O JPN conversou com Ana Farias, coordenadora das campanhas da Amnistia Internacional de Portugal, e Rui Marques, diretor do Instituto Padre António Vieira sobre a mudança do comportamento Europeu diante da crise de refugiados na Ucrânia.

A crise migratória na Ucrânia foi responsável por uma mudança de atitude da Europa sobre a problemática dos refugiados. Países que anteriormente assumiram políticas anti-imigração, mudaram a postura e “abraçam” agora a causa dos refugiados. A mudança é bem-vinda, como nota Ana Farias, da Amnistia Internacional em Portugal, mas “flagrantemente diferente” da assumida face à crise migratória de 2015. Razões económicas e de “proximidade” podem ajudar a justificar a alteração, sem contar que esta é uma situação de guerra recente no continente, que há muito não era confrontado com essa realidade.

A fuga dos ucranianos do seu território já foi considerada como o maior êxodo de refugiados desde da II Guerra Mundial. As Nações Unidas estimam que 3,5 milhões de pessoas saíram do país em menos de um mês. De acordo com os dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a grande maioria tem procurado a Polónia – mais de 2 milhões de pessoas fugiram para aquele país. Com números tão expressivos, os países europeus, numa onda de solidariedade, disponibilizaram os seus recursos com o objetivo de ajudar a retirada de pessoas do território ucraniano. 

Coletivamente, a União Europeia (UE) também tem sido ativa na criação de mecanismos e de apoios que visam mitigar a situação. Ursula Von der Leyen afirmou recentemente que a Comissão Europeia vai disponibilizar uma verba de 500 milhões de euros para lidar com as “consequências humanitárias da tragédia no país e para os refugiados.” Von der Leyen disse ainda que existe a possibilidade de o valor superar um bilião de euros.

Diante da emergente e preocupante situação na Ucrânia, os países sentiram-se obrigados a mudar de postura relativamente ao acolhimento de refugiados. Face à crise migratória que afetou a Europa de 2015 em diante, muita coisa mudou, sobretudo em alguns países. Casos da Polónia, presidida por Andrzej Duda, ou da Hungria, cujo governo é liderado por Viktor Orbán, que recusaram várias vezes a entrada de imigrantes africanos e do Médio Oriente. Foi também polémico, por exemplo, o financiamento da UE à guarda-costeira da Líbia para evitar a aproximação das navegações às suas fronteiras. Sem falar dos movimentos populistas anti-imigração que até há pouco tempo isolaram o continente e que nos dias atuais despareceram reconhecendo a emergência da situação.

A mudança de comportamento aconteceu horas depois da invasão russa ao território ucraniano. Os governos europeus reagiram no imediato mostrando-se “abertos” à receção de pessoas vindas da Ucrânia, e dias depois com uma série de medidas que visam ajudar os refugiados ucranianos. Portugal anunciou que a aposta no acolhimento será “fundamental no emprego”, na habitual reunião do Conselho de Ministros realizado a de 1 de março. Segundo informações do Serviço de Estrangeiro e Fronteiras (SEF), antes da invasão russa da Ucrânia, calculava-se que viviam em Portugal 27.200 ucranianos. Atualmente, com a chegada de mais cidadãos, estima-se que o número chegue aos 45.500,  passando esta a ser a segunda maior comunidade residente em Portugal, ultrapassando a de Cabo Verde e Reino Unido.

Ação positiva, mas “flagrantemente diferente”

Numa entrevista ao JPN,  Ana Farias, coordenadora das campanhas da Amnistia Internacional de Portugal, entende que tem existido uma ação “flagrantemente diferente” dos países europeus em matéria de proteção internacional. Países como Polónia, Hungria, Eslováquia, República Checa têm tido um comportamento distinto daquele que apresentaram nos últimos anos, face a deslocados de conflitos como o da Síria e do Afeganistão.

Anos atrás, esses países (Polónia, Hungria e Croácia) chegaram a construir muros e assistiu-se nas suas fronteiras a práticas de “push back”, o que ocorre quando as autoridade empurram os refugiados para fora das fronteiras, “deixando-os numa situação desumana, cruel, sem qualquer acesso a cuidados médicos sendo vitimas de agressão policial”, afirma Ana Farias.  A ativista conta não saber ao certo os reais motivos que poderão estar por detrás da discriminação, mas reforça existir um “tratamento diferenciado” dos países ocidentais.

Ana Farias classifica de “positivas” as atitudes desses países, que têm seguido as suas “obrigações internacionais legais e morais” para com a proteção das pessoas, e afirma que existe “muito trabalho a fazer”, isto porque, ainda existem pessoas que carecem de ajuda. Por exemplo, aqueles que ainda estão na Grécia.

“Nunca tivemos uma crise de refugiados o que tivemos foi uma crise de solidariedade, uma crise de vontade política.” – Ana Farias

A coordenadora das campanhas da Amnistia Internacional de Portugal afirmou que os países europeus sempre tiveram capacidade de receber os refugiados: “Nunca tivemos uma crise de refugiados, o que tivemos foi uma crise de solidariedade, uma crise de vontade política”, sustenta. Farias sublinha também que, no passado, a Amnistia chegou a solicitar a aplicação da diretiva de proteção temporária nos casos dos refugiados sírios, afegãos, iraquianos. A “diferença foi abismal” na visão da coordenadora, em comparação com os refugiados ucranianos. A proteção temporária facilita o acesso a uma autorização de residência, a um número de segurança social e a um número de contribuinte. Portugal já concedeu mais de 18 mil pedidos de proteção temporária para cidadãos da Ucrânia, de acordo com dados do SEF.

Confrontada por jornalistas sobre estas diferenças, a secretária de Estado das Migrações, Cláudia Pereira, disse que saíram mais pessoas da Ucrânia desde o início do conflito, do que chegaram, durante um ano, a toda a Europa, por isso, o Governo sentiu a necessidade de proteger temporariamente os refugiados. Caso diferente do da Síria, justificou a responsável, porque “a Europa não estava a espera”, acrescentando que o continente “aprendeu” com as experiências de 2015.

Cláudia Pereira justificou também a mudança de atitude do governo no caso da Ucrânia relativamente ao transporte de refugiados, sendo que nos anos de 2015/16 decidiu proibir a circulação de refugiados, alegando que quem estivesse a fazê-lo estaria a incorrer no crime de tráfico de pessoas ou de auxilio à emigração ilegal. Para a secretária de Estado das Migrações são casos diferentes, sendo que em 2015, grande parte “das pessoas que chegaram à Europa, cerca de 1 milhão e 300 mil num ano, eram sírias.”

Por outro lado, a ministra de Estado e da Presidência do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva, afirmou que apesar da presente crise de refugiados da Ucrânia, “Portugal mantém as portas abertas aos refugiados afegãos.” A afirmação foi feita à margem da apresentação do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025. A ministra revelou que tinham chegado ao país, entre os dias 19 e 20 março, oito cidadãos afegãos a Portugal, considerando “as condições de viagem mais complexas do que as da Ucrânia.”

Na opinião de Rui Marques, diretor do Instituto Padre António Vieira (IPAV) e presidente da Academia de Líderes Ubuntu, a “proximidade” é um dos fatores que estão por detrás da maior mobilização por parte dos países europeus, visto que os impactos são imediatos nestes países. Para o diretor do IPAV isto justifica a grande mobilização financeira e humanitária dos países europeus, em comparação com as outras crises que afetaram outros países do mundo.

O “impacto mediático” também pode ser uma das razões já que, no olhar de Marques, a cobertura noticiosa tem sido maior do que a que foi dada ao Afeganistão ou a outros países. O volume de informação é muito maior e isso “influencia diretamente a opinião pública.”

“O destino é irónico.” – Rui Marques

Rui Marques, fazendo referência as situações da Grécia, Itália e Espanha, considerou que “o destino é irónico”, visto que alguns países europeus, no passado, consideraram que a crise dos refugiados deveria ser resolvida pelos países que os recebem. Agora, analisa o diretor, os países diante da “crise gravíssima viram que não podem resolver sozinhos” e que nestes casos “tem que funcionar a solidariedade europeia.”

Na sua visão, as medidas criadas são “suficientes”, quer por parte do executivo português, que criou mecanismos para que os refugiados tenham os “seus estatutos reconhecidos, inscrição na segurança social, na saúde”, quer por parte da sociedade civil que tem “maior capacidade e flexibilidade” na respostas. “Isto não são corridas de cem metros, mas sim maratonas”, explica Rui Marques. O antigo presidente da Plataforma de Apoio aos Refugiados nota também que o apoio deve ir além da “primeira impressão” e que o governo, nesta ótica, deve “manter os apoios mesmo quando [o assunto] não for mais notícia.”

Em números a crise da Síria, até ao momento, é considerada maior do que a ucraniana já que de acordo com as Nações Unidas 5 milhões de pessoas deixaram a Síria no contexto da guerra civil, 6 milhões vivem como deslocados internos, sendo que 13.5 milhões necessitam de ajuda humanitária. Contudo, os governos ocidentais seguiram uma direção inversa à que tem sido seguida atualmente, quando cerca de 1 milhão de refugiados sírios tentaram fugir no ano em que a guerra se intensificou, em 2016.

Artigo editado por Filipa Silva