Roma e Tymofii chegaram a Portugal há pouco mais de um mês. Já foram integrados numa escola em Gaia, mas a adaptação à nova realidade traz alguns obstáculos. Com a chegada do 3.º período letivo, o JPN foi até à Escola Básica das Devesas acompanhar a nova rotina dos alunos ucranianos e perceber como estão professoras a tratar da sua integração.
“As crianças não deviam ter de ouvir os sons da guerra, merecem um lugar seguro”, diz Mariia Kolomiichenko, ucraniana que se viu obrigada a abandonar o seu país. Consigo trouxe o filho Roma Kolomiichenko, de 9 anos e o filho de um amigo, Tymofii Kosinov, de 10 anos. Escolheu Portugal porque o seu primo mora em Vila Nova de Gaia e ter família por perto acaba sempre por ser “um ponto de suporte”.
As duas crianças integraram a Escola Básica das Devesas, em Vila Nova de Gaia, uma das várias escolas portuguesas que abriu portas às crianças ucranianas retiradas do seu país devido à invasão russa. Roma e Tymofii chegaram à escola gaiense em março. Ao, JPN afirmam gostar da nova escola e sentem-se apoiados pelos professores e colegas. O que mais gostam? “Brincar com os novos amigos”.
Neste momento, a escola das Devesas já acolheu cinco crianças ucranianas; Roma e Tymofii foram os primeiros a chegar. Mariia, encarregue das duas crianças, admite que a adaptação “tem sido fácil”, pois ao ficarem na mesma turma conseguem-se ajudar mutuamente e “é mais fácil psicologicamente”. “Por exemplo, o Tym [alcunha pela qual Tymofii é tratado] fala inglês mais fluentemente e ajuda o Roma”, explica.
Também o apoio da comunidade escolar fez com que a integração fosse mais fluída. Quando chegaram à escola pela primeira vez, viram as várias bandeiras da Ucrânia espalhadas pelas salas e imediatamente sentiram um “grande apoio”. “Todos nos perguntavam o que podiam fazer para ajudar, são todos muito simpáticos e prestáveis”, acrescenta Mariia. Considera que este apoio é importante, “porque assim aqui [em Portugal] conseguimos ter dias normais”.
Para as famílias que chegam da Ucrânia há duas possibilidades: continuar a acompanhar o currículo em ucraniano, através dos serviços de educação à distância que o Governo ucraniano disponibiliza, ou ingressar nas escolas portuguesas. Para Mariia, a escolha de inscrever as duas crianças na escola local deveu-se ao facto de, na altura em que chegaram ao país, não tinham possibilidade de ter imediatamente aulas online; além disso, “a socialização é muito importante para as crianças”. “Não sabemos até quando vamos ficar aqui e é muito importante que as crianças estejam num ambiente normal, agradável e amigável e que comuniquem entre si”, explica.
Em Portugal, criou-se um mecanismo para crianças refugiadas que permite que, mesmo sem documentação, estas sejam de imediato integradas no sistema educativo. Mariia conta que a entrada na escola básica foi, por isso, rápida: “Mal chegamos fomos ao departamento educativo e perguntamos se podíamos ir para a escola local. Os documentos foram recolhidos de uma só vez na sexta-feira e segunda-feira tivemos a resposta e fomos falar com os professores”.
Mesmo tendo optado por aulas presenciais, Tymofii e Roma precisam de acordar mais cedo para ter escola online ucraniana. “Fazem as aulas no ‘Google Classroom’, depois disso vêm para a escola aqui. Eles sabem que precisam de trabalhar um pouco mais, essa é a parte mais difícil para eles”, admite Mariia, salientando que estas aulas através da internet fazem com que, mesmo longe, a sua cultura e “normalidade” se mantenham por perto.
Um ensino sem fronteiras
A educação sempre foi um veículo condutor na integração social. Face ao que se vive atualmente na Ucrânia, o Governo português criou um guião para facilitar a integração das crianças ucranianas nas escolas portuguesas, que já são mais de duas mil. Num único documento, compilam-se orientações que as escolas devem seguir.
Manuela Almeida é professora de inglês, mas foi colocada nas Devesas para auxiliar os alunos ucranianos na língua portuguesa. Segundo a professora, o acompanhamento dos alunos está a ser feito de forma muito próxima, “com muito cuidado, carinho e atenção para que se sintam em casa”. “Como país de acolhimento, a escola tem de ser uma segunda casa, não nos podemos esquecer da situação que estão a enfrentar”, refere.
Assim, a escola mantém um contacto de proximidade com a mãe e responsável das duas crianças. Em comparação com o sistema de ensino ucraniano, Mariia aponta que nas escolas portuguesas há mais proximidade entre professores e alunos. “Na Ucrânia temos mais restrições e maior distância entre as crianças e os professores. Aqui é mais fácil de entrar em contacto”, sublinha.
“Temos dialogado muito com a Mariia, tanto na escola, como através de messenger e e-mail, de forma a poder ajudá-la em tudo o que seja necessário”, conta a professora Manuela Almeida. “A missão que me foi concedida foi de uma grande responsabilidade, mas está a ser muito gratificante”, vinca.
Relativamente às duas crianças, a professora descreve-os como “meninos muito cultos e curiosos”. Roma e Tymofii “já entenderam que a escola para além de ser um local de atividades lúdicas também é de trabalho. Já dominam o ucraniano e o russo. O ucraniano e o português têm palavras com raiz comum e, por isso, já são capazes de ler determinados vocábulos portugueses por eles próprios”, afirma.
Acrescenta ainda que entre as crianças há uma linguagem comum derivada das atividades lúdicas que é fundamental para a aquisição linguística e, por isso, incentiva-os a socializar com os colegas. “A língua é o veículo principal para a integração deles no país de acolhimento. Eles já trocam cromos entre eles, já sabem os jogos que estão em voga, vão falando entre eles e ao mesmo tempo aprendem a língua portuguesa”, explica.
Segundo a professora, são crianças que já vêm com “um nível de raciocínio bastante satisfatório”. Interessam-se pelas novas tecnologias tendo a direção da escola proporcionado dois computadores para terem em casa. Também a Câmara Municipal de Gaia tem colaborado com a escola para alavancar as necessidades dos alunos. “Está a haver uma coordenação e uma ajuda muito grande para que se sintam realmente bem, seguros e para que, depois ao voltarem ao país deles, ficarem com uma imagem positiva de Portugal, que lhes recebeu de braços abertos”, confessa a professora.
Para além da aprendizagem da língua portuguesa, a escola deve assegurar acompanhamento psicológico. Arminda Santos, coordenadora da Escola Básica das Devesas, esclarece que a escola tem um serviço de orientação de psicologia que está a garantir o acompanhamento dos alunos. “Tanto professores e funcionários estão sempre atentos e abertos a qualquer solicitação e necessidade das mães e filhos”, acrescenta.
Arminda Santos elucida que o principal objetivo da escola, mais do que a aprendizagem, é “priorizar” as competências emocionais e sociais, porque “ao trabalhar para o bem-estar das crianças, estas depois aprendem melhor”. Também Mariia frisa que o mais importante para as crianças é o bem-estar psicológico e “um ambiente amigável”, além da educação.
O processo de socialização passa também pela aposta nas atividades extracurriculares. Oficinas de TIC (tecnologias da informação e comunicação) e desporto são algumas das atividades extra-aula propostas gratuitamente aos alunos. Segundo a coordenadora, tem-se estimulado a participação em jogos e apela-se aos colegas para que os acompanhem. Mariia reconhece o valor deste reforço escolar, já que “os meninos são muito ativos, precisam do desporto para gastar a energia e destas aulas adicionais para facilitar a sua adaptação”.
A escola como “uma oficina de paz”
Rodeados de imagens devastadoras do seu país, a escola entra como “uma oficina de paz” e funciona como um espaço seguro para estas crianças. Da escola primária de Vila Nova de Gaia fazem parte muitas nacionalidades, é um estabelecimento de ensino “intercultural”. Assim, o grande desafio que se coloca à escola é que todas estas nacionalidades partilhem um espaço com valores comuns. Para a professora Manuela Almeida, esses valores são “o amor, a alegria, a amizade e o respeito”.
Se a escola tem como papel dar a conhecer a cultura e língua portuguesa, também tem o de cruzá-la com a valorização da língua e cultura do país de origem, refere a docente. Nesse sentido, exemplifica com as atividades de expressão plástica em que pediu para que um dos alunos desenhassem algo típico da Ucrânia. “Quando abordamos as cores ou as saudações, eles ensinam-me como é que se diz “bom dia” e eu ensino-lhes de volta, há uma troca”, acrescenta.
Apesar da escola ter sido “apanhada de surpresa”, houve um trabalho “prévio” de sensibilização aos alunos portugueses para que recebessem da melhor forma os novos alunos. Uma das preocupações dos professores titulares da turma foi consciencializar os alunos portugueses em relação ao tema, antes da chegada das crianças ucranianas. “Os meninos são todos muito abertos a estas crianças. Nos intervalos já há muita interação entre o Tym, o Roma e todos os alunos desta escola”, admite a professora.
Na mesma ótica, Arminda Santos diz que os colegas têm sido muito afetuosos com as crianças. “Nos primeiros dias até lhes dissemos ‘tenham calma’, porque eles estavam ávidos em dizer isto e aquilo e os meninos não conseguem absorver tanta coisa ao mesmo tempo. Agora o processo está a ser gradual”, ressalta a coordenadora da Escola Básica das Devesas.
A escola de Vila Nova de Gaia “abriu os braços” para acolher da melhor forma estas crianças, mas só agora está a receber orientações da Direção-Geral da Educação (DGE). Segundo uma das indicações presentes nos documentos, aconselha-se a utilização de alunos da escola como mentores dos novos alunos. Arminda Santos explica que, embora haja um aluno que funciona como mentor, a integração nesta escola acaba por ser “mais natural”. “Temos que os deixar interagir, porque é assim que desenvolvem naturalmente a socialização e a linguagem”, explica.
Numa nota positiva, Mariia acredita que “todos os problemas podem virar uma oportunidade”. Para as crianças, ver outro sistema educativo, outros professores e colegas pode ser uma possibilidade de mudança e aprendizagem. “Pode ser difícil aprender estudos ucranianos, português, inglês, tudo de uma vez só, mas ao mesmo tempo é uma boa possibilidade para treinar o cérebro, para saber mais e ter uma mente mais aberta”, refere a ucraniana.
Num sentimento sumarizado, Manuela Almeida afirma que “toda a comunidade docente está a ver esta tarefa mais como uma missão do que um trabalho”. Para a professora, esta é “a oportunidade de fazer algo por quem está a precisar, de mostrar a nossa solidariedade. Acaba por ser uma aprendizagem para eles e também para nós professores sem dúvida alguma”.
Mariia Kolomiichenko concorda. E remata: “É hora de salvar as crianças ucranianas, o povo ucraniano”.
Artigo editado por Tiago Serra Cunha