O último janeiro foi um dos seis mais secos em 90 anos. A maioria do território português enfrenta uma seca agravada, mas os grandes centros urbanos escapam aos piores impactos. Qual o papel das cidades em algo que enche noticiários, mas não esvazia torneiras? 

Portugal enfrenta, desde novembro do ano passado, um dos períodos de seca mais intensos e prolongados em décadas. No mês de janeiro, os níveis de precipitação foram os segundos mais baixos do século, apenas abaixo do que foi registado em 2005. O JPN falou com Pedro Teiga, membro da E.RIO, e Joaquim Poças Martins, secretário-geral do Conselho Nacional da Água, para perceber os impactos da seca no meio citadino e as soluções a implementar.

Para alguns, contudo, o problema não reside na seca em si. Joaquim Poças Martins é perentório na sua consideração que o problema está na escassez de água e que é esta que se deve solucionar. Para o docente da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), “a seca é um fenómeno natural, é uma força da natureza e as forças da natureza nunca ninguém venceu”. 

Um país de mar onde escasseia água

Os dados disponíveis apontam para uma das situações mais gravosas em anos. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), todo o território encontrava-se sob seca no mês de janeiro. Mais de metade, 54%, estava em seca moderada. Já a seca severa afeta 34% do território e a seca extrema 11%, enquanto que a seca fraca apenas 1%. Os valores de precipitação atingem mínimos de quase 20 anos, baixando dos 25% do valor médio entre 1 e 25 de janeiro.

No período compreendido entre outubro do ano passado e janeiro deste ano, a quantidade acumulada de precipitação é inferior em 255 milímetros ao ano hidrológico anterior. Representa apenas 45% da média registada entre 1971 e 2000. Estes dados fazem do mês de janeiro o segundo mais seco desde o virar do século e o sexto mais seco na história.

As previsões para fevereiro não são mais animadoras, esperando-se valores de precipitação uma vez mais inferiores à média para Portugal Continental, com especial incidência no Minho e no Douro Litoral. Para combater ou acabar com a seca, é necessário chover entre 200 e 250 milímetros nas zonas norte e centro, ao passo que no sul são precisos mais de 150 milímetros de chuva só em fevereiro. No entanto, a probabilidade disso acontecer é muito reduzida, visto se suceder apenas em 20% dos anos.

A situação preocupa especialmente o setor mais afetado, a agricultura, mas a maioria das pessoas está longe dos efeitos diretos da falta de chuva. Nas cidades, a história é outra, pois “a água da torneira continua lá”, mas é daí que podem partir novas ideias e formas de pensar a relação humana com a água.

Garantir um futuro sustentável num meio onde não falta água

O caminho para um consumo de água sustentável no meio urbano já está a ser trilhado, mas também ainda há muito o fazer. As cidades do Porto e Vila Nova de Gaia já estão um passo à frente em alguns aspetos. Ainda assim, há medidas que precisam de ser implementadas para prevenir que falte água nas torneiras, cenário difícil de acontecer, mas não impossível.

Em declarações ao JPN, Joaquim Poças Martins assegura que Portugal é um exemplo no que toca ao abastecimento de água à população e que “hoje em dia temos secas, mas as pessoas não as sentem”.

O que já se fez?

Ainda que haja um longo caminho a percorrer, as cidades já estão a caminhar para um futuro mais sustentável no que toca à utilização da água. Joaquim Poças Martins aborda a noção de Water Sensitive Cities e Water Sensitive Urban Design”, que são, no fundo, “cidades amigas da água ou cidades sensíveis à água”, isto é, que tratam bem a água “em todos os aspetos”, passando pela “gestão integrada do ciclo urbano da água”.

Esta gestão já existe nas cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, que gerem todas as áreas da água, ao contrário de outros locais, em que “o abastecimento de água e o saneamento estão numa entidade, as águas fluviais estão noutra, as ribeiras ninguém trata e as praias muito menos”, como afirma ao JPN o secretário-geral do Conselho Nacional da Água.

No Porto e em Gaia, a gestão integrada do ciclo urbano da água levou a que, por exemplo, “nunca falte água, as ribeiras estão bonitas, limpas e com pessoas a caminhar ao lado e praias com bandeira azul”, garante Joaquim Poças Martins.

Barragem de Crestuma-Lever no Rio Douro. Foto: João Figueiredo/Wikimedia Commons

O docente da FEUP afirma também que já existem cidades-esponja, isto é, cidades que possuem pavimentos permeáveis que promovem a infiltração, o que evita “construir grandes canos, por um lado, e armazenar água no subsolo, por outro”.

Para o Porto, em específico, Joaquim Poças Martins assegura que o grande desafio para a cidade é continuar a apostar no Water Sensitive Design, nomeadamente, “repensar os jardins, os pavimentos porosos e regar esses jardins não com água da companhia, mas com água reutilizada”.

O que ainda falta fazer?

No que toca à organização e ao ordenamento da cidade, Pedro Teiga afirma ao JPN que as “regas automáticas devem ser repensadas”, bem como o tipo de culturas e plantas que são utilizadas nesses jardins, que devem ser “mais adaptadas a solos secos”. 

Na passada quinta-feira (09), a Câmara de Vila Nova de Famalicão, em Braga, já tomou medidas neste sentido, ao desligar os sistemas de rega automática para minimizar os efeitos da seca meteorológica que atinge o território nacional. Entretanto, outros municípios, como Gaia e Guimarães,  suspenderam a rega e a lavagem de ruas, as quais devem mesmo ser reconsideradas para Pedro Teiga. Há ainda a repensar as indústrias nos perímetros das cidades, as quais “utilizam grande consumo de água”.

O secretário-geral do Conselho Nacional da Água, Joaquim Poças Martins, salienta também a necessidade de “ter jardins a um nível inferior dos pavimentos”. Desta forma, “a água dos pavimentos em vez de ir para grandes canos, que depois causam inundações nas ribeiras, vai infiltrar-se localmente e vai, no fundo, regar esses jardins”. Esta medida “evita a construção de grandes canos de águas fluviais”. O docente aponta que já existem soluções do género em Barcelona e em Chicago.

O turismo foi outro aspeto que Pedro Teiga mencionou como uma das causas para os maiores gastos de águas no meio urbano e que necessita de ser repensado. Como exemplo, recorre a um turista que “pode tomar banhos de imersão ou mudar a roupa da cama todos os dias quando vai estar lá três noites”.

No fundo, o investigador da FEUP considera que “aquilo que nós temos de ver é quem são os grandes consumidores de água nas cidades e esses grandes consumidores têm de rapidamente ajustar os seus consumos, quer por uma política de informação, quer por uma política de redução e racionamento da utilização de água”.

“Um ajuste dos comportamentos” no caminho para a sustentabilidade

Embora a agricultura seja de longe o setor que mais água consome em Portugal, atingindo os 75% segundo um estudo da Fundação Calouste Gulbenkian, há práticas a nível do consumo individual que podem ser adotadas para minimizar os problemas da seca e da escassez. O consumo de água no lar representa cerca de 6% do total e é uma importante componente deste no contexto dos centros urbanos. Pedro Teiga, da E.RIO, ressalva que é preciso adotar “um comportamento sustentável e adequado à época do ano em que estamos”.

Para o investigador, a situação ainda não é crítica, mas é essencial que as pessoas avancem com “um ajuste dos comportamentos de consumo de água”. Uma torneira a pingar pode significar o desperdício de “um metro cúbico de água”, o equivalente a mil litros. A preocupação deve também ir para questões menos evidentes, como os produtos adquiridos pelas pessoas no dia-a-dia. 

Dos alimentos ao vestuário, a produção envolve elevadas quantidades de água. Um estudo de 2017, da Fundação Hellen MacArthur, chegou à conclusão que a indústria do vestuário consome cerca de 93 mil milhões de metros cúbicos de água, o que corresponde a 4% de toda a extração. O relatório aponta para um aumento na ordem dos 50% até 2030. 

Pedro Teiga considera que “todos esses produtos devem ser repensados” para que possa, de facto, haver um “comportamento sustentável”.

Já no setor da alimentação, para Poça Martins “não há falta de comida”, mas sim “falta de dinheiro”. Não obstante, o investigador Pedro Teiga considera que também nesta área é preciso ter em atenção o “sistema produtivo e qual é que é a eficiência hídrica que está por detrás”, devendo haver rótulos de eficiência e qualidade de produção como já há para os eletrodomésticos. A Instituição de Engenheiros Mecânicos, sediada em Londres, calcula que podem vir a ser precisos entre 10 e 13,5 milhões de biliões de metros cúbicos de água em 2050 para responder às necessidades de consumo alimentar previstas.

Joaquim Poças Martins, que serviu como Secretário de Estado do Ambiente e do Consumidor entre 1993 e 1995, destaca ainda o exemplo de “prédios autónomos do ponto de vista de água”. Para o mesmo, uma das chaves está na reutilização, a qual é possível e recomendável no seio do lar. Um dos meios para a sua concretização é a inovação da sanita seca. Sem recurso quer a água quer a rede de esgotos, permite poupar recursos hídricos.

No fim, “o problema da falta de água nas cidades é contornável”, afirma o antigo governante. Na perspetiva de Pedro Teiga, da FEUP, o problema traz um ponto positivo, ao permitir repensar “as nossas utilizações da água e dos recursos hídricos”. Poças Martins, com experiência de décadas na gestão e estudo da água, não se lembra de alguma vez ver “uma discussão tão alargada como se está a assistir agora”.

Depois da seca, a escassez: onde se vai buscar a água?

O fenómeno da seca não é novo, mas já foi menos intenso e duradouro que atualmente. Entre os dez anos mais secos da história, seis são já do presente século. No entanto, para Joaquim Poças Martins, o verdadeiro problema reside na escassez, o “desequilíbrio entre a oferta e a procura”.

Pedro Teiga, do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMAR), considera que há que obedecer às “leis naturais e esta variabilidade”, avisando que se deve, mesmo assim, reduzir “a pressão que estamos a exercer neste sistema”. De forma a resolver a falta de água, é necessário investir em dois processos distintos: a reutilização e a dessalinização

No caso específico da dessalinização, estima-se que cada metro cúbico de água custe entre 35 e 50 cêntimos, de acordo com o especialista e o Ministério do Ambiente. O jornal “Público” avança, contudo, que em Portugal esse valor pode ir dos 63 aos 70 cêntimos, o atual valor na ilha de Porto Santo.

Estação de dessalinização de Wonthaggi, na Austrália. Foto: Peter Campbell/Wikimedia Commons

Nenhuma solução é perfeita e a dessalinização é um exemplo disso. Os elevados níveis de consumo de energia podem apresentar um obstáculo a um futuro mais sustentável. Em Portugal há uma estação de dessalinização em Porto Santo, na Madeira, e está em fase de projeto uma outra no Algarve. Contudo, a do arquipélago da Madeira “não é feita com energias renováveis”, diz o antigo autarca, Poças Martins. No Chipre, por exemplo, a produção de água através da dessalinização representa 2% do total de emissões de CO2.

Esse problema pode ser resolvido recorrendo a energias renováveis, como salienta o antigo Secretário de Estado do Ambiente. O especialista em recursos hídricos destaca exemplos internacionais como Israel e Singapura. Em Israel, uma quantidade significativa da água usada para consumo provém do Mar Mediterrânico. O país conta com cinco centrais dessalinizadoras, que ajudam a satisfazer um quarto das necessidades totais e que fornecem três quartos da água para consumo privado. 

Entretanto, soma-se um outro problema que pode advir da salinização. Este método implica um processo de recolha de água – em que metade é dessalinizada e a outra metade acaba com o dobro do sal – e outro de deitar “fora a salmoura”, explica Joaquim Poças Martins. Ao libertar a água podem surgir “problemas ambientais”.

Para o secretário-geral do Conselho Nacional da Água, esse processo tem de ser efetuado a uma “profundidade adequada” e “num sítio com correntes”. No caso específico do Porto, em declarações ao JPN, considera não ser necessária, a não ser na eventualidade de “poluição nuclear no rio Douro”, o que representa um risco “quase nulo”.

Outra solução para a escassez pode passar pela reutilização, nomeadamente das cidades para o campo. Contudo, esse processo é dificultado em Portugal pela maior distância verificada entre os campos agrícolas e as cidades. Esta pode ser feita reaproveitando água dos esgotos, como já é norma em Singapura. 

Nesse país, a água do esgoto é tratada e vendida “a um preço muito elevado (…) para as indústrias que precisam de água destilada”. O que sobra é lançado num lago, de onde se capta depois “a água para abastecimento público”.

Poças Martins apoia ainda o princípio de utilizador-pagador para agricultores, defendendo que a água usada para agricultura, que representa a grande maioria, deve ter de ser paga como a consumida em casa.

No fundo, para o docente “a quantidade de água no mundo é infinita”. O mar e o esgoto não são as únicas soluções existentes. O futuro pode significar, na sua opinião, “ir buscar a água à atmosfera”, onde há muito mais que no solo.

Prevenir, planear”, são as palavras de ordem e é na tecnologia e na inovação que o futuro da água e do seu consumo sustentável podem estar. A inevitabilidade da seca é uma oportunidade para a infinitude da água.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha