A Casa do Design de Matosinhos recebe a exposição Portugal Pop, que coloca em retrospetiva "A Moda em Português" entre 1970 e 2020, com 180 peças de dezenas de criadores.

Inaugurada a 19 março, a exposição Portugal Pop, na Casa do Design de Matosinhos, apresenta uma seleção de 180 peças, de mais de 35 designers, para contar a história da moda portuguesa nos últimos 50 anos e o seu valor cultural, que passa pela música e o espetáculo. Apresentada no âmbito do programa MUDE FORA DE PORTAS, “A Moda em Português 1970–2020” estará aberta para vista de 19 de março a 19 de setembro.

Esta exposição, com curadoria de Bárbara Coutinho, diretora do MUDE (Museu do Design e da Moda), propõe uma reflexão sobre as relações entre a cultura popular e a erudita, o cosmopolitismo e o nacionalismo, a urbanidade e o mundo rural, a tradição e a visão de futuro das novas gerações.

Foto: Bruno de Azevedo

A proposta de Bárbara Coutinho pretende revelar múltiplas formas como o património material e imaterial, as técnicas oficinais e os saberes, e também os conceitos de lugar, território, portugalidade, pertença e memória, se refletem no trabalho de quase 40 designers de moda. Conta ainda com peças vestidas por Amália Rodrigues, António Variações, Doce, Heróis do Mar, The Gift ou Conan Osíris.

A exposição começa imediatamente após o átrio de entrada da Casa do Design de Matosinhos, na rampa, onde está exposto o primeiro coordenado, com uma camisola preta em que se pode ler: “Não é sonho nenhum”, escrito a branco. Portugal Pop está dividido em três partes principais: em primeiro, a memória coletiva e identidade nacional (temas, arquétipos e símbolos); em segundo, territórios pessoais (a intersubjetividade na primeira pessoa do singular); em terceiro, Eco-lógico (antropologia de lugares, matérias e saberes).

Bárbara Coutinho visa refletir, ao longo desta exposição, acerca da densidade da cultura portuguesa, sobre conceitos como a cultura “pop versus popular”. “Vamos ver se há assim tanta diferença”, convida a curadora. Para tal, dá o exemplo do cantor de “Estou Além”: “António Variações é de facto um artista popular, mas ele transformou-se nesta imagem clara de um artista da cultura pop”. O convite é “olhar sobre o que é a cultura de moda em Portugal ao fim destes 50 anos”, como uma mais-valia económica e social.

António Variações e Amália Rodrigues

Um dos primeiros núcleos de Portugal Pop, que pretende exaltar a memória e identidade coletiva, é integrado por conjuntos usados por dois dos maiores artistas portugueses, Amália Rodrigues e António Variações.

Através de alguns dos conjuntos usados por Amália, o objetivo é tentar perceber a identidade da artista que Bárbara Coutinho designa como “a primeira estrela pop portuguesa com esta projeção à escala planetária”, com base na sua imagem. A exposição lança, neste momento, a questão: o preto é a cor do Fado? Da autoria da estilista Maria-Thereza Mimoso, pioneira na moda que levou Portugal a Paris numa coleção que apresentou na capital francesa em 1973, os coordenados que foram vestidos pela fadista convidam à reflexão.

Apesar dos trajes negros, em que um deles é inspirado na capa tradicional de Coimbra, um outro inspirado nas noivas do Minho é mais colorido. Amália vestiu-os enquanto percorreu o mundo cantando a sua “Estranha Forma de Vida”.

“Há uma reinvenção clara da portugalidade com Amália Rodrigues”, reflete a curadora. A fadista é a primeira a cantar grandes poetas portugueses clássicos e contemporâneos. “Chegava-se a dizer ‘como é que esta senhora se atreve a cantar Camões?’”, relembra.

Para introduzir as peças de António Variações, Bárbara Coutinho recorda a famosa citação do cantor, em que diz que é “alguma coisa entre Nova Iorque e Braga”, recordando a sua abertura ao mundo, originalidade e identidade cultural e artística, sem nunca esquecer as suas raízes do Minho. A exposição integra um casaco ao xadrez de Pierre Cardin que o artista português apropriou e celebrizou e um fato desenhado por ele mesmo, bem como peças como uma boina encarnada, óculos de sol e outros acessórios. O cantor de “… O corpo é que paga”, que inicialmente trabalhava como barbeiro, escolhia os tecidos, comprava-os na Feira da Ladra e desenhava algumas das suas peças.

A curadora da exposição justifica a proximidade dos dois artistas portugueses na exposição pelo facto de António Variações sempre dizer que a sua inspiração era Amália Rodrigues.

Portugalidade ao longo dos anos

De seguida, passamos para um maior núcleo de identidade coletiva, que Bárbara Coutinho descreve como sendo “feito de citações, de referências sobre referências” e que fomenta o debate sobre a portugalidade e as influências ao longo dos anos, com peças de autores como Anabela Baldaque ou Nuno Baltazar.

Perante os conjuntos desenhados por Storytailors e utilizados por Sónia Tavares, da banda The Gift, no âmbito do projeto Amália Hoje – que recriou à luz da sonoridade do pop de 2009 temas da ‘diva do Fado’, como “Gaivota”, no ano que marcou uma década desde a sua partida – confessa: “saímos de uma Amália ela própria e trazemos para aqui uma Amália como símbolo”. Storytailors, bastante presentes neste Portugal Pop, caraterizaram-se pela capacidade de imagética em que misturam histórias diversas como contos infantis, ou factos históricos nacionais e internacionais.

Outra das referências mais fortes neste núcleo é Lisboa, que surge com o estilista José Carlos, com aspetos como a calçada portuguesa, ferros forjados, o rio Tejo, os corvos. Sobre o Barroco, destaca outra peça de José Carlos, que vem do Museu do Traje e que recria num vestido o típico azulejo português. A exposição destaca a “música pop cantada em português e dançável” da banda Heróis do Mar, que mistura referências a Portugal com as tendências do pop internacional, enquanto apresenta um dos seus conjuntos.

O capote dos Açores também surge de uma forma contemporânea, numa peça de Filipe Oliveira Baptista, cujo modelo foi usado por Ana Moura no vídeo para a sua canção “Andorinhas”, de 2021.

Doce

A exposição Portugal Pop inclui um núcleo dedicado às Doce, a primeira girlband de Portugal e uma das primeiras do mundo, com peças usadas por Laura Diogo em cinco momentos distintos da banda. As Doce surgiram em 1979 com o single “Amanhã de manhã”, causando espanto com a sua irreverência num Portugal “pobre, conservador, católico e rural”, apenas cinco anos após o fim da ditadura.

A banda constituída por Laura Diogo, Helena Coelho, Teresa Miguel e Fátima Padinha rapidamente se tornou um dos primeiros fenómenos de pop nacional, com êxitos como “Quente, Quente, Quente”, “Ok, Ko” e “Bem Bom”, que representou Portugal no Festival Eurovisão da Canção, em 1982. Nas Doce, é visível o contraste entre o cantar em português e um visual claramente internacional, com referências na dance music.

As peças das Doce selecionadas para a exposição Portugal Pop são um jumpsuit azul espacial com efeito de barbatanas e capa plissada usado na primeira participação do grupo no Festival da Canção de 1980, o primeiro a cores, com o tema homónimo “Doce”, um bustier com parte de cima e ombros trabalhados em lamê com saia e touca de correntes para a atuação de “Ali Baba” no Festival da Canção de 1981, fato futurista azul e prateado com gola e ombros almofadados, saia e cinto para uma atuação de “Choose again” em 1983, um jumpsuit de lantejoulas com capa para “Starlight” na Mostra Internacional da Canção de 1983 e um body prateado de manga comprida com saia de tule trabalhada e ombreira. Toda a estética das Doce foi desenhada por José Carlos.

Um olhar para a atualidade

A terceira parte da exposição destaca obras que evidenciam uma investigação sobre a salvaguarda e atualização de saberes tradicionais. Por exemplo, a marca Béhen de Joana Duarte trabalhou sobre a herança de arraiolos nomeadamente com matérias pré-existentes que reutilizou e estão em exibição em Portugal Pop.

O último núcleo é dedicado a dois artistas portugueses contemporâneos que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção em dois anos recentes, Conan Osíris e Cláudia Pascoal. Nele estão contidas duas peças do estudante de design de comunicação e produção audiovisual que se celebrizou como músico autodidata, nomeadamente o fato verde com máscara que usou para representar Portugal em Tel Avive com a canção “Telemóveis”.

Cláudia Pascoal, que representou o país no ano anterior em Lisboa com “O Jardim”, tem na exposição três peças com que aparece no vídeo para o single “Quase Dança” do seu primeiro álbum “!”, onde afirmou a sua identidade como artista depois de ter interpretado temas de outros autores. No vídeo e nos fatos que usa e que estão expostos em Portugal Pop, traduz as suas origens, misturando várias referências e mantendo as valências geracionais de união, caraterísticas dos ranchos populares portugueses.

Um processo longo e orgânico

Quanto ao processo de montagem da exposição e seleção das peças, Bárbara Coutinho assume ao JPN que foi um processo longo, mas “muito orgânico”. “Eu não saí à partida com um tema fechado para a procura de materiais”, conta a curadora.

A primeira fase do processo consistiu numa imersão naquilo que já conhecia e nas fontes e na bibliografia existentes. A ideia para este conceito surgiu na segunda fase, para a qual avançou com vontade de compreender e olhar com uma perspetiva histórica sobre o nosso design, o que considera “matriz muito nossa no Mude”.

A recolha das peças passou pelo contacto com os diversos designers, porém com alguns desafios. “Houve várias peças que eu procurava, mas que já não existem. Houve outras que foi uma agradável surpresa porque existem ainda”, confessa, admitindo que cada caso foi diferente.

Portugal Pop foi uma construção longa de dois anos de reflexão e investigação. “A preocupação foi sempre mostrar cada autor por si mas sem fazer uma leitura linear ou cronológica, evitando a representação autoral”, diz.

A exposição, que pretende explorar influência das tradições culturais e da identidade coletiva no universo da moda, estará na Casa do Design de Matosinhos até setembro. Depois, a intenção é ir para outros locais. “Ainda é prematuro falar onde. Há a possibilidade de ir para Lisboa e eventualmente para fora, para dois locais”, avança a curadora sobre as hipóteses, que ainda vão ser estudadas.

Vão existir visitas guiadas à exposição, mas Bárbara Coutinho também acredita que a mensagem pode ser transmitida para quem visitar Portugal Pop com o apoio do catálogo, textos de parede e auxílio dos assistentes de sala. “Se o público vier com tempo para fazer uma análise mais demorada a estes núcleos, eu creio que essas informações estão lá”.

Contudo, a curadora admite que não a incomoda que alguém visite a exposição e passe partes à frente. “Quem quiser fazer zapping, vai fazer zapping, mas eu acho que vai encontrar sempre algumas referências. Podem não ser as minhas, mas vão ser as deles”, conclui.

Portugal Pop é uma coprodução entre a Câmara Municipal de Matosinhos, esad-idea (centro de investigação em design e arte da Escola Superior de Artes e Design, ESAD), a Câmara Municipal de Lisboa, o MUDE e a Coleção Francisco Capelo.

Portugal Pop conta com propostas de Alexandra Moura, Alves/Gonçalves, Constança Entrudo, Dino Alves, Helena Cardoso, Filipe Augusto, José Carlos, Luís Buchinho, Maria Gambina, Maria-Thereza Mimoso, Miguel Flor, Nuno Gama ou Storytailors, entre outros criadores.

Artigo editado por Tiago Serra Cunha