A adesão é apoiada pelos bósnios e croatas da Federação da Bósnia-Herzegovina, mas é contestada pelos sérvios-bósnios da República Srpska. Em entrevista ao JPN, o eurodeputado Paulo Rangel fala do ponto de situação da região e afirma que, depois da Ucrânia, o país dos Balcãs é a zona mais problemática da Europa.

O embaixador russo na Bósnia-Herzegovina, Igor Kalabukhov, declarou que, se o país decidir ser membro da NATO ou de qualquer aliança, a Rússia vai responder ao “ato hostil”. “O exemplo da Ucrânia mostra o que esperamos. Caso haja alguma ameaça, responderemos”, afirmou Kalabukhov à emissora bósnia FTV. A discordância entre os povos formadores da Bósnia acerca da entrada na organização é mais um episódio dos vários que demonstram as desavenças políticas existentes na região e que ameaçam a união territorial.   

A Bósnia-Herzegovina tenciona entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa) e na União Europeia (UE) há muitos anos. Contudo, ambas as alianças alegam que o país deve fazer reformas democráticas e de defesa “para cumprir as suas aspirações da NATO e da UE e para se tornar um Estado democrático independente que funcione bem”, referiram as organizações depois de uma reunião em agosto do ano passado

“Continuamos a pedir que estas reformas sejam implementadas com a maior brevidade possível, porque só um sinal claro e positivo de que a Bósnia-Herzegovina está determinada a levar por diante as reformas necessárias no seu caminho europeu, levará o país à candidatura, aproximando-o da União Europeia”, referiu Josep Borrell, Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, na sua última visita à Bósnia-Herzegovina, há uma semana. 

Dos seis países que constituem os Balcãs Ocidentais, a Bósnia é o único que não faz parte de nenhuma das organizações. Ainda a 9 de março, a ministra bósnia dos Negócios Estrangeiros, Bisera Turkovic, pediu a aceleração da aceitação do pedido de candidatura do país à UE, uma vez que isso “ajudaria a garantir a estabilidade” na Bósnia-Herzegovina. 

Sobre a atual situação nos Balcãs, o eurodeputado e relator permanente do Parlamento Europeu para a Bósnia-Herzegovina, Paulo Rangel, confessa que vê a situação atual com “bastante ceticismo, reserva, preocupação” e acredita que “as posições são muito irreconciliáveis”“Tirando o território ucraniano e eventualmente algumas zonas da fronteira com países da NATO, a zona mais sensível, mais problemática atualmente é a Bósnia-Herzegovina – porque é aquela onde a influência russa se pode vir a manifestar de modo mais evidente”, afirma o eurodeputado português.

Devido ao conflito russo-ucraniano, diversos pedidos de adesão foram feitos ao bloco europeu e agora, além da Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia entraram na lista de espera. O eurodeputado referiu que, apesar da enorme pressão dentro da UE para acelerar o processo de dar à Ucrânia o estatuto de país candidato, a decisão pode ser arriscada. 

“A partir do momento em que existe a ideia de que se pode dar o estatuto de candidato com relativa urgência à Ucrânia, aqueles países que estão na fila de espera há muito – que é o caso da Bósnia-Herzegovina – estão obviamente em grande preocupação”, assinalou. “Há um risco muito grande de criarmos uma enorme decepção na Bósnia por estarmos a dar o estatuto de candidatos a certos países e colocá-la numa fila de espera interminável”.

O que impede a entrada da Bósnia nas alianças?

Depois de ter sido palco do conflito armado europeu mais longo desde a Segunda Guerra Mundial, a Bósnia-Herzegovina experiencia atualmente obstáculos políticos que têm origem tanto nas divergências históricas entre os três povos que compõem o território, como no complexo modelo governamental que administra a região

Desde 1995, o país está dividido em duas entidades: a Federação Bósnia-Herzegovina – habitada por bosniaks (maioritariamente muçulmanos) e croatas – e a República Srpska – habitada pelos sérvios. Apesar de estarem na dependência de um governo central, cada entidade possui os seus próprios governantes, constituições e parlamentos. O Estado central, por outro lado, é presidido por um colégio tripartido constituído por um presidente sérvio – eleito pela República –,  um croata e um bosniak – eleitos pela Federação. 

Contudo, desde o ano passado, o parlamento da República Srpska já aprovou 140 leis, que preveem a retirada de toda a representação política sérvia das instituições centrais. Para a União Europeia, as leis aprovadas são “uma violação inaceitável da ordem constitucional e legal da Bósnia-Herzegovina”.   

“A UE insta os dirigentes da Bósnia-Herzegovina, em particular os dirigentes da República Srpska, a pôr fim às medidas de escalada e, em vez disso, a assegurar que seja retomado um diálogo sério nas instituições do Estado, para abordar todas as questões preocupantes”, escreve o porta-voz do Serviço Europeu para a Ação Externa – instituição diplomática da União Europeia. 

Dentre as novas leis destacam-se a criação de um exército próprio, a implementação de uma taxa de impostos autónoma, além da formação de um Tribunal Constitucional separado do central. Quanto a esta última, Paulo Rangel declara que “não há dúvida de que a criação dessa entidade judicial é o verdadeiro desafio que põe em causa o processo político constitucional da Bósnia-Herzegovina e é de uma gravidade imensa”. 

“Esta é uma situação muito preocupante. As leis aprovadas são claramente inconstitucionais e visam uma desagregação do país e eventual entrada numa situação de pré-guerra ou de guerra – que nos faria recuar aos anos 90 e à tragédia brutal que se fez sentir sobre os Balcãs, e em particular sobre os povos da Bósnia”, expressa o eurodeputado. 

A crise política entre as duas entidades intensificou-se depois de os líderes políticos da República Srpska reagirem à decisão do antigo Alto Representante internacional, Valentin Inzko, que impôs emendas constitucionais as quais proíbem a negação, banalização e justificação do genocídio de Srebrenica – no qual 8.000 bosniaks muçulmanos foram mortos por forças sérvias-bósnias. 

Na altura, contrariados com a decisão, os representantes da República Srpska boicotaram as instituições do governo central e abandonaram os cargos públicos que ocupavam. O presidente sérvio-bósnio, Milorad Dodik, afirmou que o genocídio “não aconteceu” e recusou-se a trabalhar com “instituições bosniaks” desde que a emenda foi instituída.

“Acreditamos que não há condições para os representantes sérvios trabalharem nas instituições conjuntas da Bósnia – na presidência, na Assembleia Parlamentar e no Conselho de Ministros”, disse Nedeljko Čubrilović, presidente Assembleia Nacional da República Srpska, em conferência de imprensa. 

Do outro lado, a Federação Bósnia-Herzegovina enfrenta uma disparidade na população eleitoral – tanto os bosniaks quanto os croatas podem ir às urnas votar nos presidentes bósnio e croata, sendo que os muçulmanos correspondem a 70% dos habitantes da federação. Os croatas veem, assim, ameaçada a sua representatividade o que os levou a propor uma reforma eleitoral, tendo já em vista as eleições legislativas que estão marcadas para outubro. 

Paulo Rangel admite que “existe uma grande tensão entre os croatas e os muçulmanos, que tem levado a uma disfuncionalidade da própria Federação” e pensa que, apesar dos avanços, “não vejo vontade política para dar o passo final”. “A lei eleitoral é indispensável para haver eleições em outubro – embora não falte quem defenda que se façam as eleições mesmo que não haja essa revisão -, mas se não houver essa revisão a parte croata ameaça boicotar as eleições”, alerta o relator. 

Já Borrell reiterou que é preciso “ter discussões animadas – discussões honestas e francas – para conseguirmos acordos. Porque é disso que o povo da Bósnia-Herzegovina precisa para continuar a ser um país com duas entidades e três pessoas constituintes. Isto tem de ser salvaguardado e todos têm de ter a oportunidade de participar na vida política deste país em pé de igualdade”.

República Srpska: o quintal de Putin

Segundo o eurodeputado português, a invasão russa da Ucrânia alterou toda a geopolítica europeia e mundial, e teve impacto direto no contexto bósnio. Isso porque “existe no território da República Srpska, tal como na Sérvia, uma ligação tradicional dos sérvios e também dos sérvios-bósnios à Rússia”

“Há relações históricas, civilizacionais, religiosas fortíssimas entre a Rússia e os sérvios-bósnios”, explicou Paulo Rangel. “Portanto, enquanto a Bósnia-Herzegovina se juntou à condenação da União Europeia e da comunidade internacional à agressão russa, a República Srpska não. Em Banja Luka [capital da República Srpska] nós temos manifestações pró-Rússia muito fortes, exatamente o contrário do que se passa em todo o resto da Europa, e por isso a interferência russa do regime de Putin no conflito, ou nas tensões que existem na Bósnia-Herzegovina é evidente”. 

Ao rejeitar publicamente as sanções internacionais, o presidente sérvio-bósnio não escondeu a sua amizade com o homólogo russo e declarou que os protestos ocidentais não o vão dissuadir. “Quando vou a Putin, não existem pedidos. Ele apenas diz: ’em que posso ajudar?’. O que quer que eu tenha discutido com ele, nunca fui enganado. Não sei mais em que basear a confiança, senão isso”, declarou Dodik ao jornal “The Guardian”.

A EUFOR reforçou o seu contingente na Bósnia. Foto: EUFOR

Em resposta aos posicionamentos da República Srpska, a EUFOR – a força operacional da União Europeia na Bósnia-Herzegovina – aumentou o seu contingente para 1.100 militares como medida de precaução, uma vez que há “ameaças sérias à segurança no ambiente da Bósnia-Herzegovina”, segundo o Alto Representante europeu.

“O impacto da guerra na Ucrânia não pode ser sobrevalorizado. Afetará o nosso pensamento sobre segurança, sobre investimentos em defesa, a nossa resiliência, o nosso suprimento de energia e a nossa segurança alimentar. As ondas de choque da guerra ucraniana, da invasão da Ucrânia, vão perturbar a economia mundial e criar problemas que vão além do território ucraniano. E isso significa que também a estabilidade e a segurança dos Balcãs Ocidentais podem ser afetadas, e consideramos isso mais importante hoje do que nunca”, exprimiu o político espanhol aos jornalistas na quarta-feira, 16.

Além disso, os Estados Unidos, juntamente com a União Europeia, aprovaram sanções a Milorad Dodik – que é considerado pelo país como ameaça à estabilidade e integridade territorial da Bósnia-Herzegovina. No entanto, o eurodeputado português reconhece que, no que diz respeito às medidas punitivas, os Estados Unidos foram muito mais longe que a União Europeia.

Artigo editado por Filipa Silva