O novo regime jurídico da Educação Inclusiva em Portugal, aprovado em julho de 2018, traçou uma nova direção na realidade dos milhares de crianças e jovens com Necessidades Educativas Especiais. Três anos depois, a meta da inclusão está mais perto de ser cortada?
Aprovada em 2018, a lei que estabelece o regime jurídico da Educação Inclusiva em Portugal quis dar uma nova amplitude ao conceito de Necessidades Educativas Especiais (NEE). Enquanto que a legislação anterior se destinava apenas aos alunos com NEE de carácter permanente, a atual é aplicável a todos os alunos.
O parecer médico deixou de ser obrigatório, o suporte à aprendizagem tornou-se mais detalhado e as unidades especializadas nas escolas transformaram-se em Centros de Apoio à Aprendizagem, que agregam todos os recursos humanos e materiais das escolas.
A mudança legislativa, que já conta três anos, trouxe consigo dúvidas práticas ao corpo docente e aos investigadores. Apesar dos pilares teóricos da lei serem consensuais, foram muitas as dúvidas quanto à sua aplicabilidade. Por um lado, questionava-se a compreensão dos conceitos e sua generalização e, por outro, a abordagem ao currículo e à avaliação.
“Não há documentos perfeitos”
Ao JPN, Margarida Loureiro, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, afirmou que “não há documentos perfeitos” e relembrou que são as pessoas que constroem o sistema educativo. Como tal, é necessário considerar a “complexidade inerente a esse facto” e “proceder a uma avaliação periódica da implementação das orientações e procurar melhorar sempre”.
Pelas mudanças que trouxe, e para as quais a própria Pró-Inclusão teve uma contribuição indireta, a professora faz um balanço positivo, mas ressalva algumas dificuldades de implementação.
O Decreto-Lei n.º 54/2018 concede às escolas uma autonomia que permite alguma flexibilidade curricular, mas estas têm demonstrado dificuldades em abandonar os velhos hábitos. A rigidez curricular vai sobrevivendo em alguns estabelecimentos e coloca entraves à aplicação da lei.
“O propósito é conseguir um currículo inclusivo que, não assumindo os mesmos padrões para todos os alunos, respeita e valoriza as suas necessidades, talentos, aspirações e expectativas exclusivas. A escola está ainda muito centrada no currículo nacional e na avaliação das aprendizagens [avaliação sumativa]”, comentou Margarida Loureiro.
Mas, segundo a presidente da Pró-Inclusão, nem tudo é negativo. O normativo permitiu, com a criação dos Centros de Apoio à Aprendizagem, uma agregação de todos os recursos (humanos, materiais, físicos) necessários ao apoio da comunidade estudantil, quaisquer que sejam as suas necessidades.
Para além disso, os ditos centros “promovem uma maior abertura das escolas à comunidade, com vista ao estabelecimento de parcerias com organizações/instituições locais que as apoiem na concretização dos seus projetos educativos e na mobilização dos recursos necessários complementares”.
Em entrevista ao JPN, Manuela Sanches Ferreira, diretora do Centro de Investigação e Inovação em Educação (inED), considera que o que é preciso não são mais estudos para melhorar a inclusão nas escolas. Ao contrário, a docente considera que era necessário aproveitar os contributos académicos já existentes nesta área: “há conhecimento para sermos melhor do que o que somos”, afirma.
Margarida Loureiro corrobora esta perspetiva, e vai mais longe: “Cabe aos atores educativos decidir com coragem e conhecimento. O projeto educativo de cada escola/agrupamento de escolas deve mostrar de forma clara o conhecimento que possui da sua comunidade educativa, das suas forças e fragilidades e apresentar as propostas que consideram fundamentais para dar resposta às suas necessidades, assegurando que estas contemplam todos os alunos, incluindo aqueles com necessidade de medidas específicas”.
Preconceito percecionado pela sociedade
Portugal é, de acordo com o Eurobarómetro sobre a Discriminação na União Europeia (UE), referente ao ano de 2019, o segundo país da UE com maior perceção da discriminação com base na deficiência. 58% dos portugueses e das portuguesas consideravam que em Portugal era “comum” ou “bastante comum” a ocorrência de situações de discriminação com base na deficiência.
Para a presidente da Pró-Inclusão estes dados têm uma justificação: o “sentimento de complacência, de insegurança ou medo, que deriva fundamentalmente da falta de conhecimento para apoiar estes alunos, dá origem ao preconceito, mais ou menos velado, que é expresso relativamente a estes grupos”.
Este preconceito pode ser historicamente explicado e tem raízes profundas (ver cronologia abaixo) que vão muito para lá da realidade atual. De acordo com os investigadores Luís Peixoto e Olívia Carvalho, num estudo sobre a escola inclusiva, realizado no ano 2000, as crianças com deficiência, ao longo de toda a Idade Média, eram consideradas possuídas pelo demónio sendo submetidas a exorcismos e, consequentemente, condenadas ao infanticídio.
A própria origem da educação especial não foge desta visão preconceituosa sobre a deficiência. Da ideia de que era preciso proteger o “não normal”, considerado um perigo para a sociedade, nascem, no início do século XIX, as primeiras formas de institucionalização especializada das pessoas com deficiência.
Em Portugal, só a partir dos anos 70 se foi estabelecendo progressivamente um regime de integração de alunos cegos, surdos e com deficiência motora. Apenas em 1986, foi consagrada a Educação Especial como uma modalidade de educação com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo.
A expressão “inclusão” foi utilizada pela primeira vez na Declaração de Salamanca, em 1994. Segundo este documento “neste conceito, terão de incluir-se crianças com deficiências ou sobredotados, crianças da rua ou crianças que trabalham, crianças de populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais”.
A inclusão “não acontece por decreto”
Três anos depois da aprovação do Decreto-Lei n.º 54/2018, a meta da inclusão não está perto de ser cortada. Nem nunca estará, porque é “impossível”, considera Margarida Loureiro: “Penso que teremos escolas que se vão direcionando para uma educação inclusiva e fazendo progressos, mas existirão sempre novas crianças que trarão novos desafios. Tal como a educação, a inclusão também é um processo, não acontece por decreto”.
Por seu lado, a diretora do inED, que é também coordenadora do Mestrado em Educação Especial da Escola Superior de Educação do Porto, considera que há outros obstáculos impeditivos da resolução plena desta problemática: a falta de dados sobre a aplicação da lei nas escolas e as diferenças socioeconómicas.
“Nos PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos], Portugal aparece como um dos países onde a diferença de resultado entre as classes socioeconómicas mais favorecidas e menos favorecidas é maior. O que significa que não estamos a ser capazes de contrariar o fator ‘classe social’“, e acrescenta “acho que em Portugal temos coisas muito boas. O que não sei é se temos o denominador comum em todas as escolas. Nós não sabemos se todas as escolas têm o mesmo grau mínimo. O sistema é avaliado de um modo que depois não dá feedback.“
Manuela Sanches Ferreira propõe que em Portugal, daqui para a frente, se mude a perspetiva sobre a lei, e que se comecem a fazer alterações nas escolas sem esperar que a legislação assim o obrigue. Sugere, por exemplo, a criação de “grupos de reflexão prática, de resolução de casos”. E conclui: “eu não mexia mais nas leis, já chega”.
A inclusão é uma utopia? “Sim, talvez seja, mas se não fossem as utopias, que mudanças teriam acontecido?”, remata Margarida Loureiro.
Artigo editado por Filipa Silva
Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online – 2.º ano.