez que a sua visão natural é a preto e branco.
Sobre as trans espécies, Harbisson tipificou diferentes casos: pessoas que nascem e se sentem presas no corpo de um humano, mas que se identificam com outras espécies existentes; pessoas com implantes não humanos; pessoas que não se identificam com espécies existentes e padrões sociais vigentes e, por último, pessoas que se identificam com coisas não tangíveis, que seguem uma identidade espiritual.
“Tornar-nos cyborgs é ético em favor do planeta”
Na sessão que decorreu no Porto, o artista defendeu também que ser cyborg é uma escolha ética, porque é possível, nessa condição, ajudar o planeta: normalmente adaptamos o planeta aos nossos desejos, mas podemos ser nós a mudar.
“Se implantássemos visão noturna, talvez não tivéssemos de ligar as luzes à noite e afetar os pássaros, tirando-lhes a luz natural. Ou se instalássemos um regulador de temperatura com calefação, para sentir calor se houver frio, não teríamos de criar aparelhos e calefações externos”, exemplificou o também presidente da Fundação Cyborg.
A batalha social e governamental
Neil Harbisson, que na sua página oficial se assume como “britânico de nascença” e “catalão de criação”, cresceu e estudou em Barcelona, mas mudou-se para Inglaterra aos 19 anos para estudar composição musical. Foi nessa altura, por volta de 2003, que o artista que desde a nascença sofre de acromatopsia começou a trabalhar no projeto que o ajudaria a perceber as cores sem alterar a sua visão.
Harbisson explicou que estudou a fundo as teorias que relacionam as vibrações das cores com as vibrações dos sons. A partir destas teorias, teve a ideia de criar um novo órgão que lhe permitisse sentir (e ouvir) as cores e que ao mesmo tempo fosse confortável. Assim surgiu a ideia de implantar a antena que hoje está integrada no seu crânio, mais concretamente no osso occipital.
Em resposta a uma pergunta do público que assistiu à conversa, o cyborg explicou que não foi nada fácil o processo, que culminou com a implantação do olho eletrónico em 2004. Contou que primeiro tentou que a sua operação fosse aprovada pelo comité de bioética do hospital escolhido na altura, mas não teve sucesso. Três motivos foram apontados por esse comité para a recusa da intervenção.
Primeiro, o facto de o implante não substituir um órgão pré-existente, como aconteceria no caso de se tratar de um braço ou uma perna que tivesse perdido. Também porque através da antena, Neil iria reconhecer cores ultra-violetas e infra-vermelhas, que não se podem perceber pelo olho humano. E, por último, porque o hospital tinha receio da imagem pública que iria dar se alguém saísse de uma intervenção médica com uma antena na cabeça.
Após tentar o implante pela via legal sem êxito, o britânico acabou por implantar a antena com a ajuda de um médico que lhe fez a operação clandestinamente.
Para além das dificuldades na aplicação da antena, Harbisson acrescenta que teve que lutar com o governo britânico para que aceitassem a sua identidade como cyborg e para que o deixassem aparecer na fotografia do passaporte com a antena visível. O cidadão alegou que a tecnologia fazia parte do seu corpo e foi-lhe atribuído um estatuto biónico que o transformou no primeiro humano a ser reconhecido por um Governo como um cyborg.
Cyborg Foundation e Transpecies Society
À margem da conversa do Mexe e em declarações ao JPN, Neil Harbisson explicou que organizações como a Fundação Cyborg e a Transpecies Society, das quais é co-fundador, lutam pelos direitos dos cyborgs e dos trans espécie, à falta de normativos legais que reconheçam estes grupos.
Harbisson acrescenta que trabalham pela defesa de direitos como a liberdade morfológica do ser humano, assente na ideia de liberdade sobre o corpo, deixando a este a decisão sobre que novos órgãos implantar ou que novos sentidos ter. Este direito visa também o reconhecimento do implante como um órgão e não como a propriedade de alguma coisa. O cyborg dá um exemplo de como essa distinção pode fazer a diferença: se for atacado na antena, quer poder reportar a agressão como tendo provocado um dano físico e não um dano material.
Outro direito que defendem estas organizações é o de os cyborgs poderem decidir quem pode ter acesso ao seu corpo através da internet. A antena de Neil, por exemplo, tem acesso à internet, e o cyborg quer poder decidir a quem é dada a permissão de acesso ao seu corpo. Afirma que esse é um direito que serve para defender os cyborgs no caso de serem hackeados fisicamente.
Chamado a esta conversa foi também Pol Lombarte, presente na última parte da sessão de abertura do Mexe. É um jovem espanhol nascido em 2002 e é membro ativo das organizações já referidas. Lombarte é um artista do mundo cyborg, que tem, em fase de testes, um aparelho que transmite o batimento cardíaco através de luzes LED. A criação de um relógio movido por e sintonizado com esses movimentos – um tempo de vida compassado pelo ritmo de vida – é um dos projetos que o espanhol tem em mente.
Para Neil Harbisson e Pol Lombarte, o mundo está a evoluir e as novas espécies vão ser aceites pela sociedade gradualmente: “Já está a acontecer. Eu sou diversidade de espécie, Moon Ribas também, Manel de Aguas também. Há pessoas que já se sentem trans espécie”, expressa Harbisson ao JPN, referindo que o mundo dos que não se sentem 100% humanos já está aqui, no presente.
Artigo editado por Filipa Silva