A 26 de dezembro de 2004, um tsunami provocou a morte de cerca de 300 mil pessoas. À costa, deram histórias de angústia e vidas arrancada pelas ondas. Dezoito anos depois, C. Bastos recorda ao JPN o que viu e viveu, num paraíso de férias que em poucas horas virou um cenário de tragédia.

C. Bastos (nome pelo qual pediu para ser identificada) estava na costa oeste da Tailândia com o marido e os dois filhos quando foi surpreendida pelo tsunami que deixou uma onda de destruição por vários países e levou consigo centenas de milhares vidas. Hoje, a mãe de 49 anos, viaja até ao passado e conta ao JPN como foram salvos pela teimosia dos filhos, na altura de 7 e 9 anos.

Foi a 26 de dezembro de 2004 que uma onda atingiu 14 países, a maioria na Ásia, e transformou a vida de milhares de pessoas. Às 07h58, a terra tremeu com uma magnitude de 9.1 na escala de Richter, com epicentro na Indonésia. Nas horas seguintes, ondas que iam até aos 30 metros varreram vidas, danificando quilómetros de terra. Cerca de 300 mil pessoas não resistiram à força das águas. 

Phuket, na Tailândia, conhecida pelas praias paradisíacas, foi uma das ilhas afetadas. Era ali que se encontravam C. Bastos e a família que nessa manhã decidiram romper com a rotina de praia e dirigirem-se até à montanha, onde sem saberem se colocariam a salvo das ondas. O regresso ao hotel, situado na segunda linha da praia, foi feito com emoção. A família Bastos foi mais uma das sobreviventes daquele que é considerado um dos piores desastres naturais dos últimos séculos.

Salvos pela persistência 

C. Bastos viajava muito de país para país em trabalho, por isso, decidiu tirar férias na época natalícia. O destino era a Tailândia. Movidos pela sugestão dos vizinhos que já tinham visitado Phuket, a família decidiu embarcar numa viagem até Patong Beach, localizada na mesma ilha. A família chegou ao “paraíso” um dia antes do Natal. 

Conhecida pelas águas límpidas, a areia fina e os peixes de várias cores, o casal decidiu fazer da praia o centro das férias. “Levantávamo-nos por volta das 8h30, tomávamos o pequeno almoço e íamos para a praia”, recorda. Era esta a rotina. 

A praia em frente ao Hotel onde a família estava hospedada antes do tsunami. C. Bastos

Influenciados pelos guias turísticos, os dois filhos do casal insistiram e persistiram em visitar a James Bond Island, localizada na Baía de Phang Nga, a cerca de 45 quilómetros de Phuket. Depois de vários “nãos”, os pais decidiram, no dia 26 de dezembro, fazer a vontade aos filhos. Tinham um itinerário marcado: visitar a plantação da borracha, a quinta dos elefantes, na montanha. Depois, ir à James Bond Island, onde iríamos almoçar”

Nesse dia, levantaram-se mais cedo do que o costume. Uma onda de preocupação já se levantava dentro C. Bastos e deixava-a irrequieta. “Comecei a sentir-me mal. Parecia que algo dentro de mim tremia”, conta. Tentou convencer-se a si mesma que não era nada. “A gente passa aquelas experiências e só algum tempo depois é que começamos a voltar atrás e a tentar pôr as pecinhas todas. Quando senti aquele tremor, já era algo que se estava a passar e eu senti”, afirma. 

Começaram na plantação da borracha e depois foram andar de elefante. “Mais ou menos a meio da viagem, os elefantes sentiram-se muito agitados, não foi só um, foram todos os que estavam no tracking. Começaram a levantar as patas da frente. Nem mesmo o guia conseguia segurar o elefante. Os animais sentem tudo”, explica. Foi nessa altura que em Patong se sentiu (ver caixa) essa onda gigantesca, a primeira que levou tudo à frente.

Patong Beach está a cerca de 500 km do epicentro do tsunami, que se deu em Sumatra. As ondas chegaram duas horas depois a Phuket, variando entre cinco e seis metros de altura. 

Países afetados no terramoto de 2004. Ikescs

Passado algum tempo, receberam a instrução de que não podiam continuar a visita. “Recebi agora um telefonema de uma pessoa lá a dizer que há uma onda que está a destruir tudo”, disse o guia turístico à família que tinha marcado uma viagem bastante longa na montanha e não percebiam o que se estava a passar. “Imagine estar num paraíso. Depois há o guia turístico que lhe diz ‘está uma onda a destruir tudo’. Pensei que algo não estava bem organizado e que nos iam manter aqui mais um bocado para tentar reorganizar tudo”, disse. C. Bastos admite ainda que, inicialmente, foi difícil acreditar nas palavras do guia. Uma das maiores adversidades, a falta de comunicação, dificultou o acesso e contacto com informações fidedignas.

Meia hora de incerteza passou-se. A falta de informação deixava qualquer um preocupado. “Não havia televisão, não havia nada, estava tudo desligado”, conta C. Bastos. Apenas um guia conseguia receber telefonemas. Com o aumento do compasso de espera aumentava também a inquietação: “as pessoas começaram a ficar agitadas, porque os telemóveis não funcionam, porque não conseguem ligar a ninguém, porque não há linhas, televisão, não há informação”

Passadas duas horas e meia, o guia informa: “Não podemos ir para Patong, está tudo destruído, a segurança não nos deixa voltar para já”. Até terem a certeza que os hóspedes não iam ser afetados, a organização arranjou, temporariamente, um hotel na montanha. Começaram a chegar pessoas ao hotel a chorar, mas C. Bastos só caiu na realidade quando no quarto ligou a televisão nas notícias locais e viu imagens do que estava a acontecer. “Foi aí que nos apercebemos inicialmente da devastação que aquilo foi. Foi horrível”, recorda. 

Com grande pesar acompanhado de um suspiro, continua:  “Eles filmaram a zona que nós estávamos todos os dias, a água levou tudo, destruiu tudo. Eram carros estacionados uns em cima dos outros , dentro de lojas, eram barcos na terceira linha da praia, era horrível. Nós começamos a chorar, porque um paraíso lindíssimo, de águas límpidas, estava completamente destruído”, relembra.

Com o choque das imagens e os sentimentos à flor da pele, a família já nem conseguia jantar. “Conseguimos dormir algumas horas e, entretanto, logo da parte da manhã, o guia turístico voltou com o autocarro para nos levar para os nossos hotéis, porque já era seguro”, acrescenta. 

Foi a persistência que salvou a família: “Foram os meninos que nos salvaram com a ideia deles de ir à James Bond Island”. De outro modo, teriam ficado as férias todas na praia.

Destruição fora do ecrã

As primeiras imagens da televisão não transmitiam a real dimensão da tragédia. Os relatos dos sobreviventes contavam muito mais do que era possível uma câmara capturar. De manhã cedo, a família partiu para o hotel. “Devastação total” foi assim que C. Bastos descreveu o cenário que encontrou. “Saí do autocarro e congelei, fiquei estática. O sítio estava irreconhecível”, conta. “Só se viam pessoas a chorar, a gritar, a tentar encontrar as pessoas que perderam”, revela. 

Uma paisagem que outrora era verde, de mar cristalino e areia fina desfigurou-se e deu lugar a um cenário enlameado onde destroços de barcos, móveis, edifícios, carros eram os adereços principais de um cenário fora do real. 

“Estávamos no rés do chão, as portas tinham ficado fechadas e mesmo assim estava tudo molhado, cheio de lama.  Tinha marcas de água nas paredes a quase um metro de altura. Por sorte, tínhamos deixado os documentos numa mala de viagem, que era de plástico rígido, por isso não foram afetados”, relata. Em Phuket, as ondas foram de 3 a 6 metros. “Agora imagine a força das águas para ter destruído tudo aquilo como destruiu, foi forte”. 

Tinham a viagem de regresso marcada no final do mês, antes da Passagem de ano, mas não quiseram ficar mais tempo. “Tentamos juntar tudo aquilo que conseguimos, que estava mais ou menos bom e fomos para o aeroporto. Não trouxemos assim grande coisa. Nós estávamos vivos e isso foi o mais importante para nós”, menciona. 

C. Bastos descreve o aeroporto como um “caos”. “Aquilo era caótico… braços partidos, pernas partidas, pessoas a chorar por não encontrarem os familiares e a contar histórias do que é que tinham passado e visto”, relembra. 

A confusão estava instalada no aeroporto. C. Bastos

Era um acumular de emoções que se agravou com o facto de não conseguirem falar com a família. “A nossa família não tinha acesso a nós, porque as linhas telefónicas estavam cortadas”, explica. “Foram dias horríveis, não só para nós, como para as famílias. Foi no aeroporto que conseguimos fazer a primeira chamada”, diz. Telefonemas que deixavam pormenores e histórias por contar para não preocupar aqueles que os esperavam em Portugal. 

A Tailândia é um país que vive do turismo.  O que mais emocionou C. Bastos foi sentir na pele o sofrimento de tantos habitantes locais a quem as ondas levaram tudo. “Eles tinham perdido tudo, famílias, casas, negócios e estavam a pedir-nos perdão e para que voltássemos. Eu fiquei tão sentida, estavam a pedir desculpa por algo que eles não tinham culpa”, conta.

Quando chegou a Portugal, o desejo era só um: o de um abraço. “Só queria dar um abraço aos meus pais, e à minha irmã, só queria dizer: ‘estou bem, estou aqui, estou convosco’. Abraçar é um carinho diferente”, sublinha. 

O passado não dita o presente

Para C. Bastos, águas passadas não movem moinhos. Alguns anos depois, a família cumpriu a promessa feita aos habitantes locais e regressou à Tailândia para contribuir para a revitalização do turismo. “Foi a forma que encontramos para os ajudar de alguma forma, porque eles perderam tudo”, sublinha. 

Apesar de terem presenciado um cenário desesperante, retiram da experiência uma lição: “Por cada experiência vivida, há sempre duas opções: ou desiste e esquece ou aprende. Essa experiência ou a destrói ou a fortalece. Se sou aquilo que sou hoje, foi por tudo aquilo que passei. Tento que as minhas experiências mais desagradáveis me fortaleçam”, salienta. O resto da família também conseguiu superar esta experiência. Depois de um cenário catastrófico, consolida-se o pensamento de que “não sofremos tanto como muita gente, estávamos os quatro lá e viemos os quatro embora”. 

Artigo editado por Filipa Silva