Ricardo Conceição, Alexandra da Liberdade e Marta Brito partilham o seu dia de nascimento com o Dia da Revolução dos Cravos e contam as suas histórias de vida, que tem a mesma duração da democracia.

O dia do nascimento de cada um nunca se torna um dia vulgar na nossa vida e, por isso, relembramos e celebramos o aniversário todos os anos. Mas para estes “Chicos dos Cravos” ou “Marias da Liberdade” esse dia coincidiu com o Dia da Revolução, que mudou o rumo da História do país. Nasceram no dia 25 de Abril de 1974 e têm precisamente a idade da democracia portuguesa: 48 anos.

Enquanto os canhões soavam no Largo do Carmo ou os cravos se espalhavam pelas multidões, algures numa maternidade as suas vidas começavam. O dia do nascimento afetou-os em vários aspetos da sua vida, de forma mais vulgar ou mais definitiva. Fomos conhecer as suas histórias e saber como se relacionam com a democracia e com as conquistas de abril. 

“Somos filhos do 25 de Abril”

Ricardo Conceição

O jornalista Ricardo Conceição esteve 20 anos na Renascença e foi um dos fundadores da Rádio Observador, onde trabalha desde 2019. Agradece ao 25 de Abril o “facto de poder exercer a [sua] profissão em liberdade e ter a felicidade de fazer carreira em sítios onde essa liberdade se sente e é efetiva”. Fazer jornalismo sem a censura do Estado Novo “é a maior das vantagens”.

“Não faço ideia sequer do que é trabalhar com censura. Provavelmente, ir-me-ia dar muito mal com isso”, admite. Apesar da paixão pelo jornalismo, Ricardo Conceição confessa que não sabe se optaria pelo mesmo rumo profissional em tempos de ditadura: “É um exercício muito difícil. Em princípio não, conhecendo-me como me conheço hoje”, reflete.

A propósito de a democracia ter ultrapassado, em Portugal, o tempo de duração da ditadura – a “ultrapassagem” foi feita a 24 de março de 2022 -, permitiu a Conceição, por exemplo, descobrir que já viveu mais de 17.500 dias e reforça: “Sempre trabalhei em redações onde se transpira liberdade e os critérios editoriais estão bem definidos. Portanto, tenho a suprema felicidade de fazer aquilo que gosto e fazê-lo em liberdade, é ótimo”.

A evolução do país em democracia 

Refletindo sobre esses 17.500 dias de democracia, acredita que houve uma “evolução clara do país e das pessoas, para a qual contribuiu muito a entrada na União Europeia”, da qual Portugal é estado-membro desde 1986. Descreve esta evolução como um “salto gigantesco”, referindo a qualidade de vida, grau de qualificações académicas, nível de educação, avanço civilizacional e a forma como as pessoas se relacionam, e admitindo que todos estes avanços foram possíveis graças ao escrutínio das entidades publicas e à imprensa livre.

No entanto, “falta uma massa crítica aos portugueses que continuam a satisfazer-se com o ‘vamos andando’”, relata o jornalista, que acredita que “os portugueses têm de ser mais exigentes com as instituições, com eles próprios”. “Temos a teoria do ‘meio bacalhau basta’. Acho que devemos querer o bacalhau inteiro e não meio bacalhau”, acrescenta.

Contudo, crê que esse processo vai demorar, pois “ainda estamos muito contaminados por aquilo que foi o antigo regime, o 25 de Abril e os anos de democracia”. Segundo Ricardo Conceição, falta escrutínio, ambição e profissionalismo. “São saltos que só as gerações conseguem dar, mas acredito que vamos conseguir”, conclui.

Apesar de já terem passado 48 anos desde a revolução, o jornalista afirma que o 25 de Abril é uma “marca que está na pele dos portugueses”. “Somos filhos do 25 de Abril”, diz o jornalista sobre a sua geração. “Raramente encontrei pessoas para quem o 25 de Abril fosse uma data, fosse um 5 de Outubro. É ainda muito vivo na memória das pessoas, por isso, acredito que enquanto o 25 de Abril não passar a ser um feriado mais consensual vai ser difícil que as pessoas se libertem das discussões vincadas”, conta. Algumas dessas discussões passam por “quem usa cravo, quem não usa cravo, quem vai ao desfile e quem não vai ao desfile”, de acordo com as suas ideologias políticas.

O 25 de Abril não tem “dono”

Ricardo Conceição lamenta que exista quem se ache “dono” do 25 de Abril. “Os únicos donos do 25 de Abril são os portugueses”, defende. “A esquerda acha que é dona do 25 de Abril e que [este] só aconteceu porque a esquerda existe. A direita moderna e democrática acha que tem direito também”, defende. A revolução “aconteceu por ação dos militares e os portugueses aderiram àquela causa”. Dado que a mudança de regime foi apoiada pelo povo português, “foram os portugueses que construíram a democracia”.

“Foi a vontade do povo. Nenhuma revolução triunfa da forma como esta triunfou sem o apoio popular, sem os portugueses estarem quase de corpo e alma”, conclui.

Custa-lhe ouvir expressões como “antigamente é que era bom”, porque “temos poder de escrutínio, imprensa livre, liberdade empresarial, ou seja, nós temos as ferramentas não podemos ficar à espera que seja o do lado a pegar nas ferramentas e construir a parede”. 

As mudanças no jornalismo ao longo de quase 50 anos

Analisando a evolução do jornalismo nos últimos cinquenta anos, Ricardo Conceição acredita que este se tornou “menos panfletário”, pois nos primeiros anos de democracia, “foi muito marcado politicamente”. “Os jornalistas são pessoas e têm as suas convicções políticas e a forma de olhar para o mundo. Naquele arranque, sempre houve um olhar muito à esquerda na forma de transmitir informação”, explica. Atualmente, o cofundador da Rádio Observador observa uma “maior equidistância no jornalismo, no apuramento dos factos, na forma como se comunicam as notícias”.

Ricardo Conceição é otimista em relação ao futuro e apoia a sua esperança na forma como o mundo tem mudado, segundo a História. “Há 50 anos, havia muitas casas que não tinham casa de banho, havia uma taxa de analfabetismo brutal, a mortalidade infantil era assustadora. Em cinquenta anos, mudámos muito, assim como se mudou nos cinquenta anos anteriores. Todas estas mudanças no século XVII ou XVII demorariam muito mais. As mudanças a que nós assistimos hoje são muito rápidas”, diz.

O radialista com mais de vinte anos de carreira dá o exemplo de como ultrapassou os obstáculos impostos pela pandemia graças à evolução tecnológica. “Se a pandemia tivesse sido há 10 anos, nós não conseguiríamos com a facilidade com que conseguimos fazer rádio a partir de casa como fizemos. Eu só consigo imaginar como isto vai ser daqui a cinquenta anos. Não sei se vamos estar a andar em carros voadores, mas vamos ser melhores, vamos ter outra essência. Tem sido assim ao longo da História, os povos evoluem”, conclui.

Ter a “Liberdade” no nome

Alexandra da Liberdade

O dia 25 de Abril de 1974 foi o primeiro dia da vida de Alexandra da Liberdade, portanto não sentiu na pele os problemas que as pessoas viviam antes da revolução. No entanto, a data veio marcar vários aspetos da sua vida, sendo o mais impactante de todos a escolha do seu nome.

No mítico Dia da Revolução, a mãe estava no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O pai, líder associativo, andava na rua e não sabia que a filha ia nascer nesse dia. Alexandra da Liberdade nasceu às quatro da tarde, hora da rendição de Marcello Caetano no Quartel do Carmo, junto ao qual o pai estava. Quando soube, por chamada, do nascimento da filha, a sua alegria duplicou e as certezas sobre o nome relacionado com a liberdade definiram-se.

A vontade inicial do pai era registar a filha com o nome Vitória da Pátria Livre. A mãe de Alexandra impediu-o, alegando que o primeiro nome tinha de começar pela letra ‘A’ – por razões na altura relacionadas com a organização escolar – e sugeriu Alexandra. Encarregue do segundo nome, o pai escolheu ‘da Liberdade’. Na escola, todos os professores a chamavam Liberdade, o que na adolescência lhe causava alguma frustração, chegando mesmo a pensar: “Quando chegar aos 18 anos, vou mudar de nome”. “Só que não”.

A partir do momento em que se começou a perceber a importância associada ao dia (por parte dos “adultos, “os miúdos nem tanto”), começou a engraçar com o nome. Não acredita que compreenda completamente o que sentiam as pessoas que viveram a ditadura, mas, por contágio, por ser diferente, aprendeu a aceitar e a gostar do seu nome. “Fui um bocadinho à boleia daquilo que as pessoas me diziam, porque é impossível uma pessoa não vivenciar uma coisa e conseguir empatia de outra forma”, confessa. Agora, está conformada e sente muito orgulho no seu nome e no seu significado. Por fim, percebeu que o nome assenta bem à sua personalidade enérgica, inconformada e justa.

“Viver em liberdade é muito melhor do que viver oprimida”, afirma Alexandra da Liberdade, que recearia não conseguir viver pacificamente durante o antigo regime, devido ao seu espírito “um bocadinho revolucionário”.

O que mais lhe causa aflição em relação ao período que antecedeu o seu nascimento é a falta de liberdade de expressão. “A questão de ser proibido dizer determinadas coisas ou fazer determinadas coisas para mim é inconcebível”, conta. Quem lhe conta sobre a censura e a proibição de manifestar certas opiniões é o pai, Carlos Pereira, que vivia muito intensamente os movimentos associativos juvenis, tendo sido líder associativo. Apesar da Revolução dos Cravos ter rebentado no dia 25 de Abril de 1974, a liberdade não se instaurou plenamente de um dia para o outro e a recém-nascida ainda sofreu os últimos efeitos da ditadura, no que toca ao registo do seu nome. A censura atrasou o registo durante um mês. O pai tentou e não conseguiu registar a filha como Alexandra da Liberdade na altura do seu nascimento, mas decidiu esperar. Só em maio, foi possível registar com o nome desejado.

A idade da democracia é a mesma de Alexandra da Liberdade. Ao longo destes anos, exalta sobretudo o facto de as pessoas conseguirem viver com um governo que elegeram “sem serem presos, sem serem mortos, sem serem crucificados pelo que dizem”. “A liberdade de expressão é a maior vantagem”, conclui.

Antes de ser diretora de comunicação de uma cadeia hoteleira, Alexandra da Liberdade esteve durante 14 anos como responsável de edição do Boletim Municipal do Seixal, o jornal oficial da câmara, liderada pelo PCP desde 1974. Nessa função, afirma ter tido momentos em que viu as suas escolhas limitadas e a sua liberdade condicionada pois, garante, “havia coisas que não podiam ser ditas”.

Marta Brito e a “sorte de estar neste ponto”

Marta Brito

Marta Brito sempre achou graça a ter nascido no Dia da Revolução, motivo pelo qual garante sentir orgulho.

Sente que pode imaginar a dificuldade de viver em ditadura, mas sem lhe conseguir dar o devido valor: “Nunca a senti na pele”, resume.

Marta Brito foi-se apercebendo da sorte que teve em nascer no dia 25 de Abril de 1974 e de viver em democracia através de histórias que lhe contavam e do que aprendeu na escola. Uma situação que recorda particularmente foi quando os pais, que viveram em Angola, onde tinham Coca-Cola, lhe contaram que em Portugal a bebida era proibida. Como gosta muito de Coca-Cola, lembra-se de pensar: “Mas qual é o problema para não se poder beber?”. “Não sei muito bem o que passaria pela cabeça do Salazar”, reflete ainda.

A professora de Físico-Química assusta-se com a falta de liberdade de expressão do período anterior ao seu nascimento. “Não deve ter sido fácil viver numa altura em que não nos podíamos expressar e tínhamos de pensar duas vezes antes de dizer quem apoiávamos ou as ideias que tínhamos”, confessa. “Não se podia dar a opinião em público, porque havia pessoas que eram da PIDE à paisana e isso era péssimo. A pessoa podia achar que estava num grupo de amigos e estava a ser controlada. E depois iam a casa buscar as pessoas”, remata.

Recorda-se de um professor de Filosofia contar que, quando Salazar descobriu que Angola tinha petróleo, ficou muito preocupado. “Era um contrassenso. Tomara Portugal ter algum petróleo”, desabafa Marta. “Viu um problema, onde podia ser uma solução para muitos problemas”, continua.

“Temos uma grande sorte em estar neste ponto”, conclui a professora. Agradece à democracia a oportunidade de eleger os governantes. “Quem teve a oportunidade de votar e não votou tem de arcar com as consequências de não ter ido dar o seu parecer”, acrescenta.

Destaca também o acesso à informação. “Não me sinto enganada nem sinto que não sei o que se passa no mundo. Os media podem ser manipulados, mas hoje em dia com redes sociais e tudo o mais é difícil nos enganarem”, conta.

Como professora, tem consciência que “a aula não é só matéria e cumprir programas” e agradece a liberdade de poder partilhar opiniões com os alunos. Acredita que durante a ditadura, estaria mais condicionada. “Há momentos em que se fala do dia a dia e de experiências dos alunos e é aí que, se calhar, eu não daria a minha opinião sincera”, afirma.

Devido à paixão pelo ensino, talvez, escolhesse ser professora mesmo vivendo durante o Estado Novo, mas paira a dúvida. “Estava condicionada aos tempos e, entre isto e outra coisa, se calhar continuava a escolher ser professora”. Contudo, educa os seus oito filhos na base da liberdade.

Enquanto viveu em Angola, sob a presidência de José Eduardo dos Santos, deu valor ao que tinha em Portugal, à democracia e às condições de vida. “Embora [os angolanos] sejam pessoas felizes com o pouco que têm (…), aquilo é o que eles conhecem e está bom. Nós, que vimos de fora, pensamos: ‘Que pena, não está nada bom’”, explica.

Ao longo da vida, são incontáveis as vezes em que ao dar a data de nascimento em locais como repartições públicas obteve reações de surpresa. “Achavam imensa graça e metiam-se comigo”, revela. Conta também que os filhos, às vezes, têm dificuldade em lembrar-se quando é que o pai faz anos, mas nunca se esquecem da data da mãe.

Marta Brito cresceu a ouvir um avô falar bem de António de Oliveira Salazar [chefe do Governo português entre 1932 e 1968] e a dizer frases como “Quem me dera que ele voltasse”, algo que lhe veio a gerar confusão. “Na altura não ligava muito, mas depois quando ouvia programas de televisão a contestá-lo pensava, ‘mas se o meu avô gosta tanto porque é que estas pessoas não gostam’?”, desabafa. “Nunca percebi bem porquê”, intriga-se. “Nunca surgiu a oportunidade de lhe perguntar porquê”.

Antes de ser coletiva, é uma data pessoal

Celebrar o aniversário num dia em que as atenções estão viradas para a celebração da liberdade, com desfiles, concertos e cravos por toda a parte não é o mesmo que celebrar noutro dia qualquer. Ricardo Conceição destaca o lado positivo: “Ao contrário de mim, que me esqueço dos aniversários de toda a gente, toda a gente se lembra do meu”. O jornalista tenta que o dia seja o seu aniversário, sobretudo. “Para mim, é o meu dia de anos”, admite. O “filho da revolução” tenta não misturar as coisas, apesar de “toda a vida [ter sido] misturado”. Nos primeiros anos, pensava que o desfile militar era em sua homenagem. “E porque não?”, ri. Rapidamente se apercebeu que não, mas sente muito orgulho em fazer anos neste dia. “Na minha vida tento honrar esse dia”, confessa.

Alexandra da Liberdade não sente interferência ou concorrência entre o seu dia de anos e o Dia da Liberdade. Destaca o facto de o dia ser feriado a partir do seu nascimento e a possibilidade de celebrar o aniversário com “uma festinha, um almoço e tal, coisa que os outros não podem”. “Eu sou livre de o fazer”, ri. “As pessoas da minha geração, os meus amigos, não ligam ao 25 de Abril. É muito mais importante para eles vir ao meu aniversário do que aquelas coisas enfadonhas das manifestações na avenida”, conta. Já o pai, nem sempre teve a mesma disponibilidade para se juntar à festa. Como presidente da Junta de Freguesia de Fernão Ferro durante quatro mandatos, ou seja, 12 anos, tinha compromissos relativos à comemoração da data. “Tinha que ir acompanhar um passeio de cicloturismo, a colocação de cravos na estátua… Até uma determinada idade, foi isso que aconteceu”, desabafa.

No seu aniversário Marta Brito, costuma ver um pouco das comemorações de manhã e depois “desliga-se um bocadinho”. Ultimamente, tem conhecido pessoas que celebram o aniversário no mesmo dia e chegou mesmo a celebrar em conjunto. “Juntámos as festas e fizemos uma festarola grande”, conta. Admite que em criança foi mais difícil desassociar o aniversário do Dia da Liberdade. Queixava-se de que, ao contrário dos outros dias, “não havia desenhos animados e havia cerimónias de comemoração”. A sua perceção sobre ser feriado no seu dia de anos foi variando ao longo da sua vida. Na adolescência, não achou tanta graça a não poder cantar os parabéns na sala de aula com os colegas no seu aniversário. “Houve uma altura em que eu achei graça ser feriado e não ir á escola, mas houve outra altura em que eu queria estar com os meus amigos”, desabafa.

Artigo editado por Filipa Silva