Até 2021, foram incluídos no programa camarário 94 estabelecimentos portuenses. A maioria dos comerciantes entrevistados pelo JPN saúda o apoio da Câmara. Outros frisam que o programa não garante a sobrevivência dos negócios.

O Porto muda a cada dia que passa. Entre a renovação constante, há protagonistas que se mantém. Enquanto fintam o tempo sem sair do lugar, vários estabelecimentos sobrevivem como pedaços de uma história que não se apaga. Distintas na idade, no tipo de clientes e nos produtos que oferecem, há uma coisa que as une: o selo Porto de Tradição.

O programa camarário começou a ser desenhado em 2016 pela Câmara Municipal do Porto (CMP) com o intuito de aumentar a proteção de estabelecimentos históricos da cidade. Através da isenção de taxas, da divulgação de projetos e da modernização física dos estabelecimentos, o Porto de Tradição tem o objetivo de, não só dar vida aos negócios, mas também torná-los competitivos no mercado. No entanto, as reações dos comerciantes sobre a eficácia do projeto dividem-se.

Para uns, uma oportunidade. Para outros, uma desilusão.

Desde a criação do programa que vários estabelecimentos se foram juntando ao programa camarário. No entanto, por apresentarem características distintas, todos os negócios viveram diferentes experiências ao abrigo do Porto de Tradição.

Na Rua Cimo de Vila, perto da Praça da Batalha, está a Casa Crocodilo. O estabelecimento ficou célebre, como o nome indica, pela presença de um grande crocodilo embalsamado suspenso do teto da loja. Hoje em dia, no ar só sobra o cheiro a couro. O réptil desceu e repousa na montra, ao pé de sapatos, pantufas e outros produtos.

Do lado esquerdo do balcão, há um exemplar do jornal “O Comércio do Porto” de 1990, tempo em que era Tomás Coutinho o proprietário do estabelecimento. Hoje, é o filho, Guilherme Coutinho, quem está à frente do negócio. O atual proprietário da Casa Crocodilo fala da importância do Porto de Tradição para a sua loja e não poupa elogios à Câmara Municipal.

Na mesma linha, João Vilas e Filipe Cunha da Barbearia Tinoco consideram que o apoio da Câmara Municipal é uma “grande ajuda”. Os dois barbeiros sublinham que o projeto contribuiu para o sucesso do negócio por incluir o estabelecimento em roteiros turísticos.

A barbearia tem portas abertas no número 13 da Rua Sá da Bandeira e se, para muitos, este é o número do azar, não parece ser o caso da Tinoco. O estabelecimento penteia o cabelo da cidade Invicta desde 1929 e, para os responsáveis pela barbearia, os segredos para a longevidade do negócio é a paixão, o amor e a “carolice”.

Os dois barbeiros referem ainda a importância de investir na formação em novas técnicas e novas formas de trabalhar. João Vilas afirma: “Se paraste, estagnaste”. Ambos os barbeiros concordam ainda que uma passagem pela Tinoco não se resume a “cortar o cabelo”. Do fado, à decoração original da loja, podendo passar por um copo de vinho do Porto, os barbeiros explicam que não tentam vender penteados, mas sim uma experiência.

De forma semelhante, Nuno Rocha, o proprietário da Casa Natal refere que a sua loja é visitada frequentemente por pessoas que pretendem, mesmo sem comprar, vivenciar a experiência de “estar numa loja centenária”.

O estabelecimento está enraizado no centro do Bolhão desde 1900 e foi ganhando fama pela oferta de produtos como os frutos secos, os vinhos e as conservas. No entanto, como o nome da loja faz prever, Nuno Rocha não esconde que é o bacalhau o ex libris da casa, e quem chama mais portuenses.

Desde que a Casa Natal passou a fazer parte do programa Porto de Tradição, o proprietário afirma que a situação “não mudou muito”. No entanto, sublinha que o prestígio que o programa camarário ofereceu ao estabelecimento serviu de motivação extra para o pessoal.

Ainda que por razões distintas, Luísa Vilas Boas fala de uma experiência semelhante. A proprietária do Bazar Paris, uma das mais antigas lojas de brinquedos da cidade, afirma que que o programa camarário apenas trouxe mais gente para lhe “fazer perguntas”.

A loja preenche o imaginário de miúdos e graúdos desde 1903. Apesar dos novos tempos trazerem novas formas de brincar, a proprietária explica como é que a loja se mantém erguida depois de tantos anos.

Luísa Vilas Boas referiu ter tido a “sorte” de não precisar da proteção que o projeto trouxe a outras lojas, tendo em conta que além de proprietária do bazar, é também a dona do prédio inteiro.

Menos afortunada foi a loja Deltrilã. O estabelecimento destina-se à venda especializada de fios, lãs, algodões e agulhas há 65 anos. Com um pano de fundo forrado a novelos de cores sem fim, o funcionário Jorge Martinho e a proprietária Madalena Madeira afirmam ainda não ter beneficiado com o Porto de Tradição. Em causa está o tempo que demorou a ser aprovada a candidatura – o estabelecimento candidatou-se ao programa em 2017 e foi reconhecido em meados de 2021 como loja histórica – e a contestação por parte do senhorio que acabou por processar a Deltrilã e a CMP.

Jorge Martinho afirma que o Porto de Tradição não garante a sobrevivência dos estabelecimentos e acrescenta que o problema da Deltrilã com o senhorio não é caso único na cidade.

Casa Chinesa e Casa Moreira: os mais recentes estabelecimentos têm esperança no programa

A 31 de janeiro deste ano juntaram-se mais dois negócios ao programa camarário: a Casa Chinesa e a Casa Moreira.

A Casa Chinesa abriu portas em 1938 na Rua Sá da Bandeira, mesmo em frente ao Mercado do Bolhão. No interior, há tanto de portuense como de mil e um outros lugares. Os sotaques nortenhos de fundo não permitem que a mente vagueie para muito longe, mas a presença de produtos como as alheiras de Mirandela, o sal fumado dos Himalaias e o caril indiano transformam o passeio entre prateleiras numa verdadeira viagem.

Foi a aposta em produtos menos comuns oriundos de países como Cabo Verde, Brasil e, como dita o nome, China, que foi dando notoriedade ao negócio. Atualmente, o estabelecimento é uma referência para pessoas com restrições alimentares. A loja apresenta um leque variado de produtos vegetarianos e foi uma das lojas pioneiras na venda de produtos sem glúten, já há duas décadas.

Aberta há cerca de 82 anos, nada faria prever o aviso de aumento de renda que veio abalar a situação da mercearia. Mário Carvalho, um dos gestores, nega que alguma vez a Casa Chinesa tenha estado em risco de fechar, apesar de admitir que a subida do valor proposta pelo senhorio seria “quase insuportável”. O gestor mostra-se esperançoso para o futuro e sublinha a importância do papel do Porto de Tradição na proteção do comércio tradicional.

Não muito longe da Casa Chinesa, na Rua Fernandes Tomás, encontra-se a Casa Moreira. O letreiro de néon vermelho rouba a atenção a quem entra, mas são as malas de pele e os suportes de ourivesaria, que forram os expositores de vidro, os verdadeiros protagonistas.

Contando já mais de 80 anos, a loja foi passada para Hélder Moreira pelo seu pai. Com tom apressado, por ter deixado “uma máquina a trabalhar” na oficina, o atual proprietário falou com o JPN sobre as várias vidas que o negócio já viveu e sobre o papel da Casa Moreira na modernização de outras lojas Porto de Tradição.

Para Hélder Moreira, a relação entre o comércio tradicional e o programa camarário é de benefício mútuo: “nós [as lojas] beneficiamos com o Porto de Tradição e o Porto de Tradição, se estiver aberto a aprender, também pode evoluir. Os anos que nos restam para trabalhar, mutuamente darão benefícios”. O proprietário da loja ressalva ainda que o programa é essencial para combater episódios de desrespeito dos senhorios para com estabelecimentos que “pagam menos”.

 

Seis anos depois de começarem a ser feitos os primeiros contornos do programa Porto de Tradição, as opiniões sobre a sua eficácia dividem-se. No entanto, o esforço da autarquia e dos estabelecimentos em manter viva a história do comércio do Porto mantém-se.

Porto de Tradição em 5 tópicos:

– O Fundo Municipal de Apoio aos Estabelecimentos e Entidades Reconhecidos ao Abrigo do Programa Porto de Tradição dispõe de uma verba anual de “525 mil euros por edição” – dependendo do orçamento da Câmara – e destina-se a apoiar a “reabilitação física, a modernização e sustentabilidade dos negócios”.

– A CMP forneceu aos estabelecimentos um projeto de consultoria e é responsável pela divulgação dos negócios em roteiros turísticos, vídeos promocionais, entre outros.

– O Regulamento Porto de Tradição explicita os critérios de avaliação e seleção de estabelecimentos. Destes podem salientar-se a longevidade reconhecida (pelo menos 25 anos de atividade), a continuidade geracional da loja e a existência de marca e produtos identitários.

– Na avaliação das candidaturas, a viabilidade financeira dos negócios é um critério importante. Segundo Cristina Ribeiro, técnica superior da Divisão Municipal de Comércio da Câmara Municipal do Porto, o objetivo do programa camarário não é manter comércios que “não vão ter futuro” ou criar “lojas museu”.

– Na fase inicial do programa, em 2017, a identificação e seleção dos estabelecimentos foi feita pela CMP. Atualmente, são as próprias lojas a apresentar candidatura.

Artigo editado por Filipa Silva