Acompanhados por um copo de vinho do Porto, dezenas de admiradores de Saramago encheram os dois pisos da Livraria Lello, na última sexta-feira à noite, para assistir a uma conversa de escritores sobre o homem e autor que, se fosse vivo, estaria a celebrar agora os seus 99 anos. Numa conversa moderada pelo diretor da Fundação José Saramago, Sérgio Machado Letria, recordou-se o intelectual audaz, irónico, escritor de personagens e formador de leitores, o autor, em suma, que “revolucionou a língua portuguesa”.
Numa primeira ronda, os “herdeiros” de Saramago que participaram na sessão – todos vencedores do Prémio Literário que tem o nome do escritor; Gonçalo M. Tavares, outro dos premiados que ia estar presente, teve que cancelar a presença por questões de saúde – foram instados a abordar a relação que têm com o escritor.
Afonso Reis Cabral referiu que a sua “experiência enquanto leitor de Saramago é diferente da de alguém que seja um pouco mais velho”. Com 31 anos, o autor de “Pão de Açúcar” já só se recorda de Saramago enquanto prémio Nobel – galardão que o escritor português recebeu em 1998 -, ou seja, já havia uma aura em torno do escritor.
O romancista defendeu que “Saramago é um dos últimos grandes intelectuais com peso na sociedade”, sendo esse o primeiro impacto que tem do escritor e, só depois, vem a influência que decorre do facto de ser um leitor assíduo do Nobel português.
O jovem escritor, vencedor do Prémio Saramago em 2019, considera que José Saramago é inigualável, uma vez que conseguiu “ter um estilo absolutamente próprio, único, ter uma voz e ao mesmo tempo conseguir contar uma história com personagens profundas, bem construídas e com uma mecânica de ficção extraordinária”.
Andrea Del Fuego recorda-se da sensação física de ler pela primeira vez um livro de Saramago. “O Evangelho segundo Jesus Cristo” fê-la “sentir um frio na barriga como se ele [José Saramago] me tivesse levado junto para uma certa audácia”. A escritora brasileira realçou ainda que a ironia de Saramago – uma característica da escrita dele – “é uma ironia pedagógica, porque ela tira as bases da verdade”. Del Fuego, vencedora em 2011 do Prémio José Saramago, assume que uma das grandes lições de Saramago é a defesa da escrita “como um lugar de conhecimento e de intervenção”.
Adriana Lisboa tem n’“O Memorial do Convento” o seu livro favorito do escritor – leu-o “quatro ou cinco vezes” – e reconhece: “[Saramago] é uma das presenças mais importantes da minha formação como leitora, pelo ensinamento que a literatura dele me proporcionou e pelo compromisso ético absoluto da pessoa que foi e que faz parte das suas narrativas”. Segundo a romancista, poetisa e tradutora, no Brasil, José Saramago é considerado “um autor para intelectuais, culto e de difícil leitura”.
João Tordo foi o último vencedor do prémio Saramago a falar no evento – entrou à distância, como as escritoras brasileiras. Ao público, descreveu “O Ano da Morte de Ricardo Reis” como “o grande livro de José Saramago, onde a voz dele está”. João Tordo identifica a voz “do escritor de personagens” como fruto de décadas de trabalho e não de uma mera epifania.
Deste modo, segundo João Tordo: “há um antes e um depois de José Saramago. Há quem diga isso do Eça [de Queirós]. Eu acho que ele é um grande escritor, mas não tem aquilo que Saramago tem, não tem uma voz que é incompletamente inconfundível. Nesse sentido, Saramago é o grande revolucionário da língua portuguesa”.
João Tordo olha para a figura de Saramago como uma grande inspiração, pois foi a obra do autor que o fez acreditar que ele próprio tinha capacidades para “escrever romances do género”. Além disso, das poucas interações que teve com o escritor e daquilo que conhecia dele, João Tordo considera que Saramago, apesar de ter sido uma pessoa comunicativa e mediática, “era um homem que convivia muito bem com a sua solidão, que é uma coisa que um escritor tem de fazer. O próprio ofício obriga-nos a fazer isso”.
Andrea Del Fuego diz-se sentir, em parte, influenciada por José Saramago, nomeadamente devido ao “compromisso ético das narrativas dele com o questionamento do posicionamento do homem no mundo”. Na mesma linha, Afonso Reis Cabral afirma que “em Saramago as duas coisas [arte e ativismo] estão unidas e isso é essencial, ou seja, o compromisso ético e o compromisso artístico”, algo que nem sempre se verifica.
Saramago “para entender o mundo”
Sérgio Machado Letria, diretor da Fundação José Saramago, aproveitou a conversa para abordar a questão de como dar a conhecer Saramago aos jovens enquanto personalidade e escritor, uma vez que estes não veem ou não se lembram de ver Saramago na comunicação social. O escritor português faleceu em 2010.
João Tordo aconselha aos jovens que procurem por entrevistas do escritor na internet, pois “a sua maneira de falar era emocionante, tal como a maneira como escrevia”. Por sua vez, Afonso Reis Cabral acredita que “a figura de Saramago sobrevive sem ele próprio, porque os livros são o que são. A grande aposta é dar a conhecer os livros e depois, como sucedâneo dos livros, o autor”.
Associado a esta questão, Reis Cabral ainda refere que é urgente desconstruir os preconceitos em torno do escritor. “Dizer que Saramago não sabia usar a pontuação, é a mesma coisa do que dizer que Picasso não sabia pintar”, alude. Sérgio Machado Letria considera que “só com o contacto e com o acabar desses preconceitos [em relação à escrita de Saramago] é que nós conseguiremos que mais alunos leiam a obra de Saramago”.
O responsável pela Fundação criada em nome do escritor crê que a escrita do prémio Nobel é “absolutamente única” e que os textos dele são uma “extraordinária ferramenta para entendermos este mundo e para refletirmos sobre a vida e a sociedade. Se isso acontecer, as pessoas estão mais bem preparadas para se posicionarem e se defenderem perante um mundo que é, cada vez mais, complicado”.
Sérgio Machado Letria também assumiu na sessão como uma prioridade a aproximação dos jovens à leitura, num mundo cada vez mais digital. Para isso, disse, é necessário “dessacralizar o livro, acabar com a ideia de que não se pode mexer ou estragar”. O diretor ainda sugere outros contactos com a literatura, como revistas e jornais. “O importante é que se leia”, conclui.
Todos os elementos do painel referiram a importância de associar a leitura a momentos de prazer, portanto, para Sérgio Machado Letria dizer que um livro é de leitura obrigatória é, de certa forma, “condenar o livro”. Afonso Reis Cabral, aconselha os pais a lerem livros aos filhos, de modo a criarem neles hábitos de leitura, evitando que eles achem que ler é “uma seca”.
Centenário de Saramago
As celebrações do centenário de José Saramago iniciaram-se em novembro e prolongam-se até dia 16 de novembro de 2022, dia em que o escritor faria 100 anos. O plano foi elaborado pelo professor Carlos Reis a convite da Fundação José Saramago.
Em declarações ao JPN, à margem do evento na Lello, Sérgio Machado Letria garante que o programa é “muito diversificado, com uma grande componente de outras linguagens artísticas em diálogo com a literatura de Saramago”, sendo que as leituras são o “eixo fundamental”. Exemplo disso vão ser as adaptações teatrais de textos de Saramago e as peças de bailado contemporâneo e clássico, a partir da obra do escritor.
Além disso, também vão ser publicadas reedições da obra e dois livros novos: uma fotobiografia de Saramago que vai ser dada à estampa no início do próximo ano; e uma edição especial da “Viagem a Portugal”, que foi publicada recentemente. A Porto Editora ainda vai publicar novas capas dos livros de Saramago. Portanto, “será um programa digno da dimensão de José Saramago”.
As celebrações vão decorrer em vários pontos do país e até no estrangeiro, como em Lanzarote (ilha espanhola onde o escritor viveu) e no Brasil. Assim, estão previstas sessões em bibliotecas de diferentes zonas do país e as leituras centenárias estão distribuídas por 300 escolas nacionais.
Durante o evento foi dada a oportunidade ao público de colocar questões aos diferentes membros do painel. Sérgio Machado Letria terminou a sessão com a leitura de um texto de Saramago intitulado de “Os escritores perante o racismo”, comprovando a atualidade do compromisso ético da escrita de José Saramago.
Artigo editado por Filipa Silva