O concurso iniciado em 2020 tem sido alvo de discórdia entre os diversos intervenientes. As empresas vencedoras aguardam pelo início da operação e as atuais operadoras continuam a contestar a viabilidade do concurso. Os motoristas estão preocupados com a indefinição do seu futuro.

Iniciado em 2020, o concurso que trará uma mudança na operação de transportes públicos na Área Metropolitana do Porto (AMP) tem sido alvo de discórdia entre os diversos intervenientes. Com a saída da grande maioria das atuais empresas e a entrada de novas, a renovação das condições do serviço será acompanhada por uma alteração do panorama laboral da área, com as novas empresas a circular a partir de 2023.

Além da perda significativa de rendimentos para as atuais operadoras, os motoristas destas empresas não sabem como será o seu futuro.

Feirense está “preparada” para o início da operação

De acordo com os resultados do concurso, das firmas que atualmente transportam passageiros em serviço urbano dentro do espaço da Área Metropolitana do Porto (AMP), será apenas uma a manter a operação – a Auto Viação Feirense – ainda que em diferentes moldes. A atividade da empresa centra-se atualmente em Gaia, Espinho, Santa Maria da Feira, São João da Madeira e Arouca, mas o lote que venceu, no consórcio formado com a empresa Bus On Tour, só inclui os dois primeiros municípios mencionados. Ainda assim, o responsável da Feirense adianta que serão estabelecidas parcerias fora do lote que venceu.

A Auto Viação Feirense foi uma das empresas vencedoras do concurso. Foto: João Sousa/Flickr Foto: João Sousa/Flickr

O administrador da empresa, Gabriel Couto, começa por enumerar o que vai mudar com a nova operação: “a localização das carreiras, a nossa forma de lidar tanto com as autoridades como com o público, ou seja, o nível de exigência que vamos ter perante os utentes e mesmo as autoridades, neste caso, a AMP”. O empresário lembra ainda o aumento da dimensão da rede e da frota, que terá de ser renovada. Recorde-se que o caderno de encargos do concurso prevê que os veículos sejam mais ecológicos e que o limite de idade média dos mesmos deve ser gradualmente diminuído, de 14 para oito anos.

A modernização da frota implica um investimento financeiro considerável pela parte da Feirense. A empresa candidatou-se ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para financiar a compra de autocarros elétricos e aguarda pela aprovação, pelo que ainda não é certo qual será o investimento a ser feito. Porém, Gabriel Couto afirma que será maior caso a candidatura seja aprovada: “o PRR paga-nos a diferença de um autocarro novo elétrico para um autocarro novo a gasóleo. Na prática, nós temos que pagar, comprar um autocarro a gasóleo e é-me entregue um elétrico”.

Para o empresário, os atrasos constantes no concurso não têm provocado grandes constrangimentos, até porque a empresa já tem “tudo planeado”. Tendo em conta a experiência tida na Área Metropolitana de Lisboa (AML), onde o período de transição de 10 meses foi “muito curto”, Gabriel Couto pensa que os seis meses dados pela AMP são um prazo “bastante agressivo”.

No entanto, para o administrador da Feirense, quem está a sair mais prejudicado com o atraso são o ambiente e os utentes, impedidos de usufruir das melhorias que a nova concessão poderá proporcionar: “vai haver um choque ambiental com esta nova concessão (…) e um choque em termos de qualidade, de prestação de serviço ao público, que estão em suspenso”, refere.

Quanto à contestação judicial que o processo enfrenta, o administrador da Feirense considera que “todas as entidades têm direito a fazer valer os seus direitos”, mas acredita que um retrocesso ou a anulação do concurso “não faz qualquer sentido”, até porque os “problemas que foram levantados já foram resolvidos pelo tribunal no passado”. No entanto, Gabriel Couto reitera não ter certeza quanto ao desfecho: “nos tribunais, nós nunca sabemos”.

Atuais operadoras não comentam, mas discordam

Ao longo de todo o concurso, foram vários os processos que deram entrada nas instâncias judiciais. A grande maioria foi interposta pelas atuais operadoras de transporte público na AMP, que apontam irregularidades no caderno de encargos do concurso. A título de exemplo, na passada semana, oito destas empresas avançaram com três novas ações judiciais contra o procedimento.

As principais empresas que operam atualmente:

– A Nogueira da Costa: Maia
– Auto Viação Feirense: Gaia, Espinho, Santa Maria da Feira, São João da Madeira e Arouca
– Auto Viação Pacense: Santo Tirso e Trofa
– ETG [Gondomarense]: Gondomar
– Espírito Santo: Gaia
– Litoral Norte: Póvoa de Varzim e Vila do Conde
– Maia Transportes: Maia
– “Maré” (VIAMove): Matosinhos
– MGC Transportes: Gaia
– UTC: Gaia, Espinho e Santa Maria da Feira
– Transdev: Póvoa de Varzim, Paredes, Santo Tirso, Trofa, Santa Maria da Feira, São João da Madeira, Arouca, Oliveira de Azeméis e Vale de Cambra
– Valpi: Valongo e Paredes

De acordo com a informação disponível no portal Citius, citada pelo “Jornal de Notícias”, a Resende e a Barraqueiro, empresas que constituem o consórcio VIAMove/Maré (responsável pela operação no concelho de Matosinhos), interpuseram processo de contencioso pré-contratual, que que deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a 11 de março. Três dias depois (segunda-feira, 14), a mesma instância judicial recebeu dois novos processos: segundo o mesmo jornal, um foi interposto pela Empresa de Transportes Gondomarense, em conjunto com a Valpi e a Pacense, com quem concorreu ao lote 1; enquanto o outro é da autoria das três empresas que atualmente operam em Gaia: União de Transportes dos Carvalhos (UTC), Espírito Santo e MGC. Nos três processos, a AMP é o réu.

É também de notar que a maioria destas empresas realiza serviço ocasional de alugueres, e algumas têm ainda outros serviços não só na área dos passageiros, como as carreiras intercidades e os expressos, mas também noutras áreas, como o transporte de mercadorias. No entanto, o serviço de transporte urbano de passageiros representa uma grande fatia do lucro da operação das empresas, sobretudo desde a pandemia, em que a suspensão de atividades escolares e a quebra do turismo contribuíram para a diminuição da procura pelo serviço ocasional. Neste sentido, com o final das concessões, muitas das empresas excluídas da operação por via do concurso podem vir a enfrentar situações financeiramente difíceis.

A Gondomarense é a empresa responsável pela operação dos transportes públicos em Gondomar. Foto: João Sousa/Flickr Foto: João Sousa/Flickr

O JPN contactou a Resende, a Gondomarense, a Valpi e a UTC, para obter reações e perceber qual é a perspetiva destas empresas, que agora perdem o direito a prestar o serviço de transportes na AMP. As duas primeiras consideraram ser “prematuro” prestar declarações sobre o tema, na medida em que o processo contratual ainda não terminou.

O JPN tentou também obter uma reação da Associação Nacional de Transportes de Passageiros (ANTROP), dada a sua representação tanto das empresas portuguesas vencedoras do concurso, bem como das que saem agora de cena, mas não obteve resposta até ao fecho deste artigo.

Motoristas receosos com futuro indefinido

A mudança de empresas operadoras não se traduzirá apenas em questões técnicas, mas também nos recursos humanos. Os motoristas das atuais empresas, muitos com longas carreiras, arriscam-se a perder regalias ou até mesmo o emprego. No entanto, existe também a opinião contrária, no sentido em que o mercado de trabalho carece destes profissionais.

Os sindicatos alertam para a desvalorização que está a ser feita em torno desta questão, que está a deixar os motoristas numa situação de incerteza. Jorge Costa, presidente do Sindicato Nacional dos Motoristas e Outros Trabalhadores (SNMOT), critica a falta de informação relativa a este aspeto: “parece-nos que será a situação mais importante e que passou ao lado, quer da AMP, quer também de quem foi ao concurso [empresas]”. O sindicalista afirma ao JPN que a estrutura está a “tentar, de alguma forma, perceber o que é que se poderá passar no futuro”.

Se a integração nas novas empresas se vier a tornar realidade, os motoristas temem perder os benefícios laborais a que têm direito, em função do tempo de serviço que têm na respetiva empresa. Os sindicatos exigem que, na transferência de trabalhadores entre empresas, que estes sejam reconhecidos, nomeadamente em termos salariais.

As empresas de Gaia, como a MGC e a Espírito Santo, deixam de operar os transportes públicos do concelho. Foto: KK70088/Flickr KK70088/Flickr

Vítor Teixeira, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes de Portugal (STTAMP), explica o risco de não existir uma salvaguarda oficial: “não sabemos como serão feitos os contratos. Mesmo que seja um contrato efetivo, a antiguidade é zero, ou seja, a empresa, por qualquer motivo que não estiver satisfeita com aquele trabalhador, despede-o e o grau de indemnização é baixíssimo.”

Os dois dirigentes sindicais expressam a preocupação manifestada pelos colegas motoristas, que não sabem com o que contarão no futuro. Vítor Teixeira fala no receio em “ter que lutar, junto dos tribunais, para reclamarem indemnizações, e depois estar ou não sujeito à contratação das novas empresas com as condições que elas vierem a assumir no momento”, e considera que a classe se encontra perante “uma situação de lei da oferta e da procura terceiro-mundista”, na qual “não se salvaguarda os interesses de ninguém”.

Jorge Costa afirma ao JPN que os colegas “serão certamente os mais penalizados com toda esta situação”. O presidente do SNMOT revela que, de acordo com o feedback que vai tendo dos motoristas, estes “não vão querer sair das atuais empresas”, e lembra ainda que os trabalhadores têm o direito de recusar a transferência e, deste modo, perder o emprego. Perante isto, o sindicalista prevê “uma séria complicação jurídica” no futuro, à semelhança do que tem acontecido noutros pontos do país.

Do lado das empresas, o administrador da Feirense, Gabriel Couto, afasta um cenário de desemprego para a classe dos motoristas, na medida em que os atuais não cobrem na totalidade as necessidades das firmas: “nós vamos ter é a dificuldade contrária, que é conseguir ter e contratar mão de obra suficiente para o nosso serviço (…) porque os motoristas das antigas concessões não são suficientes”. O empresário dá o exemplo da experiência que está a ter na AML, onde “depois da transferência do pessoal [das anteriores operadoras], ainda nos faltam 80 motoristas”. Gabriel Couto fala ainda de uma mão de obra mais qualificada, como consequência da evolução tecnológica que a frota de autocarros vai sofrer.

Ao contrário do que teme relativamente à manutenção dos direitos laborais, Vítor Teixeira acredita que as empresas vão integrar os atuais motoristas. O dirigente do STTAMP reforça que “neste momento o que existe no mercado é uma falta muito grande de motoristas”. Já Jorge Costa, do SNMOT, considera que as empresas que vierem a assumir a nova operação não precisam de contratar novos motoristas, porque “se tudo isto for tratado com tempo e horas, os trabalhadores serão transferidos automaticamente”.

No entanto, reforça que tudo dependerá da manutenção ou não dos benefícios com os quais os trabalhadores contam atualmente: “um trabalhador que ganhe 850 ou 900€, em função da sua antiguidade, não vai aceitar ser contratado para ganhar 800€”.

Veículos com mais condições e mais linhas a caminho

A rede prevê um total de 439 linhas. Infografia: Sara Fernandes Santos/JPN

Depois de dois anos marcados por vários avanços e recuos, este concurso, responsável pela substituição das concessões do transporte público de passageiros na AMP, tem a última fase antes da operacionalização pendente por estas negociações. As novas operadoras, que devem incluir uma frota com melhores condições, mais indicações aos utentes e preocupações ambientais em primeiro plano, só devem iniciar funções em março de 2023.

Para a atribuição das concessões, os municípios foram divididos em cinco lotes, com a exclusão do concelho do Porto, onde a STCP é o operador exclusivo (ver mapa). Uma mesma empresa poderia ter-se candidatado aos cinco lotes, mas só teria a possibilidade de operar apenas num deles.

Apesar de o número poder vir a ser reduzido, em face de possíveis ajustamentos que permitam diminuir os encargos financeiros, a rede prevê um total de 439 linhas (ver mapa). Foi desenhada com base na que existe atualmente, mas também a pensar numa maior abrangência territorial. O tarifário do Andante será vigente em toda a extensão da rede.

Os lotes foram atribuídos a três empresas portuguesas – a Auto Viação do Minho, a Barraquense e a Bus On Tour – e a duas espanholas: Alsa e Xerpa Mobility. Veja a distribuição destas empresas pela AMP no mapa ao lado.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha