Esta quarta-feira, os moradores do bairro localizado no Bonfim vão reunir-se com o vereador do Urbanismo do Porto para discutir o futuro do bairro. No verão de 2021, receberam cartas que ordenavam a saída das casas, que eles próprios construíram, até janeiro de 2023.
A entrada faz-se por um túnel pouco iluminado, onde ecoam os burburinhos das vozes do café que nos recebe no início do percurso. Caminhando por um trilho acentuado, chegamos ao centro do Bairro da Quinta do Gama, que se localiza no Bonfim.
Somos recebidos por uma explosão de cores nas paredes que dão abrigo aos vários moradores. Mensagens de esperança e protesto estão em alguns dos graffitis que habitam os muros. Durante a tarde, domina o silêncio humano, compensado pelo barulho dos animais.
José Moura habita no bairro há 68 anos, número que também corresponde à sua idade. Em junho de 2021, recebeu uma carta que afirmava que o contrato de arrendamento acabaria em janeiro de 2023. Até essa data, teria que abandonar o seu lar. A mesma carta foi enviada a mais quatro casas pela imobiliária cujo nome desconheciam até à data, a MT3 Imobiliária.
O terreno onde está instalado o bairro era propriedade de três pessoas jurídicas distintas. Quando receberam a carta, os habitantes aperceberam-se que um terço da Quinta do Gama tinha sido comprada por via de permuta. Segundo o jornal “Público”, até ao final de 2021, a compra das restantes partes já tinha sido também garantida através de transação por compra e venda, no valor de 220 mil euros, e da troca por dois prédios da Rua da Vigorosa, perto do Estádio do Dragão.
Apesar de os terrenos não pertencerem aos trinta moradores, há mais de um século que a Quinta do Gama é habitada por eles e pelas gerações que os antecederam.
Nuno Coelho, criador da comissão de moradores do bairro, faz parte da história que pinta uma das ilhas do Bonfim. “Toda a gente mora aqui há mais de quarenta anos. O meu avô veio há 100 anos, a minha mãe nasceu aqui há 60, eu nasci há 42 e a minha filha mais velha há 13”, conta ao JPN.
Esta quarta-feira (16), o advogado Francisco Sá Carneiro Sampaio vai representar os habitantes do bairro numa reunião com o vereador do Urbanismo, Pedro Baganha, na Câmara Municipal do Porto (CMP). Os moradores vão pedir ajuda à autarquia para que lhes seja dada preferência de compra de um terço do terreno, algo que nunca lhes foi proposto. Caso seja recusado, Nuno Coelho diz que os moradores vão avançar para tribunal.
“A gente tem de lutar”
José Moura afirma permanecer positivo durante todo este processo: “tenho fé em Deus e acho que vai correr bem”. O morador acrescenta ainda que esperava que a situação se resolvesse de maneira diferente. “Agora a gente tem de lutar”, conclui.
O sentimento de esperança é partilhado por Nuno Coelho. O líder da comissão de moradores deseja que a CMP opte por comprar o terreno, viabilizando dessa forma a permanência dos moradores.
A falta de sono é provocada pela incerteza quanto ao futuro. O criador da comissão de moradores afirma ter consciência da possibilidade da MT3 Imobiliária conseguir ficar com os restantes terrenos. Neste cenário, o morador garante que deixa a cidade e o país que o viram nascer: “Se me tirarem daqui de casa, que fui eu quem a construiu, vou morar para Espanha”, promete.
Uma luta solitária e de algum modo invisível, dadas as dificuldades em serem ouvidos: “nós tentamos falar com a imobiliária, nunca nos responderam”, afirma ao JPN. Soma-se a frustração e o cansaço, a “uma luta contra a parede” pelas paredes de muitos. “Eu recebo ajuda de Deus, mais nada. Ninguém nos ajuda”, reconhece José Moura.
O “bullying imobiliário” e a informação em falta
Nuno Coelho recorda ainda os problemas que a Quinta do Gama atravessou após receberem as cartas que incitavam à saída dos moradores até ao início de 2023. Explicita algumas das situações mais marcantes no último ano. Durante um ano, o bairro não teve luz. Era iluminado apenas pelo horizonte, sendo que os habitantes eram obrigados a fazer os caminhos de terra e pedras em plena escuridão.
Menciona ainda que os tubos de água foram vandalizados cinco vezes e que o portão, pelo qual se costumava entrar, chegou a estar fechado à chave, o que impediu a entrada de bens essenciais para os habitantes. A entrada dos bombeiros foi interditada e era necessária, por exemplo, para auxiliar alguns moradores com doenças que precisavam de acompanhamento. A entrada dos lixeiros foi, da mesma forma, condicionada. Nuno Coelho fala em “bullying imobiliário”.
Apesar dos moradores estarem à deriva neste mar de problemas, Nuno Coelho afirma que a Junta de Freguesia do Bonfim quer ajudá-los no que conseguir, “mas não sabem como”. Reforça que a E-Redes, em trabalho com a junta, devolveu a luz à Quinta do Gama.
Já a Câmara Municipal do Porto terá informado os moradores que não podia agir neste processo, uma vez que o Bairro do Gama não se encontra inserido na Operação de Reabilitação Urbana (ORU), mas apenas na Área de Reabilitação Urbana do Bonfim (ARU). Isto impede que exista algum tipo de intervenção e investimento, segundo a autarquia, embora haja intenções em o fazer desde 2018, como se lê no processo.
No entanto, algumas “ilhas” na zona da Lomba, localizadas na freguesia do Bonfim, estão agregadas na ORU de Campanhã-Estação – uma das três com luz verde no Município do Porto. A ORU tem previsto um investimento pela CMP na ordem dos 7,4 milhões de euros, que serão financiados pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para futura reabilitação. O mesmo não está previsto para a Quinta do Gama.
“Sei que isto está dentro da ARU, mas não na ORU. Dizer isto para todos nós, sendo que ninguém tem mais que o 5.º ano, é uma estupidez”, admite Nuno Coelho.
Um sentimento de confusão preenche os moradores, quase incapazes de perceberem o porquê e o modo como o processo está a ser desenvolvido: “Como é que chega aqui uma imobiliária, compra isto ao senhorio e ninguém nos diz nada. Mandam-nos apenas cartas para sair de casa”, desabafa ainda.
No meio de incertezas, a certeza é só uma: os moradores vão continuar a lutar pelas casas construídas ao longo das décadas pelas suas próprias mãos.
Artigo editado por Filipa Silva