A 7 de março, Inês Homem de Melo aterra no Festival da Canção com a música “Fome de Viagem”. Antes, a psiquiatra e artista revelou ao JPN como é viver com dedicação a duas paixões distintas e a sua experiência de descoberta do mundo do espetáculo.

Inês Homem de Melo, de 30 anos, é uma psiquiatra do Porto com veia artística. A médica, que faz da música uma bóia de salvação, passou da ópera para o jazz e para o fado. Agora, embarca num novo desafio: vai estar, a 7 de março, na segunda semifinal doFestival da Canção.

Áurea, Os Quatro e Meia, FF, Azeitonas, Syro são alguns dos 16 artistas nacionais convidados pela RTP para concorrer à edição deste ano. As semifinais do concurso da estação pública decorrem nos dias 5 e 7 de março e no dia 12 decide-se quem vai representar Portugal na Eurovisão, que se vai realizar em Turim, Itália. 

De entre mais de 600 candidaturas, Inês foi escolhida pelo júri para ocupar um dos quatro assentos reservados a artistas não-convidados. Conquistou o lugar com a música “Fome de Viagem”, pensada por Inês para ser cantada em várias línguas. O compositor Pedro Marques, vencedor do prémio Sophia em 2016 com a banda sonora do filme “Capitão Falcão”, e o letrista Galileu Granito foram também responsáveis pela criação da canção e acompanham Inês neste trajeto. Um trajeto que começou com tenra idade.

Uma apetência natural para a música

A paixão pela música surgiu com tenra idade. Aos oito anos, Inês deu os seus primeiros passos no mundo musical ao integrar um coro infantil. A mãe, Helena Homem de Melo, apercebeu-se que a filha tinha apetência para a música, e inscreveu-a no Círculo Portuense de Ópera. “Era um coro sério, os primeiros concertos que fiz foram as óperas no Coliseu, ou seja, juntava-se o canto e a representação o que acabava por ser muito estimulante para mim. Nunca fiquei nervosa, sempre fui um animal de palco”, conta em entrevista JPN.

Assim que atingiu a idade limite de 16 anos, a maestrina do coro, que era também professora de canto no Conservatório, aconselhou Inês a seguir com o estudo da música. “Sugeriu que fizesse as provas para entrar no conservatório. Fiz e acabei por ficar”, conta. No Conservatório da Música do Porto, começou por estudar canto lírico durante quatro anos e depois a vertente musical jazz. Passou ainda por disciplinas adjacentes ao canto, como o italiano e a história da música. “O conservatório é uma escola muito exigente”, acrescenta.

Foto: Luísa Freixo Luísa Freixo

Depois de quatro anos a estudar canto lírico, Inês não voltou a cantar música clássica, mas as competências vocais que ganhou foram essenciais para aplicar nos estilos de música que hoje canta, sobretudo a música tradicional. “Esta canção do Festival da Canção, por sinal, se não tivesse competências de canto lírico nunca seria capaz de cantar, porque ela é muito difícil e exigente ao nível vocal”, garante a psiquiatra. 

Paralelamente ao estudo no conservatório, Inês tinha uma banda com duas colegas: uma psicóloga (a pianista) e uma enfermeira (a contrabaixista), eram as “Take Three”. Conheceram-se no conservatório, mas o pontapé de saída para a formação da banda foi dado quando a mãe de Inês pediu-lhe para atuar num evento de beneficência: “Recrutei-as um bocado à última da hora, mas correu tão bem que nos juntámos. Quase como a história d’ Os Quatro e Meia”. A partir daí começaram a fazer concertos ao vivo de “world music”, passando por vários bares e restaurantes da cidade do Porto. 

Médica de dia, música de noite

A música estava muito presente na sua vida, mas a via académica que seguiu acabou por ser outra. E a medicina foi quase inevitável, porque tanto os pais como as irmãs de Inês são médicos: “Não havia muita volta a dar. Ainda tentei teatro ou música, mas os meus pais achavam que era mais prudente ter uma profissão mais estável e fui para medicina”, explica. Assim, após um ano de aulas de canto no Conservatório, Inês candidatou-se ao curso de Medicina e entrou. Foi na psiquiatria que viu o futuro para a sua carreira. Atualmente exerce a profissão no Hospital Magalhães Lemos e no Centro de Respostas Integradas Porto Ocidental (CRI).

Apesar de ter uma carga de estudo bastante exigente, Inês nunca descurou a música. “Quando estudava medicina, a música foi mesmo muito importante. O curso é muito pesado, fiz aquilo bastante a custo e se não tivesse a música para desanuviar, não teria conseguido. Acaba por ser paradoxal, porque quantas mais tarefas somava, ficava com menos tempo, mas de alguma forma o rendimento aumentava. Cada vez que desistia de algo na música, ficava mais inerte e lenta no estudo da medicina”, explica ao JPN. 

Foto: Luísa Freixo

Na sua atividade profissional, mesmo sem formação em musicoterapia, Inês faz da música um remendo para o coração dos pacientes: “A música é transformadora. Já fiz várias atividades de música com os doentes. Em pessoas que estejam já completamente apagadas, a música consegue levantar um véu e fá-las aceder ao seu self novamente”. Também para Inês a música é uma verdadeira terapia: “a minha especialidade é muito carregada emocionalmente e preciso mesmo de ter onde desanuviar”, admite. 

Médica de dia, música de noite. Esta foi a vida de Inês a partir do momento em que se mudou para a capital portuguesa. Escolheu Lisboa por querer experienciar tudo o que a cidade tinha para oferecer. Ao mesmo tempo que exercia medicina, Inês tinha residência artística no restaurante Povo. À hora de jantar, quatro vezes por semana, pela rua cor-de-rosa ecoava o fado interpretado pela psiquiatra. 

O gosto pelo fado começou numa simples ida ao cinema com a avó. “Tinha grandes preconceitos contra o fado, achava que era para velhos, triste, deprimente, ao estilo tuga do queixume. E fui ver o ‘Amália – O filme’ com a minha avó. Não ia com expectativa nenhuma e o filme causou mesmo muito impacto. Emocionei-me imenso com as canções, pedi à minha avó para me dar o disco e ouvi aqueles fados vezes sem conta”, recorda. Como diz o ditado, primeiro estranha-se, depois entranha-se: depois do filme, começou a frequentar o circuito fadista portuense para se ambientar ao estilo. “A música é linguagem, há várias línguas e o fado é uma delas. Se não tiveres habituado a ouvir primeiro, vais cantar aquilo de uma forma que não vai respeitar o cânone”, explica.

Em Lisboa quis deixar a plateia, subir ao “palco” e participar na cultura fadista. O restaurante Povo promove a residência diária de um artista em início de carreira, sem nenhum disco gravado e põe-no a cantar durante três meses no espaço. O objetivo é que o artista vá aprendendo e melhorando. Inês fez um casting para o Povo e foi selecionada. “Quase nunca digo que não. Em Lisboa, foi um bocado assim. Fui ao casting, nem pensei duas vezes, provavelmente cantei no casting os únicos três fados que sabia”, salienta Inês. 

Esta experiência fez com que Inês mergulhasse de forma mais profunda no fado: “foi pôr em prática a linguagem que tinha vindo a aprender”, admite. A residência artística estendeu-se até aos quatro meses e culminou na gravação de um disco, Coleção Discos do Povo, Vol. 23. “Esta experiência foi determinante, porque tive a oportunidade de praticar, de experimentar fados diferentes, de conhecer vários guitarristas, de receber inputs importantes de pessoas mais velhas. Mesmo na interação com o público, cada dia era diferente”, conta. Atuar quatro vezes por semana, durante quatro meses, foi uma grande “escola de formação”, Inês sentiu que estava mesmo a vestir a pele de médica e cantora, “faço as duas coisas profissionalmente e de forma séria”, destaca. 

Passados dois anos e meio, Inês decidiu regressar à terra natal. A música manteve-se na sua vida, mas agora cantava em nome próprio, acompanhada de músicos convidados e sem nunca largar o registo de “world music”. Fez Erasmus em Itália no 5.º ano do curso, é neta de emigrantes e fala cinco línguas de forma fluente (português, espanhol, francês, inglês e italiano), Inês considera-se uma cidadã do mundo. “O meu segredo para aprender tantas línguas foi aproveitar ao máximo todas as oportunidades de aprendizagem que tinha”, reflete Inês.

“Um dia que vá a um concurso da televisão vai ser ao Festival da Canção”

O Festival da Canção já estava na cabeça de Inês há muito tempo. “Dizia sempre: ‘um dia que vá a um concurso da televisão vai ser ao Festival da Canção’, porque é uma celebração da música e um concurso baseado na canção e não no intérprete”, explica. 

A dupla Inês e Pedro surgiu de uma coincidência feliz. Quando uma das irmãs de Inês engravidou, a mãe de ambas decidiu oferecer ao futuro neto uma canção. Escreveu a letra e contratou Pedro Marques para musicar o poema. Inês conheceu o compositor já no estúdio para gravar a música. Nasceu “Vasquinho”, uma canção de embalar. “Correu tão bem. A partir daí percebi que gostava muito do trabalho do Pedro e tive aquela clarividência de que se calhar teria conhecido a pessoa certa”, revela.

“Às vezes é assim, as pessoas têm sonhos e projetos, mas tem de haver um pontapé de saída. Há muito que tinha a ideia de ir ao Festival da Canção, mas nunca tive desculpa para. E no acaso conheci este compositor, senti muita afinidade e foi tipo ‘é agora’, mas se ele tivesse oferecido um bocadinho de resistência se calhar a minha inércia não teria sido forte o suficiente”, revela.

Juntos, Pedro e Inês iniciaram a criação do produto musical. Quando pensava que um dia iria ao Festival da Canção, Inês imaginava uma música com várias línguas. Já a pensar na Eurovisão, gostava que a música tocasse em toda a gente e também que honrasse a jovem adulta e adolescente que foi, apaixonada por línguas e viagens. “E depois fazia todo o sentido agora durante a pandemia, ser sobre o desejo de viajar”, acrescenta. Entusiasmado com o desafio, Pedro Marques conversou com o letrista poliglota Galileu Granito, que ajudou a acrescentar ainda mais idiomas. 

A canção estava pronta um mês depois, sem grandes complicações: “Foi fácil, porque várias pessoas intervenientes estavam muito entusiasmadas e adaptaram-se um bocado às preferências uns dos outros. Isso faz com que a canção seja muito natural, porque as minhas preferências estão lá. Havia frases que queria muito incluir na canção por serem referências minhas de infância, por exemplo, as frases do filme ‘A vida é Bela’”, revela. Pelas mãos dos três intervenientes surge “Fome de Viagem”.

A psiquiatra conta que, após a submissão da canção, a RTP anunciou que tinha recebido mais de 600 candidaturas. “Quando vi esse número fiquei um pouco descrente”, admite. Também anunciaram que os quatro eleitos seriam revelados ao fim de dez dias. “Comecei logo com um discurso de mau perdedor: ‘Dez dias para ouvirem 619 músicas? Isto é uma pouca vergonha. Está tudo comprado. De certeza que eles já tinham selecionado’”, conta ao JPN. 

Mas os astros alinharam-se ara Inês e a resposta positiva não tardou a chegar. Ao sexto dia, a intérprete soube que concretizaria o seu sonho com a música que idealizou. “Fiquei eufórica”, afirma.

Inês ressalva a importância de no Festival da Canção haver este espaço aberto a artistas “não-convidados”, visto que acaba por ser uma montra da parte performativa e escrita. “A maior parte dos cantores da nova geração, como o Fernando Daniel, Carolina Deslandes, passaram por montras de concurso”, acrescenta. Apesar de serem 16 convidados e apenas quatro os selecionados por candidatura, Inês não se sente intimidada: “Estou a representar a canção do Pedro e o Pedro é um escritor de bandas sonoras super bem sucedido e isso dá-me muita confiança”, explica.

Agora prepara-se para o palco do Festival da Canção. “Está a ser uma grande aprendizagem para mim. Os meus concertos até hoje nunca foram para a televisão, então, desconhecia completamente esta parte do mundo do espetáculo. Aquilo que se vê no próprio dia tem uma série de preparativos que antecedem que desconhecia: é preciso pensar na roupa, no cenário e é da responsabilidade da equipa do intérprete ou da equipa do compositor tomar as decisões a respeito a isso”, admite. 

Novidade para Inês é também o apoio dos ‘eurofãs’. “Já fui entrevistada por um inglês em nome de um site de eurofãs de 30 e tal países. Há pessoas que são verdadeiramente aficionadas disto. Isso também está a ser super engraçado. De repente, vou ao Youtube e há um vídeo de pessoas da Noruega a reagirem à minha música. Ou seja, isto acaba por ser uma montra bastante internacional. Por isso, já está a ser uma experiência muito especial”, salienta.

Uma música “Mary Poppins-like”

Para Inês a mensagem da canção é direta: “Sou muito literal, para mim é viajar, sairmos desta prisão pandémica, ver o mundo e falar várias línguas. Mas há outras interpretações possíveis como, por exemplo, a pessoa, no sentido figurado, se não está bem numa determinada situação, poder dar um grito do ipiranga e mudar para outra situação”, elucida. 

Inês acredita que o que distingue a “Fome de Viagem” das outras músicas do Festival da Canção é sobretudo o estilo narrativo que a melodia assume: “nota-se que foi escrita por alguém que está habituado a trabalhar com bandas sonoras e a contar histórias através da música. Há pequenos apontamentos rítmicos que são super cinematográficos e é isso que está a fazer com que as pessoas falem tanto na Disney, porque realmente as músicas da Disney são narrativas. Evidentemente, também se distingue pela questão linguística”, garante. 

Sendo o tema das viagens e descoberta do mundo, a música “Fome de Viagem” leva Inês para um estado de espírito que lhe é familiar e reconfortante: a experiência de dizer que sim a todas as oportunidades que surgem. “Esta música, pelo seu ritmo, pelas notas rápidas, agudas, cromáticas, leva-me para esse estado de espírito com o qual me identifico muito e acho que é isso que as pessoas querem dizer quando escrevem que é Mary Poppins do século XXI. A Mary Poppins transforma coisas do dia a dia em experiências maravilhosas, dando-lhes uma roupagem alegre e de fantasia. A minha música transporta-me emocionalmente para esse lugar de leveza, de otimismo, Mary Poppins-like.”

Chegar aqui já sabe a vitória. “As expectativas são divertir-me, aprender e se der para ir a Turim, claro que ficava em êxtase”, remata. Para Inês e Pedro, “isto não é mais uma terça-feira à tarde, é um dia muito especial”

 

Artigo editado por Filipa Silva