Poucos conhecem a história daquele que, com o tempo, se tornou um mito da cidade de Matosinhos. Fernando Peneda é o nome do homem que bateu à porta do Leixões SC para criar a secção de boxe do Clube do Mar. Depois de uma carreira com mais de duzentos combates como 'boxer' e de vinte anos como “condutor de homens”, o JPN entrevistou a lenda do pugilismo amador.

Fernando Mário Fangueiro Peneda nasceu a 1 de abril de 1964. Caxineiro e pescador desde criança, aprendeu com o pai a arte do arrasto com tenra idade e aos dez anos mudar-se-ia para Matosinhos onde, ainda vizinho do mar, prosseguiria a vida de pescador. Aos treze foi introduzido à pesca artesanal, no Monte Calvário, onde o dia começava às duas da manhã e só acabava às cinco da tarde.

Percorreu o mundo na pesca de arrasto: esteve no Canadá por seis meses e também em Angola, até a guerra despoletar. Mas seria na cidade de Matosinhos que, mais tarde, levaria a sua coragem do mar para o ringue e ficaria conhecido pelos mais atentos como “O Rochedo”.

O JPN esteve à conversa com o ex-pugilista, agora com 57 anos, no café Veiga, em Matosinhos, onde a sua infância, o seu percurso na modalidade e outras curiosidades do fundador do departamento de boxe do Leixões SC vieram à mesa.

JPN – Como é que se descreve a si mesmo? Quem é Fernando Peneda?

Fernando Peneda (FP) – Sou de origem de pessoas humildes, pescadores. Vivi em Vila do Conde até aos dez anos e dos dez anos até aos sessenta anos vivi no Bairro dos Pescadores. Aí fiz a escola primária, entrei no mundo do trabalho da pesca, convivi com camaradas da pesca. Depois fiz outros trabalhos temporários, até me formar homem.

Peneda na escola primária

JPN – Nasceu no Poço da Barca, certo?

FP – Poço da Barca, nas Caxinas, Vila do Conde.

JPN – E desde cedo entrou na atividade piscatória. Como é que isso aconteceu?

FP – Sim. O meu pai era pescador. Vi-o a trabalhar e a ganhar bem e também escolhi esta profissão. Eu tinha opção: ser pescador ou então ia para soldador. Optei por ser pescador.

JPN – Porquê?

FP – Porque é um trabalho de risco, mas facilita… trabalha-se duas horas de violência e descansa-se oito.

JPN – Também viveu numa comunidade bastante religiosa. Tem ligação com a religião?

FP – Sim, tenho, tenho, tenho.

JPN – E gostava de ir à escola em pequeno?

FP – Gostava, mas não era bom aluno. Se fosse agora, esforçava-me. Mas, na altura, quem tivesse a quarta classe ia para o mundo do trabalho, ia logo trabalhar para o mar. Tirei a quarta classe com 12 anos, portanto…  As mães arranjavam trabalho para o filho. Ou o pai.

JPN – Saiu das Caxinas para Matosinhos aos 10 anos?

FP – Sim, conhecemos uma casa melhor.

Peneda, o primeiro a contar da esquerda, nos Comandos. Foto: Jorge Barros/Paulo Teixeira Lopes/Joaquim Vieira

JPN – Mais tarde serviria os comandos, dos quais fala com orgulho.

FP – Sim. Na altura era obrigatório ir para a tropa aos 20 anos, e eu fui para Infantaria para Beja. Depois fui para Alcochete e falei com o sargento-mor para ver se podia tirar o curso de comandos. Ele disse que sim, deu-me os papéis e fui. Uma pessoa a fazer o curso, lembra-se dos obstáculos, do difícil.

Os paraquedistas trabalham o tórax, os fuzileiros fazem exercício na lama. Nos comandos é a ação psicológica e quem não for forte de espírito não consegue fazer o curso e fica para trás. É preciso ter um calo… só passam os melhores. No meu curso, só passaram 150, e mais de dois mil reprovaram. E só fizeram o básico, não fizeram o curso de comandos.

JPN – O que é que aprendeu com o serviço militar?

FP – A preparar-me para a vida, para ser um homem com ‘H’ grande e para estar à vontade no meio da sociedade como adulto, como homem honesto, homem sério, homem do bem. O lema dos comandos era “A sorte protege os audazes”.

Diz quem o conhece que Fernando sempre teve um talento natural para o pugilismo. O fim da sua adolescência marcou o início da sua caminhada no boxe, altura em que partia todos os dias do Bairro dos Pescadores para o Ramaldense, onde começou a treinar. Em apenas cinco semanas, foi concretizado o seu primeiro combate.

JPN – Quando é que o boxe entra na sua vida?

FP – Andava na traineira e havia um rapaz que me disse que também fazia boxe. Eu, como tinha a pesca, estava bem fisicamente. Fui fazer uns treinos ao Ramaldense e gostei. Fui desde 1980 a 2019 como atleta e treinador.

JPN – É verdade que esteve presente em mais de 200 combates, alguns internacionais?

FP – Sim. Estive em França, em Lyon, estive em Vigo, em Espanha… Em Portugal, participei em combates de Matosinhos até Olhão. Todas as cidades. Antigamente, as câmaras municipais organizavam os combates e depois, ao fim, davam um brinde de frango ou de entrecosto e a gente convivia depois dos combates.

JPN – Quem foi o adversário mais difícil que teve de enfrentar?

FP – Todos os combates são difíceis. O mais difícil para mim foi em França, em Lyon. Lá combatia-se em tronco nu, no amador, e o atleta em questão era muito difícil, muito bom, e queria ser atleta profissional. Consegui abrir-lhe o sobrolho e ganhei esse combate, ao segundo assalto. Foi o mais difícil.

JPN – Como é que ganha a alcunha de “O Rochedo”?

FP – Eram os adeptos, os meus fãs, que compuseram essa alcunha de “Rochedo”, porque eu era uma rocha muito dura. Eu era pegador. No pugilismo há pegadores e estilistas e eu era pegador, baixo de braços curtos e pernas curtas. O pegador dá três golpes e sofre cinco, enquanto o estilista dá três e só leva um. E eu era muito duro, e puseram-me a alcunha de “Rochedo”. Antes de combater já se andava à porrada para ver quem era o vencedor. Aquilo era sempre a dar milho.

JPN – Qual era a sua maior arma no combate? O que é que o distinguia de outros lutadores?

FP – A capacidade física. Era muito valente, muito valente. E no coração, poucos atletas de alta competição profissionais de futebol ou de râguebi ou de basquetebol tinham o meu coração e poder. E eu estava bem alimentado e trabalhava na traineira. Eu fazia o mar e fazia o boxe. E depois, fruta, muitos bifinhos… antigamente, tinham sangue, os bifes, agora são congelados e é só febra, não têm vitaminas. Antigamente, um bife ou uma pescada punha uma pessoa em pé.

JPN – Tinha alguma rotina antes dos combates?

FP – Não tinha nada, não tinha nada. Estava sempre confiante…

JPN – Não ficava nervoso?

FP – Não ficava nervoso, não. Ultrapassava o medo.

JPN – Disse anteriormente que o boxe é para pessoas “com uma dose de loucura”. O que é que quis dizer com isso?

FP – Tem de se estar à margem da sociedade para se dedicar ao pugilismo, porque a nova arte exige uma boa alimentação, um bom descanso, uma boa rotina. Não se pode estar na sociedade junto com as outras multidões, senão o atleta perde-se. O atleta tem de ser humilde para saber o que quer e ter um estilo próprio. É este tipo de religião. Para ser boxer é preciso ter muita dureza, ter muito músculo para conseguir. Muita coragem.

Fernando Peneda tem um curso de treinador de boxe, de árbitro e até de nadador-salvador, cuja prática destroçava os corações das jovens de Lavra. Uma vez rei do pugilismo amador, fundaria o departamento de boxe do Leixões SC, onde foi treinador e diretor, tornando-se um ícone da modalidade na cidade de Matosinhos.

JPN Mais tarde iria bater à porta do Leixões SC com o objetivo de pôr o boxe da cidade de Matosinhos no mapa. Como é que teve essa ideia e como é que surgiu a oportunidade de levar esse projeto para a frente?

FP – Em 1996 tirei o curso de treinador e depois estava a treinar n’O Músculo, em Leça, que é a sede do Sporting. Já tinha atletas feitos. Então bati à porta do Américo Jorge e disse que tinha uma equipa e que queria federar o Leixões, ele disse que sim. De 1998 até 2017, estive sempre ligado ao Leixões. Fi-lo para ser condutor de homens e para tirá-los da rua e pô-los integrados na sociedade, para serem mais capazes, mais competentes e mais humildes. Se tivesse um espaço como têm os outros ginásios, com um ringue, tinha feito um trabalho incalculável.

JPN – Não tinha apoios financeiros?

FP – A Câmara nunca apoiou, mas a Junta apoiava. Dava quinhentos euros todos os anos, nos anos 90. Dava para comprar um saco ou dois e meia dúzia de pares de luvas.

JPN – O Leixões é a sua paixão?

FP – Sim. É um clube que deu muito apoio à população de Matosinhos, aos jovens deu-lhes oportunidade de ser jogador da bola e outras modalidades. O Leixões sempre teve muitas modalidades. Hóquei em campo, em patins, basquetebol, voleibol – onde são muito fortes, mais fortes que o futebol. É um clube atlético que dá oportunidade à população de Matosinhos.

Peneda com o fato de treino do Leixões SC, o seu grande amor Foto: Jorge Barros/Paulo Teixeira Lopes/Joaquim Vieira

JPN – Qual é o segredo, para si, para fazer de um lutador o melhor lutador?

FP – Muito empenho, muito trabalho e ser humilde. É o treinador acreditar no atleta e o atleta no treinador. Só assim é que se pode fazer um verdadeiro campeão.

JPN – E houve algum treinador em especial que tenha feito d’O Rochedo um campeão?

FP – Sim. Era o empresário do Ramaldense, Luís Saavedra, e o Mário Lino. Foram os melhores dos melhores em Portugal e foram meus treinadores.

A artista Rita Guerra foi uma das “alunas” d’O Rochedo Foto: Jorge Barros/Paulo Teixeira Lopes/Joaquim Vieira

JPN – Poucos sabem, mas também treinou a cantora Rita Guerra, no Leixões. Qual é a sua relação com ela?

FP – Eu conheci um irmão da Rita Guerra aqui em Matosinhos, porque ele pertencia à associação dos empresários daqui do Norte e ele fez-me o convite para a treinar e ela até cantou para o futebol do Leixões.

JPN – Em que medida o boxe mudou a sua pessoa e o seu caráter?

FP – Desde que era pescador, depois fui para a tropa normal e depois tirei o curso de tropa especial dos comandos. Senti-me um super-homem, um homem com H grande, um homem cheio de conhecimentos, cheio de cultura.

JPN – Qual é a sua melhor memória no boxe?

FP – A melhor memória? São todas, são todas.

JPN – O boxe ainda está presente na sua vida, atualmente?

FP – Sim, gostava de continuar, só que não há espaço para fazer uma academia. Gostava de ter uma academia com um protocolo da Câmara, a Câmara a dar o espaço. Era o meu sonho, realizar isso e tirar os miúdos da rua. Gostava de ensinar a ‘nobre arte’ do pugilismo e conviver com os jovens. Uma pessoa sente-se sã. Mente sã, corpo são.

JPN – Porque é que a Academia de Boxe Fernando Peneda acabou?

FP – Porque eu estava no ginásio em frente às finanças e isso fechou. Não tinha alunos, não faturava para pagar a renda e fechou, o clube acabou com a secção.

JPN – Acompanha o boxe internacional?

FP – Não, não. A televisão não dá nada do boxe amador.

JPN – Como é que acha que a modalidade evoluiu desde o seu tempo?

FP – Antes, as inscrições eram gratuita. Tinha muitos jovens, mais de trinta jovens por dia, portanto dava para treinar todos e para fazer uma seleção. Hoje vinham quinze, amanhã vinham vinte… e podia fazer uma seleção, escolher os melhores. Os outros ou não tinham capacidades, ou às vezes os pais não os deixavam praticar pugilismo, diziam que era muito violento.

JPN – O que acha das novas artes de combate que surgiram depois do boxe? Partilha da opinião dos da ‘velha guarda’ de que “quando as mãos não chegam, não é com os pés que se vai lá”?

FP – Eu estou de acordo. O pugilismo é a mãe de todas as modalidades, portanto admiro as modalidades olímpicas. O kickboxing não é olímpico, o vale-tudo não é olímpico. O judo, karaté, o boxe, essas estou de acordo. As outras são clandestinas, não deviam existir.

JPN – Acha que o boxe ainda está preso à ideia de violência?

FP – Da vida noturna. O mundo do pugilismo é para quatro ou cinco rapazes. O resto ninguém se apercebe como é o mundo do desporto do pugilismo, como é treinado, como é ensinado, como prepara para o mundo do desporto e para a vida. É difícil dizer à pessoa comum o que é o pugilismo.

JPN – Quem é o seu ídolo no boxe?

FP – É o Joe Louis. Um fuzileiro, humilde. Era uma pessoa do bem, completa. Agora, o Cassius Clay foi o herói de todos os tempos, porque sacrificou-se mais que os outros. Ele tem um livro “Eu sou o maior”, que por acaso tenho em casa.

JPN – Sabemos também que o seu filme favorito é o clássico “Rocky”. Também ambicionava ser como ele?

FP – Sim. Era um homem também completo.

JPN – Nunca pensou em desistir do boxe?

FP – Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca.

JPN – Se não fosse boxe, que desporto gostaria de praticar profissionalmente?

FP – Râguebi. No Ramaldense tinha lá o râguebi, ainda fiz uns treinos. Também tinha um bocado de jeito para a bola, mas não era aquilo que queria. Bola de rua, nunca calcei chuteiras.

JPN – Tem a sua própria biografia. Como é que surgiu a oportunidade de a lançar?

FP – Quem a escreveu foi esta senhora que está aqui [aponta para o livro] brasileira, Nilce Costa. Eu conheci um fotógrafo na noite e ajudou-me. Uma pessoa lê o livro e sabe o que a pessoa passou, já tem uma luz, uma ideia. Porque não foi nada fácil, nada oferecido. Foi tudo conquistado. Suor e lágrimas. Foi também o Jorge Barros que escreveu. Ele queria que eu fosse para Moçambique abrir um ginásio, só que com a pandemia e essas coisas todas… não há dinheiro, não há ópera.

Peneda no lançamento da sua biografia, no Estádio do Mar Foto: Jorge Barros/Paulo Teixeira Lopes/Joaquim Vieira

JPN – Também foi um homem ligado à vida noturna, sendo segurança e RP no Tequilla Bar. Como é que surgiu a oportunidade de trabalhar em bares e discotecas e organizar eventos?

FP – Eu era cliente do Tequilla e fui lá beber um copo com uns amigos. Apareceram uns casais de Viana que estavam lá no convívio, na música. Entretanto, houve uma confusão de porrada, partiram copos, arremessaram copos para a cabeça de uma pessoa. E eu vi aquilo, e como era amigo do porteiro do Tequilla e do patrão, intervi. Tive que ‘aviar’ uns seis ou sete e acalmei aquilo. Fomos falar ali à beira do Capa Negra, onde esse Fernando Almeida, o patrão do Tequilla, tinha um restaurante mexicano. Fomos lá, apresentaram-me lá ao gerente, eu já o conhecia de vista, e dissemos que eu controlei a casa, pusemos tudo sereno e a dormir e ele disse que, se quisesse, podia tomar conta da casa a fazer segurança. 

JPN – A sua discoteca de eleição é o Bela Cruz, na Avenida da Boavista. Tem alguma história de lá?

FP – Como era uma pessoa que tinha acesso à cultura, falava muito com os jovens do Bela Cruz, que eram filhos de gente de bem, da alta sociedade. Eu dava-me bem com o pessoal todo do bar, e os donos apresentavam-me os clientes deles e eu tinha cartão, então oferecia copos e eles a mim e aos outros, era um convívio. E nunca havia confusões. Porque para acalmar o inimigo dá-se um uísque e ele fica calmo, já não fica nervoso [risos].

Fernando Peneda com Deco, ‘O Mágico’ Foto: Facebook/Fernando Peneda

JPN – No site da Academia Fernando Peneda, encontra-se numa foto com Deco, ex-FC Porto, com o qual diz ter passado “um grande dia no rodízio a altas horas”. Como é que isso aconteceu?

FP – Eu conheci um porteiro desse bar e esse rapaz dava-se bem com a comunidade brasileira toda, então apresentou-me o Deco. Eu estava ali para polivalente: se alguém se portasse mal, eu fazia as tarefas difíceis.

JPN – Atualmente, como passa os seus dias?

FP – Agora, estou reformado por invalidez. É três dias em casa e três dias fora. Saio, dou uma volta aqui em Matosinhos, e às cinco ou cinco e meia vou logo para casa. E depois fico outro dia em casa. Primeiro, para controlar as contas, e depois porque uma pessoa fica cansada, sempre a mesma rotina, as mesmas caras, as mesmas pessoas.

JPN – Há alguma coisa que separa o Fernando Peneda d’O Rochedo?

FP – Não, é a mesma pessoa. Eu tenho um bom caráter, sou comunicativo, e sou muito admirado pela cidade de Matosinhos, sou muito acarinhado, todo o mundo me conhece. Tudo o que é fácil ou é difícil, para mim é tudo normal.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha