Mais de metade dos votos dos emigrantes para as Legislativas deste ano foram anulados depois da contagem que decorreu, ao longo dos últimos dois dias, nos pavilhões da Feira Internacional de Lisboa (FIL). Chegaram ao território nacional 260.235 votos oriundos dos círculos da Europa (195.701) e Fora da Europa (64.534), mas destes só 101.123 é que foram contabilizados.
Os membros das equipas – cerca de 800 voluntários espalhados por 114 mesas – depararam-se com quase 160 mil boletins que não vinham acompanhados de cópias dos cartões de cidadão dos eleitores. O número representa cerca de 81% dos votantes da Europa e à volta de 3% dos que votaram no círculo de fora da Europa. Feitas as contas aos dois círculos, 61% dos votos foram invalidados.
O Partido Socialista (PS), que ponderou levar o caso ao Tribunal Constitucional, acabou por aceitar o resultado final que valeu aos socialistas mais dois deputados – tantos quantos os eleitos pelo PSD, com quem o PS entrou em confronto neste caso.
O que fazer aos votos?
As opiniões sobre o que fazer com estes votos divergiram. Se uns defenderam que fazia sentido validá-los, porque chegaram em cartas registadas pelos consulados, outros defenderam o contrário, pois também é necessária a apresentação de um documento de identificação durante a votação presencial.
Em reunião com a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), todos os partidos começaram por aceitar por unanimidade a contabilização dos votos. A razão prendia-se com o facto de ser possível identificar todos os cidadãos através de um código de barras presente em cada carta.
No entanto, o PSD acabou por apresentar uma contestação contra esta validação. Em declarações ao “Público”, a deputada municipal do PSD Sofia Vala Rocha afirmou que o Governo queria contabilizar os votos para não ter de “assumir a culpa [pela] organização do ato eleitoral”.
O PS, por sua vez, acredita que os votos deveriam ser contabilizados. João Pina, coordenador da contagem dos votos por parte do PS, acredita que aceitar estes votos não vai contra a lei eleitoral. Ao “Público”, disse que “[a lei] não fala do cartão de cidadão para validar, mas sim, do cartão de cidadão para participar”.
Já esta quinta-feira, em comunicado, os socialistas acabaram por desistir da ideia de levar o caso ao Tribunal Constitucional, optando por comprometer-se a rever a lei eleitoral. “O Partido Socialista não contribuirá mais para o prolongamento deste grave e inútil incidente provocado pelo PSD e deseja que todo o processo eleitoral fique encerrado o mais rapidamente possível, para dar lugar à nova legislatura”, informou o gabinete de imprensa do PS.
Eleitores não compreendem decisão
Tanto José Manuel Pinto como Eva Maisel votaram por correspondência, o primeiro, em Angola, e a segunda, na Alemanha. Ao JPN, e antes de ser conhecida a decisão do PS de não avançar com o caso para tribunal, os dois contam que, por acreditarem que não era necessário, não enviaram cópia do documento de identificação juntamente com o seu boletim de voto. Isto significa que as escolhas destes dois eleitores não contaram para o desfecho do ato eleitoral.
No entanto, o diretor técnico de 49 anos frisou ser da opinião de que os votos deveriam ser contabilizados, já que “quem está fora quer muito fazer parte do que se passa no país de origem”.
Eva Maisel, na Alemanha, também não vê necessidade em “ignorar” os votos por correspondência que não apresentam cópia do documento de identificação, porque “só recebe a carta com o boletim quem o Estado sabe que está registado”, explicou em declarações ao JPN.
Um processo atribulado
O PS assegura agora que vai rever a lei eleitoral, indo ao encontro da ideia já deixada na véspera pela ministra da Administração Interna na visita que fez à FIL. Francisca Van Dunem admitiu que é necessário alterar a lei de forma a permitir a participação do maior número de pessoas possível. Disse ainda que muitos não votaram devido a uma “má compreensão do regime eleitoral”.
O testemunho de João Cerquido vai nesse sentido. O problema é que “sempre fomos muito burocráticos”, considera em declarações ao JPN. Em Angola, os portugueses registados como tendo residência no país podem votar presencialmente na embaixada. Apesar disso, o economista, de 55 anos, que está recenseado em Luanda há cerca de um ano e meio, descobriu na véspera do dia de eleições que não poderia ir votar. “A mim, só me disseram que, quando fizesse o novo cartão de cidadão com a morada de cá, ficava automaticamente recenseado”. Mas não foi assim. Faltava “não sei o quê”. Nos anos anteriores (estava recenseado em Portugal, mas a viver no estrangeiro), não votou, porque “nem sabia do voto por correspondência”.
José Manuel Silva, na Suíça, também não conseguiu votar. “Nós não recebemos boletins nenhuns. Acho que aqui no cantão onde estou, poucos foram os que tiveram direito a votar”, afirma ao JPN. Em relação ao processo de votação no estrangeiro, considera-o “um bocado complicado”, pois “é tudo através da internet e quem não percebe muito disso não se inscreve”.
Com ou sem votos anulados, o desfecho do escrutínio seria o mesmo: os votos dos emigrantes valeram mais dois deputados ao PS e outros tantos ao PSD, ficando assim completa a distribuição dos 230 mandatos da Assembleia da República. O resultado repete o que foi conseguido em 2019.
Em resumo…
Como se processa o voto por correspondência
Os residentes no estrangeiro que não votem presencialmente nos consulados podem exercer o seu direito através de correspondência. Neste caso, o Ministério da Administração Interna procede ao envio de um boletim de voto e dois envelopes – um verde e um branco. O eleitor deverá colocar o boletim de voto no interior no envelope verde, que é fechado para preservar o segredo de voto, e coloca esse envelope verde no interior do branco, juntamente com uma cópia do Cartão de Cidadão. Remetida a carta, o voto deverá chegar ao território nacional até ao décimo dia após a eleição.
Processo de contagem em Portugal
Os membros da mesa devem abrir o envelope branco, verificar a presença da cópia da identificação do eleitor e, seguidamente, sendo válido, colocar o boletim do envelope verde na urna, para este ser contabilizado.
A origem da problemática
Uma elevada percentagem dos eleitores (81% no caso do círculo da Europa e cerca de 3% Fora da Europa) não facultou cópia da identificação pessoal. Não se sabendo o motivo que esteve na base da decisão de todos os eleitores, o certo é que a atitude vai ao encontro das recomendações gerais da Comissão da Proteção de Dados. A questão prendeu-se, então, com a validação, ou não, dos votos que foram enviados sem identificação do respetivo eleitor, já que em algumas mesas de voto estes foram contabilizados, e noutras não.
PS desiste de levar caso ao TC
No início desta contagem de votos, o PSD requereu às mesas de voto que separassem os boletins não acompanhados de identificação dos restantes, para que estes fossem analisados mais tarde. Ainda assim, várias mesas de voto optaram por misturar nas urnas os votos com identificação e os não identificados. A situação levou os responsáveis de apuramento geral a invalidar uma grande parte dos votos.
O Partido Socialista considerou esta situação uma falta de respeito pelos eleitores residentes no estrangeiro, e ameaçou recorrer da decisão da assembleia de apuramento geral para o Tribunal Constitucional.
Já esta tarde, o gabinete de imprensa do PS fez saber que o partido não levaria avante a intenção de impugnar os resultados através do TC, para “dar lugar à nova legislatura”.
Artigo editado por Filipa Silva