No final de fevereiro, Inês Lourenço lançou “Dois Cimbalinos Escaldados” no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. A obra consiste numa coletânea de poemas escritos entre 1980 e 2021 e cujo denominador comum é um: o Porto. Este era um projeto que estava na gaveta e que Renato Filipe Cardoso, editor da Texto Sentido, trouxe para o público. Na antologia poética, a escritora particulariza como é nascer, respirar, viver, ter filhos e animais e desejar morrer na cidade Invicta. “Não é propriamente um catálogo turístico”, comenta.
Poeta há 42 anos e com cerca de 14 títulos de poesia e dois de micro-ficção publicados, Inês Lourenço, de 79 anos, dedica-se hoje apenas à poesia. Nasceu em casa, na freguesia portuense de Santo Ildefonso – mais precisamente na Rua de Camões, que já serviu de inspiração para um poema. Filha de pais igualmente do Porto, deu continuidade à linhagem com dois filhos, uma pianista e um arquiteto. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Terminou o curso só depois de ter casado e sido mãe.
Apesar da antologia partir da sua individualidade e vivências, a escritora separa bastante a pessoa da poeta, visto que, como poeta, escreve coisas que não são inteiramente o retrato da sua vida. “A poesia, muitas vezes, ficciona. É evidente que escrevo com toda a minha mundividência, mas às vezes, escrevo coisas que a unidade poema me está a pedir. O poema é uma espécie de puzzle – nós vamos encaixando palavras onde podem soar melhor”, explica Inês.
Relativamente ao título para a sua mais recente antologia poética, a escritora não teve dúvidas: “cimbalino”, uma palavra característica e que só se diz no Porto. Sendo mais precisa, “o que se ouvia dizer era ‘dois cimbalinos em chávena escaldada’, mas havia muitos empregados que abreviavam e diziam: ‘dois cimbalinos escaldados’”, recorda.
A obra está dividida em cinco partes. Na primeira, que partilha o nome da antologia, os versos dos poemas percorrem os cafés portuenses que Inês Lourenço frequentava. Por exemplo, o café Macau, na esquina da rua onde agora mora, dá nome a um dos textos desta parte do livro. Por escrever nos guardanapos dos cafés e por encontrar-se lá com outros poetas, a escritora vê estes locais como uma fonte de inspiração e como o berço de muitas obras eternas. “O café está muito ligado à atividade literária”, afirma.
“Dedicatórias”, a segunda parte, conta com poemas dedicados a personalidades que nasceram no Porto ou que aí desenvolveram a sua atividade. Inês homenageia figuras como os escritores Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner, a violoncelista Guilhermina Suggia e até os seus dois filhos.
Segue-se “A Magnífica Destreza”, que “é sobre os meus bichos todos”, explica Inês. A poeta relaciona os animais com a cidade por terem nascido e morrido nela e principalmente pela vivência que teve com eles. “Eu adoro animais, faz parte da minha personalidade portuense. Sobre gatos, tenho para aí uns 20 poemas”, confessa. A terceira parte encerra com o poema “Scorpius”, o animal mítico da autora. Inês Lourenço diz que não tem nenhuma crença na mitologia, mas que a simbologia associada acaba por lhe interessar, para a poesia.
Na penúltima parte do livro, “Ritmos Interiores”, recriam-se espaços íntimos, desde a infância até outros itinerários reflexivos, desde “amar no Porto” até “sofrer no Porto”. “O ritmo interior é a minha identidade portuense: são as minhas maneiras de ver, de pensar, de sentir, de analisar. Os ritmos interiores são coisas do meu ser portuense interior, cá de dentro”, explica.
Com um carácter mais exterior, chega então a última parte, “Lugares” – obviamente do Porto e com os quais a escritora estabelece quase uma relação de sangue. Inês perdeu os pais quando tinha 20 anos e, então, passou a ver a cidade como uma “pessoa de família”. “Descia a rua de Camões, chegava ali à Trindade, olhava para aqueles muros e sentia uma espécie de familiaridade, como se fosse algo que estivesse ali sempre, à minha espera. Portanto, sinto essa grande familiaridade com o Porto – é a minha cidade, o meu lugar de origem. Eram os meus pais e passou a ser a cidade”, esclarece.
A Inês, todos os espaços portuenses inspiram. Na parte final da obra, fala-se de espaços exteriores e mais socializantes, como o Jardim de São Lázaro, o mar da Foz e a Torre dos Clérigos. “Não tenho um sítio preferido. Todos os sítios no Porto têm os seus encantos. É uma cidade com muito carisma”, sublinha.
“Eu não sou invisual, tenho muitas imagens na minha cabeça”
O Porto é uma cidade relativamente pequena, mas a Invicta nunca limitou os sonhos de Inês Lourenço – o mesmo não se poderá dizer das “circunstâncias da vida”. A autora começou a escrever com 18 anos para os jornais estudantis, mas publicou o primeiro livro apenas aos 35 anos, pois, sem pais e com marido e dois filhos, a escrita teve de ficar para segundo plano.
Uma escritora nata desde criança, sempre teve tendência para a escrita, mas nunca tinha pensado em ser escritora. Na escola primária, quando recitavam poemas e faziam composições, Inês destacava-se sempre. “Gostava muito de escrever. Não sei bem se tinha consciência de que era um sonho, sei que era uma coisa quase biológica em mim, sentia a necessidade de escrever”, conta.
Foi aos 69 anos que Inês perdeu a visão. No entanto, diz que se adaptou muito bem à escrita sem vista: “o meu computador tem uma aplicação de voz, quando estou a escrever uma palavra, ele diz-me tudo o que escrevi. Respondo a comentários no Facebook e pesquiso várias coisas no Google. Sou completamente autónoma”.
“Eu não sou invisual, tenho muitas imagens na minha cabeça”, remata. Mesmo com a perda de visão, o Porto nunca perdeu o sentido. Inês sente na mesma a cidade: “quando um sentido falha, distribui essa capacidade para os outros de maneira que vejo com os ouvidos, tenho a audição muito mais apurada e desperta. Gosto de ouvir o mar e cheirar a maresia. O tacto, as texturas diferentes”.
Inês já estacionou em vários lados, passou por Castelo Branco e até Berlim, mas nunca ponderou sair do Porto, até porque “certamente” lhe “viriam as saudades”.
Artigo editado por Filipa Silva