Perante a atual instabilidade internacional, Portugal e a Europa confrontam-se com um grave problema de dependência energética. Dois terços da energia do país são importados. Pode Portugal tornar-se um país independente na produção de energia? O JPN esteve à conversa com especialistas sobre o presente e o futuro da energia no país.

Cerca de dois terços (65,8%) da energia consumida em Portugal vem do exterior, segundo dados de 2020. “A dependência energética que temos é um elemento fundamental a ser ultrapassado”, afirma Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO.

Para que tal aconteça, os especialistas assinalam a importância de apostar nas energias renováveis e na inovação na área, numa estratégia combinada com uma maior eficiência energética. É um caminho para a autonomia, para o desenvolvimento e para o combate às alterações climáticas, numa altura em que a guerra na Ucrânia e o crescente isolamento da Rússia trazem a questão da dependência para o centro do debate.

As origens da dependência

Na verdade, “Portugal tem uma dependência da Rússia em termos de importação de combustíveis fósseis que é muito limitada”, refere João Peças Lopes, professor de Sistemas de Energia na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).

Não obstante, essa dependência tem aumentado nos últimos anos, com a importação de gás natural russo a chegar aos 10,2% do total em 2021, segundo a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) – já a Associação Zero indica que esse número estará nos 14,6%. Embora a dependência energética da Rússia ainda seja reduzida, Portugal não deixa de estar “dependente de outros países que não são democracias”, assinala João Pedro Pereira, professor de Finanças de Energia na Nova School of Business & Economics (Nova SBE).

Há dois anos, os maiores fornecedores de petróleo a Portugal eram o Brasil, a Nigéria, a Arábia Saudita, Angola e a Guiné Equatorial, respetivamente, totalizando cerca de 71% do petróleo importado. Três desses países – Arábia Saudita, Angola e Guiné Equatorial – têm regimes autoritários, de acordo com o Índice de Democracia do Economist Intelligence Unit. Para além disso, acrescenta-se o caso do norte da Nigéria, onde decorre uma insurgência do grupo radical islâmico Boko Haram.

O mesmo problema verifica-se no caso do gás natural. Em 2021, segundo a DGEG, 49,5% das importações eram provenientes da Nigéria, 33,2% dos Estados Unidos, 5,9% de Espanha e 1,3% da Argélia, para além da já mencionada importação da Rússia (10,2%). A dependência estende-se ainda a questões económicas, com João Pedro Pereira a assinalar as participações do Estado Chinês nas empresas de transmissão e distribuição de eletricidade - 20,22% no caso da EDP e 25% da REN.

"Como é o preço da mais cara que determina o preço final da energia, as renováveis não têm conseguido suster completamente o aumento de preços que se tem vindo a verificar." - Francisco Ferreira (Zero)

No imediato, essa dependência contribui para o aumento dos preços dos combustíveis, mas também da eletricidade. Como Portugal produz, para além de energia renovável, “eletricidade em centrais de ciclo combinado a gás natural e como é o preço da mais cara que determina o preço final da energia, as renováveis não têm conseguido suster completamente o aumento de preços que se tem vindo a verificar”, explica Francisco Ferreira.

A previsão é que a fatura da eletricidade suba aproximadamente 3% no mercado regulado já em abril. A partir de dia 15, a Galp vai aumentar os preços do gás em três euros e da eletricidade entre um e dois euros. No mês seguinte, a EDP Comercial aponta para um aumento de 3% nos preços da eletricidade. As medidas de mitigação anunciadas pelo governo não impedem tais aumentos.

Depois da tempestade, a bonança? Uma oportunidade para acelerar a transição energética

Surge agora uma nova janela de oportunidade para uma maior independência, depois da pandemia. “Acho que devemos aproveitar esta situação que está a acontecer agora, que no fundo é um abrir de olhos forçado para acelerarmos rapidamente a transição energética”, afirma João Pedro Pereira, da Nova SBE.

Devemos aproveitar esta situação que está a acontecer agora, que no fundo é um abrir de olhos forçado para acelerarmos rapidamente a transição energética

Em dezembro do ano passado, mais de 70% da energia produzida no país veio de fontes renováveis, reforçando a ideia de que a partir da autonomia energética vem também a luta contra as alterações climáticas. Apesar de João Pedro Pereira considerar que “nós temos alcançado os nossos objetivos”, estes são descritos como insuficientes.

A autonomia energética é uma oportunidade de combate às alterações climáticas. Foto: Garry Knight/Flickr

É assim preciso agir mais rápido "por razões económicas e também por razões ambientais", assinala Francisco Ferreira. Em conversa com o JPN, o professor João Pedro Pereira alerta para "a questão do clima [que] é um desastre que está muito perto de se tornar irreversível”. Atualmente, o objetivo nacional é chegar a 80% de energia elétrica produzida com origem renovável em 2030 e atingir a neutralidade carbónica em 2050. Segundo o Painel Intergovernamental em Alterações Climáticas (IPCC), é possível pôr um fim ao aumento das temperaturas se as emissões globais forem reduzidas em metade até 2030 e nos 20 anos seguintes for atingida a neutralidade.

É preciso acelerar o Pacto Ecológico Europeu, considera Francisco Ferreira.

O ambientalista não tem dúvidas das potencialidades do território português: “Nós, felizmente, em Portugal, temos aqui uma variedade grande: o solar, a eólica, a hídrica, nos Açores a geotérmica, a biomassa também pode ser utilizada”. Em 2021, a produção de energias renováveis abasteceu 58% do consumo de eletricidade. Já dentro do consumo de energia final – correspondente a todos os setores económicos –, esse valor ficava-se pelos 34% em 2020.

No que toca ao potencial de energia do Sol, a exposição solar anual em Portugal varia entre as duas mil e as três mil horas, um dos maiores valores na Europa. Já para a energia eólica, a produção pode chegar aos 2 mil megawatts, suficientes para abastecer três milhões de pessoas. Há que ter, contudo, em conta o “balanço entre a energia renovável e a afetação da paisagem”, considera Francisco Ferreira. Para o professor da Nova-FCT, não se pode “esburacar o país ou alcatifar com painéis solares”, havendo alternativas sustentáveis.

Que falta a Portugal fazer para eliminar a dependência?

No que toca ao potencial verificado, este ainda é subaproveitado. O professor da Nova SBE João Pedro Pereira considera que “ainda há muita coisa a fazer”. Um dos problemas que se apresenta é ao nível da eletrificação do sistema de energia, o qual corresponde a dois terços das emissões globais de carbono.

A eletrificação é assim definida como o principal objetivo do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050. Para o professor João Pedro Pereira, há várias áreas em que é precisa uma maior aposta, nomeadamente nos transportes, que “estão muito atrasados em termos de eletrificação”. Já Francisco Ferreira aponta a falta de “uma rede de eletricidade preparada para ligar como seria desejável muitas mais centrais solares do que aquelas que estão planeadas”.

Mais do que eu ter uma lâmpada que poupa muito, eu preciso é de desligar a lâmpada se não precisar dela.

Pedro Pereira recomenda ainda “avançar mais rapidamente para tarifas de consumo de eletricidade que sejam dependentes do preço do mercado grossista em tempo real”. Essa medida fomentaria a “eficiência do consumo de eletricidade”, a qual Francisco Ferreira, da FCT-Nova, traça como “o caminho mais importante”. Para o responsável pela associação ZERO, “mais do que eu ter uma lâmpada que poupa muito, eu preciso é de desligar a lâmpada se não precisar dela”.

Falta desenvolver a eletrificação do sistema de energia. Foto: Jeanne Menjoulet/Flickr

Outro ponto em que tem havido pouco investimento são os carros elétricos, para os quais “as pessoas ou têm a garagem para os carregar ou não os conseguem carregar”. Para João Pedro Pereira, da Nova SBE, é preciso ainda proceder à eletrificação do “aquecimento da água” e do “aquecimento das casas com bombas de calor”. Já João Peças Lopes, da FEUP, propõe que “se passe a queimar hidrogénio” na indústria em alternativa ao gás natural.

O agora e o depois da transição

No curto-prazo, quer o docente da FEUP quer o da Nova SBE apelam a soluções temporárias de diversificação das fontes de energia. “No curto-prazo, não é possível converter a economia para outra forma de energia”, adverte Pedro Pereira.

Peças Lopes defende que se vá “comprar mais gás aos Estados Unidos, mais gás ao Catar, ao norte de África, à América do Sul e, por exemplo, a Moçambique, que tem uma exploração de gás natural nascente”. Pelo contrário, Francisco Ferreira considera que “construir infraestruturas para os combustíveis fósseis” provenientes de outros países constitui “um desperdício de dinheiro”. Defende por isso mais “investimentos na nossa independência energética, ou seja, na eficiência energética e nas renováveis”.

Mas o que pode significar uma transição energética no longo-prazo? Para além de ajudar a mitigar os efeitos das alterações climáticas, há também o potencial de desenvolvimento económico e de liderança na área das tecnologias de energias renováveis. João Peças Lopes relembra que “Portugal pode desenvolver clusters industriais associados a esta transição energética”.

O docente acredita que, assim, o país conseguirá “desenvolver uma capacidade de exportação, de conhecimento e de tecnologia” que conduza a um maior desenvolvimento económico. João Pedro Pereira refere também as consequências positivas para a economia, que seria beneficiada pelo fortalecimento do “tecido académico, inovador e empresarial português”. “Não há razão nenhuma para a inovação não ser feita cá”, diz o professor da Nova SBE.

Promover a mudança é sempre complicado quando nós já temos interesses instalados e lucros que estão programados

No fim, “promover a mudança é sempre complicado quando nós já temos interesses instalados e lucros que estão programados”, suspira Francisco Ferreira. De otimismo moderado, a esperança é que a transição energética seja acelerada. Só assim será possível que Portugal se torne autónomo energeticamente, ao mesmo tempo que avança na proteção do meio ambiente.

Artigo editado por Filipa Silva