A América Latina pode estar a entrar numa nova fase política com as consequentes vitórias de candidatos de esquerda. A mais recente foi a de Gabriel Boric. O ex-líder estudantil venceu, em dezembro de 2021, a segunda volta das eleições presidenciais no Chile, com 55,9% dos votos contra 44,1% do candidato José Antonio Kast.

Boric tomou posse na passada sexta-feira (11), tornando-se no mais jovem e mais votado presidente da história do Chile. Nascido em Punta Arenas, candidatou-se com apenas 35 anos – idade mínima exigida para concorrer às eleições presidenciais – à sucessão de Sebastián Piñera. O novo presidente conta com o apoio do Partido Comunista e da Frente Ampla, com os quais formou a coligação “Aprovo Dignidade”.

De notar que o presidente chileno ficou atrás de Kast na primeira volta, conquistando 25,82% dos votos, menos 2,09% do que o candidato de extrema-direita. Há trinta anos que um candidato não conseguia vencer, depois de alcançar o segundo lugar na primeira volta.

Ao JPN, Manuel Loff, professor de História na Universidade do Porto, classifica a esquerda do Chile como a “mais clássica”, sendo “aquela que, com a eleição de Boric recentemente, converte numa forte componente do Partido Comunista chileno dentro da coligação que passou agora a governar o Chile e que conseguiu ganhar a eleição presidencial, para grande surpresa à escala internacional e dos próprios chilenos”.

Para Manuel Loff, a esquerda chilena é o caso “mais rigoroso e mais criativo de todas essas experiências da ‘maré rosa’”, tendo em conta que é a que “abre mais perspetivas de futuro para a renovação daquilo que tem sido o progressismo latino-americano”.

Um futuro “desafiante” para Boric enquanto presidente

No entanto, Gabriel Boric terá de unir forças para superar um conjunto de desafios, com os quais o Chile se tem deparado. Primeiramente, o presidente chileno terá de gerir uma crise económica no país, que pode agravar-se com o conflito entre a Ucrânia e a Rússia.

A par da crise económica, Boric terá de lidar com uma situação de violência na conhecida “macrozona sul”, marcada por incêndios e várias mortes. O conflito mapuche agravou-se nos últimos tempos e, nesse sentido, o ex-presidente, Sebastián Piñera, implementou o estado de emergência. O atual presidente chileno, juntamente com os ministros, já revelou, de acordo com a BBC News, que vão tentar conversar com o povo mapuche, bem como com os restantes atores envolvidos.

Além disso, existe ainda uma crise migratória, especialmente, na zona norte, que contribuiu para a existência de pessoas clandestinas no país. De acordo com a organização Jesuit Migrant Service, citada pelo mesmo órgão de comunicação social, o número de imigrantes aumentou de 305 mil para 1 milhão e 500 mil.

Em resultado da pandemia, o presidente precisa de retomar o ensino presencial no país e lidar com o aumento dos casos, nos últimos tempos. Durante o mandato de Sebastián Piñera, a chefe do Interior, Izkia Siches, ocupou o cargo de presidente da organização sindical da Faculdade de Medicina do Chile entre 2017 e 2021, e refutou, várias vezes, as medidas adotadas pelo governo. Izkia Siches será agora responsável pelas propostas e medidas que visem combater a situação pandémica.

Por fim, existe um processo, cujo sucesso é essencial para o futuro do presidente. Depois dos protestos de outubro de 2019, Boric, que foi deputado, juntamente com outros políticos, avançou com um acordo para alterar a Constituição. Tendo em conta que prosseguiu sem o apoio da Convergência Social, partido ao qual pertencia, é necessário que tenha uma resolução favorável para receber o apoio da população segundo alguns especialistas.

De acordo com um doutor em filosofia política e professor na Escola de Governo da Universidade Adolfo Ibáñez, “grande parte do capital político do novo presidente está em jogo neste processo”. Cristóbal Bellolio disse à BBC Mundo que é necessário “que a aprovação no plebiscito de saída seja a mais contundente possível para que não haja um setor inteiro da sociedade excluído”.

Num plebiscito, que aconteceu em outubro de 2020, a maioria votou a favor de uma nova Constituição, sendo que a Convenção, responsável pela sua redação, começou a fazê-lo em julho de 2021. A Assembleia, que está encarregue da redação, deverá revelá-la em julho, sendo depois encaminhada para um plebiscito de saída para ser aprovada.

Uma nova “pink tide” pode estar a surgir

A esquerda na América Latina atingiu um período áureo no início dos anos 2000, mas o apoio diminuiu nos últimos dez anos, por exemplo, com as vitórias da direita no Uruguai e no Equador, bem como com a saída de Dilma Rousseff da presidência brasileira. No entanto, as mais recentes eleições têm contribuído para um renascimento da esquerda latino-americana.

De acordo com Manuel Loff, podemos, assim, estar perante uma nova ‘pink tide (‘maré rosa’, em tradução livre), que diz respeito à “recuperação política e eleitoral de uma esquerda que, contudo, é muito diversificada ou é relativamente diversificada nos seus vários casos”.

No entanto, o panorama político pode alterar-se ainda no Brasil e na Colômbia, tendo em conta que a população vai às urnas, em outubro e maio, respetivamente. Este cenário mostra-se possível visto que, no Brasil, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está à frente nas intenções de voto, de acordo com uma pesquisa da Ipespe, citada pela CNN Brasil. Também na Colômbia, o candidato da esquerda Gustavo Petro tem conquistado os eleitores, tendo em conta que venceu, no último domingo (13), nas primárias.

A eleição de um presidente de esquerda na Colômbia poderá ser complicada, tendo em conta que, de acordo com o docente, “é um dos casos mais difíceis para a esquerda, é o único país onde, historicamente, a esquerda nunca governou”.

Quanto ao Brasil, Manuel Loff afirmou, em entrevista ao JPN, que “se não houver – mas é um ‘se’ muito forte – nenhuma interferência direta por parte do governo bolsonarista a impedir a realização de eleições ou, posteriormente, à sua realização criar uma situação semelhante à que Trump tentou criar nos EUA para impedir a tomada de posse do presidente Biden e para contestar os resultados das eleições, o mais provável é que Lula da Silva retome o poder”.

No entanto, o professor não integra o candidato a presidente do Brasil no campo da esquerda, porque, no caso de ser eleito, deverá formar uma coligação que une o maior partido de centro-esquerda, o Partido dos Trabalhadores, e o maior partido da direita, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

De notar que a ‘maré rosa’ inicial surgiu com o apoio dos EUA, que preferem governos de direita, visto que “suspeitam sistematicamente daqueles que na América Latina constroem os seus projetos políticos em emancipação dos EUA”.  Portanto, procurariam “interferir de forma a impedir que qualquer viragem política dos países possa pôr em causa os seus interesses na América Latina”.

Neste sentido, o professor considera que existe a possibilidade de “antes da eleição, as direitas colombianas arranjam uma solução para o impedir ou, depois da eleição, arranjam uma solução para o destabilizar”. Por exemplo, o presidente peruano Pedro Castillo, eleito no ano passado, tem se deparado com  inúmeros momentos de destabilização provocados pelas forças da oposição.

Na galeria de mapas seguinte, é possível perceber de que forma evoluiu o espectro político – direita ou esquerda – na América Latina entre 2001 e 2021. Para efeitos de classificação, os presidentes de centro direita ou centro esquerda foram integrados nas categorias “direita” e “esquerda”. Clique na seta para chegar até ao mapa de 2021.

As semelhanças e as diferenças que separam a esquerda atual da “maré rosa” inicial

A esquerda, que está a crescer na América Latina, partilha entre si o “discurso de emancipação da tutela norte-americana e a construção de sociedades mais justas”, sendo assim “um nacionalismo emancipalista”. De acordo com o professor de História, os desafios que a atual ‘maré rosa’ tem de enfrentar “mantêm-se os de sempre”, nomeadamente a desigualdade de rendimentos, níveis elevados de pobreza, a construção de um estado de bem estar social e discutir os direitos dos povos originários.

A vitória de Boric juntou-se à dos candidatos Alberto Fernández, na Argentina; Andrés Manuel López Obrador, no México; e Luís Arce, na Bolívia – eleitos entre 2018 e 2020. Pedro Castillo, no Peru, e Xiomara Castro, nas Honduras, também integram aquela que é conhecida como “pink tide”.

Além disso, é importante referir que, em países como o México e Peru, a esquerda conquistou o eleitorado pela primeira vez na história moderna do país e, na Bolívia e Honduras, os governos de esquerda chegaram novamente ao poder, depois da sua saída em resultado de golpes de estado.

Porém, a segunda maré rosa apresenta algumas diferenças relativamente à maré inicial, que teve início em 1999.

Em primeiro lugar, os presidentes de esquerda, no início dos anos 2000, venceram num período em que se verificava uma elevada produção de bens e, ao mesmo tempo, um aumento gradual dos preços em vários setores, incluindo a energia e alimentação. A conjuntura económica da época ajudou os líderes no cumprimento dos seus programas e promessas. Enquanto que os governantes e candidatos atuais têm de lidar com os efeitos negativos da pandemia, que afetou e vai condicionar a economia dos países. Além disso, têm de responder às exigências de um eleitorado que procura mais bem-estar.

As duas gerações diferenciam-se, também, no sistema político em que atuam. Os antecedentes governavam com a ajuda de maiorias legislativas, o que facilitava a ratificação de projetos de lei e outros programas. Já os mais novos têm de trabalhar com uma maior divisão política ou com maiorias quase inexistentes.

O professor reforça que “os Congressos podem não ratificar e não apoiar as políticas dos presidentes que foram eleitos”. Manuel Loff acrescenta ainda que “nunca houve, historicamente, uma maioria de esquerda no Congresso brasileiro”.

Por exemplo, no Chile, apenas cerca de 20% dos assentos do Congresso pertencem à esquerda; no Peru, o partido de Pedro Castillo, Perú Libre, juntamente com o Nuevo Perú não conseguiram formar um governo maioritário – menos de um terço dos deputados no Congresso – no dia em que o presidente foi eleito.

Depois a nova esquerda tem de dividir o panorama político com uma direita rejuvenescida e que conquistou o eleitorado ao longo dos últimos anos, ao contrário da direita do início do milénio que se caracterizava pela falta de ideias. Além disso, os líderes de esquerda têm de lidar com um sistema judiciário que foi reconfigurado após a queda da maré rosa inicial. Atualmente, o sistema está destinado a prejudicar os oponentes e para beneficiar quem está no poder.

Tendo em conta as diferenças entre as duas gerações e a conjetura atual, o docente acredita que é necessário “perceber porque é que fracassou a primeira e como é que se pode impedir que a segunda não fracasse”.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha