O município de Paços de Ferreira está a cobrar uma tarifa fixa aos habitantes que não consumam até um metro cúbico de água, uma situação já contestada pelos munícipes, pela própria autarquia e pela DECO. Em declarações ao JPN, a jurista da DECO, Tânia Neves, afirma que a resolução desta questão, que já remonta a 2004, mesmo que aconteça agora, “já vai tarde”.

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Há munícipes que desperdiçam água em Paços de Ferreira para pagar menos à companhia. Foto: Patrícia Garcia

Num país onde a seca é cada vez mais significativa, há lugares em que se desperdiça água para pagar menos. Paços de Ferreira já tinha estado nos holofotes em 2011 por ter a água mais cara do país. Agora, os motivos são outros. No concelho, os munícipes que não consumam mensalmente até um metro cúbico de água pagam uma tarifa fixa no valor de 17,47 euros. A Deco já protestou e a Câmara de Paços de Ferreira garante estar a tomar medidas para reverter a situação.

Este problema remonta a junho de 2004, quando a concessão do sistema de água e saneamento de Paços de Ferreira foi entregue ao consórcio Somague/AGS. Alguns anos depois, o município tinha já a água mais cara do país.

Um contrato que tinha tudo para dar errado

Humberto Brito, presidente da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, afirmou, em declarações à TSF, que o contrato, assinado há 18 anos, “previa um crescimento da população para mais de 80 mil habitantes” e o concelho “tem atualmente 56 mil pessoas”. O contrato referia também que “cada habitante deveria gastar em média 130 litros de água”, mas o consumo ronda os “80 litros per capita”. Previa ainda “uma taxa de rentabilidade de 10,61%, ora quem não gostaria de ter uma rentabilidade destas?”, questiona.

O presidente da câmara assevera que “nenhum destes pressupostos se concretizou” e logo em 2005 a empresa responsável pela concessão já estava a pedir o “reequilíbrio financeiro” e a autarquia, na altura, pagou cinco milhões de euros, de acordo com o autarca. Mesmo assim, o concelho chegou a ter a água mais cara do país.

À TSF, na mesma entrevista, Humberto Brito assegura que quando chegou ao poder, em 2013, “o pedido de reequilíbrio financeiro da concessão já ia nos cem milhões de euros”. Uma auditoria do Tribunal de Contas de 2014 mostra que o recurso a furos de água e poços privados, para poupar na conta da água, já era comum no concelho e acentuava à medida que o preço da água aumentava.

Para reverter a situação, o presidente da Câmara de Paços de Ferreira garante que cortou as “tarifas ao meio” e tentou negociar com a concessionária, que “chegou a aceitar o corte da tarifa e uma compensação de 36 milhões de euros”. Mas entretanto, a empresa responsável pela concessão, a Somague/AGS, hoje denominada de Águas de Paços de Ferreira, voltou atrás na palavra, segundo o autarca.

A concessão da água de Paços de Ferreira acabou por passar, entretanto, para uma holding e para a gestão por um fundo de investimento da banca, o Antin Infrastructure Partners. “Um fundo abutre, absolutamente abutre, sem qualquer interesse na gestão da água, apenas com fins especulativos”, garante o autarca de Paços de Ferreira.

Em Paços de Ferreira, paga-se sem gastar. Porquê?

A situação vivida em Paços de Ferreira levanta algumas questões. Como é que se paga por um bem que não se usa? E se quem gasta um metro cúbico de água, isto é, mil litros, paga 4,36 euros, porque é que quem não gasta um único mililitro tem de pagar 17,47 euros?

A jurista da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor – Deco, Tânia Neves, explica ao JPN que, normalmente, “as entidades gestoras definem quatro escalões” no consumo da água. O primeiro, vai dos zero aos cinco metros cúbicos e o quarto aplica-se a consumidores que tenham consumos acima dos 25 metros cúbicos. A jurista dá especial foco ao primeiro escalão, que começa no zero, o que “é habitual fazer-se”.

Mas em Paços de Ferreira o cenário é outro. O primeiro escalão começa no um. Isto quer dizer que “não são considerados aqueles consumidores que ou não têm consumo nenhum ou só consumam até um metro cúbico”. No Porto, por exemplo, o primeiro escalão começa no zero.

No município de Paços de Ferreira gera-se então uma situação “insólita” que é, os utilizadores que “não tenham nenhum consumo de água (por exemplo, por estarem ausentes da sua residência) ou que têm consumos mais baixos de água e que não cheguem a atingir o tal metro cúbico”, não são enquadrados no primeiro escalão e então é-lhes “aplicada uma tarifa fixa, que no tarifário tem por nome “Domésticos – Não Consumidores de Águas de Abastecimento”, uma denominação por si só errada porque as pessoas que consomem pouco “não deixam de ser consumidoras”.

A tarifa fixa tem o valor de 17,47 euros, um valor que a jurista da Deco considera “absurdo”. “Se eu gastasse um metro cúbico de água pagaria por consumo 4,36 euros e por saneamento 6,29 euros e, precisamente por isso, é que as pessoas acabam por desperdiçar água, água que não precisam, para que não lhes seja aplicado aquele valor de 17 euros”, explicita Tânia Neves.

Outra questão que se levanta diz respeito à cobrança de consumos mínimos, algo que, por lei, é ilegal. Existir uma tarifa fixa não é o mesmo que cobrar um consumo mínimo. O primeiro é legal, o segundo não.

Tânia Neves, jurista da Deco, assevera, contudo, que embora esta tarifa, de 17,47 euros, “não seja proibida”, neste caso, “considerando a forma como é aplicada a tarifa, que só se aplica a estas pessoas, ela pode aqui consubstanciar uma situação de imposição do consumo mínimo”, isto é, pode-se dizer, de certa forma, que se “obriga a um consumo mínimo para que não seja cobrada aquela tarifa fixa”.

Deco já contestou a situação em Paços de Ferreira

A Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor – Deco já veio contestar a situação vivida em Paços de Ferreira. Em comunicado, a Deco menciona que dado o “grave cenário de seca e escassez de água” que o país está a atravessar, é com “ainda mais perplexidade” que encara o tarifário de abastecimento e saneamento de água em Paços de Ferreira.

A Deco garante que se está perante um tarifário que, “além de discriminar quem nada consome ou quem gasta menos de mil litros mensais”, ainda “aplica tarifas fixas excessivas a esses consumidores”. No comunicado, a organização defende que “o acesso à água deve ser garantido a um custo socialmente aceitável”.

Em declarações ao JPN, Tânia Neves, jurista da organização, afirma que, simultaneamente ao comunicado, a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor “fez também seguir uma comunicação para a ERSAR”, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, e “fez um pedido de reunião, dando conta das preocupações que estão esplanadas no comunicado à própria Câmara de Paços de Ferreira”. A jurista deu conta que, até a manhã de quinta-feira [altura em que decorreu a entrevista], ainda não tinham obtido qualquer resposta.

Para a Deco, “esta desigualdade entre os consumidores é inaceitável” e o principal interesse é “que a situação dos consumidores esteja resolvida”. A jurista afirma que “o utilizador deve pagar aquilo que realmente consome” e que esta “situação de injustiça” tem de deixar de permanecer, “porque além de gerar uma desigualdade entre os consumidores, encoraja ao desperdício de água”, algo que, na situação de seca em que o país se encontra, é “gravíssimo e inaceitável”.

Ainda de acordo com a TSF, a autarquia pretende avançar pela via judicial para resolver esta questão. Tânia Neves relembra que esta situação “já se arrasta há muito” e que a resolução, “mesmo que aconteça agora, já vai tarde”. Ainda assim, espera que esteja resolvida “em breve”.

Artigo editado por Filipa Silva