Apesar de a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica ter sido criada pela Conferência Episcopal Portuguesa e ser por esta financiada, "a independência é total", garante o psiquiatra Daniel Sampaio. O membro da Comissão conversou com o JPN sobre o trabalho que o grupo está a desenvolver.

Daniel Sampaio é um dos seis membros da Comissão Independente. Foto: https://www.danielsampaio.org/

“Podem contar connosco para não desistirmos”, assegurou Pedro Strecht, pedopsiquiatra e coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, no início do ano. Foi então que a equipa iniciou a recolha de testemunhos de casos de abusos sexuais ocorridos desde 1950, com vista à apresentação de um relatório final, com as conclusões do estudo. A apresentação está prevista para dezembro deste ano.

Quem integra a Comissão?
O pedopsiquiatra Pedro Strecht é o coordenador. Da equipa fazem também parte o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio; a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida; o psiquiatra Daniel Sampaio; a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares; e a cineasta Catarina Vasconcelos.

No primeiro mês de funcionamento, o grupo recebeu 214 queixas, que, na verdade, se deverão traduzir num número superior de casos, uma vez que muitas vítimas apontaram outras crianças que foram alvo do mesmo abusador. Todas as denúncias de crimes ainda não prescritos que a Comissão recebe são encaminhadas para a Polícia Judiciária e para a Procuradoria-Geral da República.

Portugal começa só agora a levantar o véu que cobre os abusos sexuais de menores no seio do clero católico, tal como muitos outros países. “O estudo sobre estes dados nas Igrejas é recente em todo o mundo”, afirmou Daniel Sampaio. O psiquiatra, que é um dos seis membros da Comissão Independente, revelou, nas respostas por escrito que enviou ao JPN, um pouco mais acerca do estudo que a equipa está a levar a cabo, dos obstáculos que se estão a interpor – tal como “é natural” – e do futuro do grupo.

JPN – O que o levou a aceitar o convite para integrar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja?

Daniel Sampaio (DS) – Foram dois fatores: a importância deste estudo e a minha amizade com o Dr. Pedro Strecht.  Tinha a noção de que seria muito relevante possibilitar o testemunho de tantas vítimas, que foram silenciadas durante muito tempo. E não poderia recusar o pedido de colaboração feito por uma pessoa que muito estimo e admiro.

JPN – Os testemunhos de abusos podem chegar à Comissão via questionário online, carta, email ou encontro presencial. Qual é o método a que as vítimas mais recorrem? A Comissão encontra algum motivo específico para a preferência por esse método?

DS – A preferência é, de longe, testemunhar a partir do nosso telefone, cujo número é 917 110 000, e do inquérito online, que está no nosso site. Durante a chamada telefónica, sugerimos a resposta ao inquérito, o que vai permitir um estudo alargado do problema. Algumas pessoas (poucas) querem um atendimento presencial. Todos os testemunhos presenciais preencheram depois o inquérito.

Penso que a opção mais frequente pelo questionário na net tem a ver com a maior garantia de confidencialidade, já que não solicitamos qualquer identificação. O mesmo se passa presencialmente – todos os depoimentos são anónimos.

JPN – A Comissão referiu que os testemunhos revelam “sofrimento psíquico individual, familiar e social, por vezes escondido durante décadas”, ao qual se associam “sentimentos de vergonha, medo, culpa e autoexclusão”. Que mecanismos tem hoje a Igreja Católica portuguesa para lidar com as vítimas? E com os agressores?

DS – A Igreja Católica tem agora as Comissões Diocesanas, criadas em 2019, onde as pessoas podem testemunhar. Se forem identificados agressores atuais, a Igreja, como qualquer pessoa ou instituição, deve remeter [o caso] para o Ministério Público.

JPN – Durante o primeiro mês de atividade, receberam 214 depoimentos, tendo muitas vítimas mencionado outras crianças alvo do mesmo abusador. Este número surpreendeu a Comissão? Qual é a vossa previsão para a dimensão do fenómeno estudado?

DS – Não ficámos surpreendidos, mas por enquanto, não temos dados que nos permitam dimensionar o problema no país, nem fazer uma previsão sobre a sua extensão. É cedo para responder a essa questão.

JPN – Um estudo de 2017, que reúne dados de vários países, concluiu que mais de metade dos abusadores sexuais dentro da Igreja Católica só faz uma vítima. Tendo em conta que muitas das vítimas que já contactaram a Comissão referem outras crianças alvo do mesmo abusador, será a realidade portuguesa distinta da concluída pelo estudo? Porquê?

DS – Sabemos que várias vítimas referiram outras crianças abusadas pela mesma pessoa, mas nada se pode concluir para já.

JPN – Até à constituição da Comissão, havia pouca ou nenhuma informação acerca dos abusos sexuais ocorridos no seio da Igreja em Portugal. Na sua opinião, quais são as principais razões que justificam o desconhecimento que há, em Portugal, sobre a verdadeira dimensão do fenómeno no país?

DS – O fenómeno de ocultação ou de encobrimento existe em todas as situações de abuso sexual. Os casos da Igreja não são exceção, mas o estudo sobre estes dados nas Igrejas é recente em todo o mundo. Mas há um jornalista que estudou bem o problema: João Francisco Gomes, do jornal “Observador”. O seu livro “Roma, temos um problema” tem muita informação pertinente.

JPN – Tendo a Comissão sido criada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e sendo financiada por esta, como é assegurada a independência da Comissão face à Igreja Católica?

DS – A independência é total. Ninguém da Igreja nos indicou o caminho, nem deu qualquer sugestão sobre o que teríamos de fazer. Nem aceitaríamos que fosse de outro modo.

JPN – Em fevereiro, o padre Manuel Barbosa, o secretário da CEP, anunciou que a metodologia de acesso aos arquivos diocesanos por parte da Comissão Independente vai ser definida em abril. Tendo em conta a gravidade do assunto em causa, não deveria o acesso aos arquivos ser garantido o mais rápido possível?

DS – Estamos a estudar o modo de ter acesso aos arquivos. Contamos com a colaboração dos senhores Bispos para o efeito.

JPN – Sendo a Comissão composta por seis elementos, terá condições para analisar a certamente vasta documentação dos arquivos da Igreja? Por exemplo, na Alemanha, para analisar os arquivos eclesiais, foram contratados profissionais de um escritório de advogados. Em Portugal, será feito algo semelhante?

DS – É provável que precisemos de apoio técnico para esta tarefa. Com apenas seis pessoas será difícil, mas tudo será anunciado a seu tempo.

JPN – Tendo em conta que o acesso aos arquivos da Igreja só vai ser possível depois de abril, a Comissão prevê prolongar a data de apresentação do relatório final (que seria no final deste ano)?

DS – Se for necessário, poderemos prolongar a data de apresentação do relatório.

JPN – Ainda relativamente ao acesso aos arquivos da Igreja, o padre Manuel Barbosa disse que “há normas em vigor, a nível civil e canónico, que é preciso observar”. O cânone 489, nº 2, do Código de Direito Canónico, refere: “destruam-se todos os anos os documentos de causas criminais em matéria de costumes, cujos réus tiverem morrido ou que tenham terminado com sentença condenatória há dez anos, conservando-se um breve sumário do facto com o texto da sentença definitiva”. Ou seja, de acordo com a lei canónica, depoimentos das testemunhas, denúncias e outros dados relativos aos casos podem ser destruídos – dados estes que podem ser importantes para o estudo que a Comissão está a levar a cabo. Normas como esta não põem em causa a capacidade de a Comissão conseguir apresentar um retrato fiel do fenómeno dos abusos sexuais na Igreja portuguesa?

DS – Tentaremos fazer o melhor possível, perante todos os constrangimentos que é natural que surjam.

JPN – Os tópicos que a Comissão pretende cobrir no relatório final são, designadamente, o “número de menores e adultos vulneráveis alvos de abuso no meio eclesial português”, “o perfil de vítimas e abusadores”, “as características dos abusos e dos locais onde estes ocorrem” e “a forma como evoluiu a relação dos portugueses com a Igreja Católica”, de acordo com o jornal “Público”. Mais especificamente, como irão avaliar este último ponto? Está nele incluído o apuramento da posição e das ações que a Igreja tomou perante os abusos sexuais ocorridos no seu seio?

DS – Se tivermos dados, analisaremos as posições e ações da Igreja e, por certo, faremos recomendações.

JPN – O trabalho da Comissão prosseguirá depois da conclusão deste relatório? Em que sentido? 

DS – Em dezembro, poderemos responder a essa pergunta. Temos a certeza de elaborar um relatório o mais completo possível.

Artigo editado por Filipa Silva