O caso Roe v. Wade contribuiu para a legalização do aborto nos EUA, mas o direito está agora ameaçado. Se o caso for revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça, 26 dos 50 estados poderão abolir o direito à interrupção voluntária da gravidez.

O direito ao aborto nos Estados Unidos da América (EUA) pode estar comprometido se o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) ordenar a anulação da decisão Roe v. Wade, o caso emblemático que colocou o direito à escolha da mulher ao abrigo da Constituição norte-americana. A sentença, que está dependente da deliberação do caso do Mississipi – Dobbs v. Jackson –, deverá ser divulgada nos próximos meses.

A legislação relativa ao aborto nos EUA varia consoante os estados e tem sofrido várias alterações, desde que o direito foi considerado constitucional em 1973. A resolução do Supremo Tribunal sobre o caso, que ficou conhecido como Roe v. Wade, contribuiu para a legalização do processo até às 22 ou 24 semanas de gestação, bem como para o aumento do número de clínicas que fornecem estes serviços. Os estados ficaram, no entanto, com a possibilidade de escolher se legalizariam ou não a interrupção da gravidez durante o segundo e terceiro trimestres.

Alguns estados têm implementado medidas que visam restringir o direito ao aborto, sendo que, entre 1 de janeiro de 2011 e 1 de julho de 2019, contabilizaram-se 483 novas propostas de alteração da lei no conjunto do país. No ano passado, registou-se o maior número de medidas restritivas promulgadas – 108 normas em 19 estados -, desde 1973. 

Os efeitos da anulação de Roe v. Wade

A decisão Roe v. Wade está a ser discutida em resultado de um caso do Mississipi que aguarda decisão do Supremo Tribunal. O estado do Sul pretende limitar a realização do aborto depois das 15 semanas de gravidez, mas os tribunais federais recusaram. 

No entanto, os ativistas antiaborto esperam que o STJ anule o precedente estabelecido com o caso Roe v. Wade e aprove a lei em questão. Uma esperança que tem agora maior probabilidade de se tornar realidade, visto que o Supremo aceitou analisar uma proposta de lei que coloca diretamente em causa o caso Roe v. Wade.

À mudança do veredicto de 1973 podem ajudar ainda as alterações que se verificaram no elenco de juízes. Há 49 anos, o STJ era constituído por quatro juízes conservadores e cinco liberais, sendo que, atualmente, é formado por seis conservadores e três liberais. A decisão deverá ser revelada em junho.

Se Roe v. Wade for revogado, os estados teriam a liberdade de decidir se o aborto seria ou não legal. Neste sentido, prevê-se, de acordo com o Guutmatcher Institute, que 26 dos 50 estados possam abolir completamente o aborto ou impor medidas muito restritivas, que impossibilitem a interrupção voluntária da gravidez no estado no qual têm residência.

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A 21 de janeiro, dia em que se celebraram os 49 anos de Roe v. Wade, ativistas antiaborto encheram as ruas de Washington para participarem numa manifestação que recebeu o nome de “Marcha pela Vida”. Porém, 69% dos cidadãos americanos não querem que o caso seja revogado, de acordo com um estudo da CNN.

O presidente dos EUA, Joe Biden, já se manifestou no Twitter, afirmando que “o direito constitucional estabelecido em Roe v. Wade há 49 anos está a ser ameaçado como nunca. Devemos comprometer-nos novamente a fortalecer o acesso aos cuidados reprodutivos, defendendo o direito estabelecido por Roe e protegendo a liberdade de todas as pessoas para construir o seu próprio futuro”.

A proibição da realização dos abortos ou as severas restrições podem resultar em graves consequências para a saúde e segurança das mulheres que não tenham acesso a unidades que ofereçam esses serviços. Também falta de apoios e meios económicos, por ausência de financiamento público ou por falta de cobertura dos seguros de saúde, pode dificultar a deslocação das pessoas para outros estados que disponibilizem melhores condições.

Há, no entanto, uma possível solução à vista que permitiria a interrupção da gravidez em qualquer estado: a aprovação da Lei de Proteção à Saúde da Mulher

A história do aborto nos EUA pode revelar-se cíclica

O aborto nem sempre foi permitido nos Estados Unidos, visto que, nos anos 50 e 60, o processo era proibido. Neste período, as pessoas eram obrigadas a recorrer a unidades clandestinas ou a deslocar-se a outros países onde o processo fosse permitido, caso tivessem recursos económicos. 

Em 1968, deu-se o primeiro passo na direção do direito ao aborto com a ratificação da Lei do Aborto, na Califórnia. Além disso, em julho de 1970, assistiu-se à abertura da primeira clínica legal para o efeito, em Nova Iorque, assim como à legalização da interrupção da gravidez.

Três anos depois, o Supremo Tribunal declarou o aborto como um direito constitucional, mas nem todos concordaram com a decisão e, desde então, a legislação tem sido discutida. A implementação desta norma está, também, associada ao direito à privacidade da mulher. A interpretação do STJ foi a de que este direito “é amplo o suficiente para abranger a decisão de uma mulher de interromper ou não a sua gravidez”.

O Texas conseguiu, em 2021, apesar da legislação, aprovar uma lei que proíbe a realização de aborto assim que é possível detetar ritmo cardíaco, o que normalmente acontece às seis semanas. As mulheres podem interromper a gravidez num período posterior, se a sua saúde ou vida estiverem comprometidas. No entanto, situações de incesto ou violação são excluídas. 

O facto de qualquer cidadão ter a possibilidade de apresentar uma ação judicial contra a grávida ou pessoa que a ajude a realizar um aborto – e não o estado ou uma entidade governamental – foi o que distinguiu esta proposta de lei das demais – incluindo a do Mississipi, ainda em deliberação -, tendo sido crucial para a ratificação da lei. O queixoso pode ainda exigir o pagamento de um valor igual ou superior a 10.000 dólares (cerca de 9 mil euros).

Na fotogaleria seguinte são apresentados todos estados – a vermelho os que poderão abolir o aborto; a cinzento os que não e que podem servir de recurso para as mulheres de estados proibicionistas; e a branco os que não devem proibir, mas não são solução para mulheres provenientes de outros estados -, acompanhados de dados referentes às principais restrições em vigor e ao número de estabelecimentos indicados para a interrupção da gravidez. A informação presente nas infografias foi retirada do Instituto Guttmacher

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Artigo revisto por Filipa Silva e Tiago Serra Cunha