Desde que começou a estudar design gráfico na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), Violeta Santos Moura sabia que “não estava a fazer algo com alma”. Após terminar o curso, partiu para Barcelona para fazer um mestrado em Jornalismo, a área que realmente queria. Mais tarde, quando um editor da Agência Lusa lhe pediu que fotografasse algo para acompanhar o seu trabalho escrito, em Jerusalém, percebeu que era aquilo que gostava.

Fez trabalhos para a Agência Lusa, para o “Público” e para jornais estrangeiros como o britânico “The Guardian”, o espanhol “El País”, o australiano “The Sydney Morning Herald”, entre muitos outros. Foi distinguida pela revista “Time” como uma das “34 fotojornalistas mulheres a seguir”.

Mesmo assim, viver da profissão não é fácil. O ano de 2020, confessa, foi particularmente “difícil”.

Nesta entrevista ao JPN, a fotojornalista de 38 anos – natural de Vila Real, mas há muitos anos residente no Porto -, defende que ainda se colocam muitos obstáculos às mulheres fotojornalistas que decorrem do seu género e denuncia ter sido, ela própria, alvo de um episódio de assédio. Acabou sem o trabalho. “É difícil, e o problema não é só em Portugal, é em todo o lado”, afirma.

JPN – Quais são as maiores dificuldades que se colocam a uma trabalhadora independente?

Violeta Santos Moura (VSM) – Bem, a resposta curta é: são imensas. Há meses em que faço algum dinheiro e há outros em que não. Numa soma ao final do ano, dividida por 12 meses, não é mais do que o salário mínimo. É esse o grande problema! O mercado que existe neste momento é bastante diferente daquele que existia na altura dos meus professores e dos vossos: na altura em que fui aluna, uma boa parte dos meus professores tinha contratos com redações, logo, ninguém nos ensinou “como é que se sobrevive não tendo um contrato”, sendo freelancer, como mandar uma proposta, como fazer um orçamento, como nos defendermos… [A formação] foi toda muito à base do conteúdo e de como uma peça jornalística deve ser.

Eu, antes de estar em jornalismo, estava em design gráfico, que é uma daquelas profissões em que a maior parte dos profissionais é freelancer, e foi a mesma experiência: não nos ensinaram como ter um estúdio próprio, como acordar contratos. No fundo, como é que uma pessoa pode “juntar as migalhinhas e sobreviver”. Foi muito às “apalpadelas” que me formei, e hoje ainda estou a tentar perceber como fazer isto.

JPN – Mas a maior parte dos seus projetos são propostas suas ou são propostas que lhe fazem?

VSM – Não, a maioria das coisas que eu tenho, especialmente no meu site, foi tudo coisas que eu me dispus a fazer por uma razão ou outra. Isto também partiu um pouco do facto de eu não saber como fazer com que editores nos encomendem coisas e, então, tentei criar eu tudo e, posteriormente, propor e vender as minhas peças às editoras.

JPN – Disse que esteve em design gráfico: quando é que decidiu que não queria design, mas sim fotojornalismo?

VSM – Eu quando fui para design sempre soube que não era aquilo que eu queria fazer. Só que, lá está, antigamente, uma pessoa quando chegava aos 18 anos estava como que pré-definido que ia para a faculdade. Tal como aconteceu com o meu irmão, era uma espécie de “sabes desenhar, então, vais para design”, mas não é por uma pessoa saber nadar que vai ser nadadora olímpica, correto? 

Eu não sabia ao certo o que queria, portanto, entre estar em design e não estar, ao menos que desenvolvesse alguma experiência. Apesar de sempre ter tido notas excelentes, não estava a fazer algo com alma. No fim do curso, até tinha o desejo secreto que não me dessem trabalho, o que eu sei que é péssimo.

JPN – Tem vindo a publicar artigos em todo o mundo. Como é que é lidar com a escrita em jornais de culturas tão diferentes? Teve que lidar com a censura ou mudar a forma como escrevia?

VSM – Bem, depois de ter a peça feita, são raras as vezes em que tenho problemas com isso. Normalmente, escrevo a peça em inglês e depois as respetivas publicações, em cada um desses países, traduzem. É bom uma pessoa ir seguindo já alguns dos parâmetros básicos do jornalismo e isso já assegura que o artigo não vá ser muito mudado.

Em termos de censura e obstáculos à realização das reportagens, existem mais enquanto uma pessoa está a realizar a reportagem em si e isso, volta e meia, gera dificuldades pontuais. Por exemplo, em Caxemira [região dividida pela Índia, Paquistão e China], eles não querem que as pessoas estejam lá a reportar tudo e nós temos que arranjar uma maneira de fazer o nosso trabalho sem colocar em perigo as pessoas que estão lá a ajudar. Ainda hoje, não sei se consigo voltar a entrar em Caxemira, não sei se estou em alguma lista negra ou não. 

JPN – Sabemos que esteve em Israel a escrever e fotografar. Como é que assegurou a sua segurança enquanto estava lá?

VSM – Acredito que esse seja dos sítios mais sossegados para trabalhar como jornalista. É o sítio no planeta com maior número de jornalistas por metro quadrado. É muito difícil uma pessoa ter problemas a fazer reportagens. Os maiores problemas são mesmo a nível físico, de resto, sempre me senti bastante à vontade para fazer o que queria. Isto também porque o governo israelita tem uma necessidade muito grande de se afirmar como parte das sociedades liberais ocidentais e uma das estratégias fundamentais para isso é respeitar a existência de jornalistas, da oposição, de ativistas. 

A imprensa é um dos pilares da democracia.

JPN – Sempre gostou de fazer fotojornalismo? Quando é que decidiu que queria documentar estes cenários instáveis e de guerra?

VSM – Eu comecei por jornalismo escrito e fiz um mestrado [nessa área] quando terminei design gráfico. Foi quando comecei a perceber que devia ter ido para jornalismo. Depois estive um ano a estudar para fazer as provas para entrar no mestrado. Tive de estudar espanhol para fazer o mestrado em Barcelona e comecei por jornalismo escrito. Fiz várias passagens por redações em Espanha como estagiária, passei pela televisão na parte da produção e a dada altura comecei a escrever para a [Agência] Lusa quando estava em Jerusalém ou Tel Aviv, não me lembro bem.

O meu editor, na altura, disse-me: “já que estás aí a escrever as peças, porque é que não fazes umas fotos?”. Tudo bem, porque não? Comprei uma máquina e, a partir daí, comecei a explorar e percebi que, a dada altura, estava mais preocupada em fazer a reportagem visual do que com a escrita. Aí, percebi que se calhar era o meu caminho e comecei a centrar as reportagens mais na parte visual.

Não tenho um amor pela fotografia que seja maior do que aquele que tenho pela escrita ou pela televisão. Para mim, é um instrumento. Se um dia, por alguma razão, não puder fazer fotojornalismo, facilmente faço uma reportagem escrita ou para televisão ou para rádio. Para mim, é o conteúdo que interessa

Um militar confirma a identidade de um homem palestiniano às portas da antiga cidade de Jerusalém. Fotografia: Violeta Santos Moura/D.R.

Eu comecei pelo jornalismo de investigação, atrai-me mais essa parte (…) mas não necessariamente em termos de conflito. Isto tudo partiu um pouco do acaso. Eu recebi uma bolsa do governo para fazer um estágio onde eu quisesse. Eu achei que, concorrendo a um estágio com jornalistas portugueses, tinha mais hipóteses de conseguir essa bolsa. Lembrei-me de um jornalista português que está em Israel, o Henrique Cymerman, e concorri a um estágio com ele. Não tenho uma especial atração por este tipo de coisas, simplesmente foi o que fui fazendo e acabei por me ir habituando. Honestamente, acho que fazer jornalismo “no nosso quintal” é tão respeitável como fazê-lo fora. 

Eu estava lá [em Israel] a fazer reportagens sobre “o meu quintal” porque eu vivia lá, tinha lá o meu companheiro, os meus amigos. Muitas vezes nem estava a trabalhar em jornalismo, porque não havia empregos. Quase nem havia empregos para as pessoas de lá, quanto mais para mim. Estava a trabalhar em hotéis a fazer pequenos-almoços. Ia fazendo uns projetos à parte para me manter um pouco ligada ao jornalismo, enquanto estava a viver muito precariamente. Comecei a ficar curiosa, porque Israel-Palestina é um dos conflitos mais cobertos a nível noticioso do mundo e há outros que são completamente obscuros e, no entanto, são conflitos semelhantes e têm menos cobertura. 

JPN – Para acompanhar e descrever estes eventos penosos é preciso “ter estômago”, não concorda? 

VSM – Essas pessoas vivem lá. Eu ir lá e passar uma semana não é nada. Para mim, é bastante confortável. Se uma pessoa partir do princípio que é a realidade delas, entende que é mais difícil para elas do que eu ir lá e vir-me embora. A gente cobre o invulgar, não cobre o dia a dia sustentável em que as pessoas, mais ou menos, vão vivendo. Acho que não é preciso grande estômago. Se os sujeitos da minha reportagem conseguem, nós também. O mínimo que uma pessoa pode fazer é tentar transmitir um pouco do que eles passam.

JPN – Ainda sobre este trabalho que fez em Israel: como é que é assistir ao conflito na televisão de tão longe depois de lá ter estado?

VSM – É muito pessoal, porque eu deixei lá bastantes amigos israelitas e palestinianos. Mas, por acaso, a cobertura mediática noticiosa do conflito Israel-Palestina é, no geral, bastante boa. É dos sítios mais cobertos no planeta (…) quando há um conflito há sempre uma câmara por perto. Sinto que estou a ter noção do que lá se passa. Já em Caxemira, há uma barreira mediática bastante maior… Fizeram um bloqueio de comunicações: sem internet, sem telefones, durante um ano! Um fotojornalista em Caxemira, se conseguisse fazer uma reportagem e não ser preso ou espancado, teria que levar uma USB para o aeroporto em Srinagar e dar a alguém para levar essa USB para Deli para conseguir passar as fotos cá para fora. É uma brutalidade: um ano disto, sem notícias, é como se as coisas não existissem.

Raparigas de Caxemira protestam contra o assassinato de uma vizinha de 60 anos, morta no meio de um tiroteio entre protestantes e soldados, e contra a nova lei indiana sobre Caxamira. Fotografia: Violeta Santos Moura/D.R.

JPN – Como é que foi ser considerada uma das ‘34 Fotógrafas Femininas a seguir’ pela revista “Time”?

VSM – Não estava muito à espera e, claro, é um consolo ver que editores de uma revista tão conceituada prestaram alguma atenção e também convidaram uma pessoa para escrever um pouco sobre mim que foi uma outra fotojornalista que eu respeito bastante e que conheci, mal, mas cujo trabalho eu respeitava bastante e fiquei muito satisfeita. Para mim, mais do que o reconhecimento dos editores da “Time” foi, depois, essa fotojornalista ter escrito essa pequena entrada sobre mim e ter o respeito de outra fotojornalista, no sítio onde estava a cobrir [Israel]. Uma fotojornalista israelita dizer que respeita e aprecia as reportagens que eu faço sobre a realidade dela, para mim, é uma grande satisfação.

A “Time” mencionar-me precisamente por um trabalho que fiz lá em Israel sobre ex-soldados israelitas… Num dos sítios que mais cobertura jornalística tem no planeta, é muito difícil uma pessoa fazer algo diferente, de destaque, que não seja bombardeamentos e morte. Tem de ser coberto, como é óbvio, mas desafiar um pouco a narrativa e desvendar um pouco de alguma coisa diferente, é muito difícil. 

JPN – Pensa que as mulheres não são tão reconhecidas na área do fotojornalismo como os homens?

VSM – Há estatísticas que mostram que é muito menos provável um editor dar a mulheres os trabalhos de coisas noticiosas mais interessantes, com mais visibilidade, do que a homens. O mundo em si é muito misógino. Já me aconteceu fazer uma reportagem em que uma das fontes, para me ajudar e dar informação, pediu em troco que dormisse com ele, o que é bastante penoso, sendo ele uma pessoa que já tinha sido entrevistada antes por homens, e de certeza que eles não dormiram com ele… E eu acabei por ir de mãos vazias, sem essa parte importante da história, precisamente por ser mulher, e aos meus colegas bastou-lhes pedir e aparecer.

Dentro do fotojornalismo, há a realidade de uma pessoa às vezes não conseguir fazer os trabalhos por ser mulher, chego ao editor e digo “não consegui entrevistar este tipo, porque ele estava a assediar-me”. Omeu editor não pode publicar as minhas desculpas: ou tem a entrevista ou não tem. É difícil, e o problema não é só em Portugal, é em todo o lado.

Mais do que histórias que gostaria de ter coberto, gostava de ter tido mais emprego. [2020] Foi um ano difícil.

JPN – Recentemente foi entregue o Prémio Nobel da Paz a dois jornalistas. Qual é a sua opinião sobre o facto de um dos maiores prémios do mundo ter sido entregue a dois jornalistas? 

VSM – Acho merecedor. Aquilo que se passa nas respetivas regiões [dos laureados] – filipina e russa – não é ocultado pelos media, é ocultado pelo governo. São países onde existe uma censura gigante. O respeito pela liberdade de expressão e de imprensa é praticamente zero. A imprensa é um dos pilares da democracia. Aqueles dois países carecem um pouco disso precisamente porque há um desrespeito por parte do governo em relação aos jornalistas. Eu penso que, terem dado o Nobel da Paz a jornalistas nesse tipo de contextos em que trabalham, é uma mensagem bastante forte para que realmente se valorize e proteja os jornalistas.

Honestamente, acho que é um prémio, não só para eles, mas para todo o jornalismo em si. É importante perceber qual é a importância que o jornalismo tem para sustentar e manter democracias e denunciar aquilo que se passa em governos que não querem ser responsabilizados, não querem responder.

Eu estive num sítio [Israel] e poucas vezes me vi com obstáculos para fazer o meu trabalho. Tive lá seis anos e poucas vezes isso aconteceu. Eu sei que as coisas são bastante diferentes noutros sítios. Estes jornalistas precisamente tentam quebrar esta cúpula de ferro, de desinformação e isso é extremamente louvável e acho que é bastante merecedor.

Ir a um país, fazer uma reportagem e sair nunca me afetou muito, porque eu não vivo nesse país, não há maneira de, no fundo, sofrer represálias. Em certos contextos, é bom precisamente porque uma pessoa não está comprometida, ou seja, não tem medo de perder um emprego naquele país. Não tem medo de ser apanhada durante a noite, chegar a casa e ser metida dentro de uma carrinha. Não vai ser torturada. Uma pessoa está lá um curto espaço de tempo e vem-se embora. Isso é útil em algumas situações, porque os jornalistas locais realmente sofrem todo esse tipo de pressões e é-lhes muito mais difícil fazerem determinado tipo de trabalhos.

Existem outros casos, que é o caso destes dois jornalistas, que ainda assim conseguem fazer o seu trabalho com grandes riscos e consequências pessoais. Por isso, é que eu acho que é bastante importante passar a mensagem de que realmente o mundo está atento e apoia e vê a importância deste tipo de jornalistas e profissionais. 

Todas essas imagens que eu não tirei e que vivem na minha cabeça são uma frustração imensa.

JPN – Há assim alguma história que tenha acontecido este ano a que gostasse de ter dado cobertura e acabou por não o fazer?

VSM – O sítio em que eu gostava de ter estado, por estarem a passar um momento histórico, era o Afeganistão. Não é um país com que eu esteja familiarizada, logo não será a primeira escolha para fazer uma reportagem. A última vez que eu estive fora foi em 2019 e entretanto veio a Covid-19 e ficou tudo em terra. Tive muito pouco trabalho: em 2020, fiz 2 mil euros o ano todo. Foi miserável e por isso não houve tanta maneira de conseguir investir para fazer estas reportagens. Todas elas saem do meu bolso e depois uma pessoa “reza para que compense”. Houve uma série de coisas que gostava de ter feito e não fiz, mas acho que foi o mundo inteiro. Mais do que histórias que gostaria de ter coberto, gostava de ter tido mais emprego. Foi um ano difícil.

JPN – Há muita gente que diz que uma fotografia vale mais do que mil palavras. Há alguma fotografia que tenha tirado para a qual realmente não consegue escrever algo que a acompanhe?

VSM – Tirando aquelas fotos de momentos como o 11 de Setembro: o cair das torres, o avião, a explosão… Ó pá, isso conta a história! A ideia de que uma imagem vale mil palavras acontece mesmo em alturas em que uma pessoa está a cobrir a realidade noticiosa de eventos bastantes específicos.  Para mim, é muito difícil imaginar as minhas reportagens sem texto, é algo que valorizo bastante. “Uma foto vale mais que mil palavras” é verdade, mas só em casos muito específicos.

As imagens que mais me marcaram foram as imagens que não consegui fazer. Aquelas imagens em que, por um motivo ou outro, não consegui sacar, porque não deixaram, porque não consegui ou porque na altura não percebi o que estava à minha frente… Todas essas imagens que eu não tirei e que vivem na minha cabeça são uma frustração imensa.

Entrevista realizada no âmbito da disciplina TEJ II/Imprensa – 2.º ano

Artigo editado por Filipa Silva