A super-banda animada liderada por Damon Albarn fechou esta edição de Primavera com chave de ouro, mas o dia também ficou marcado pelos sons quentes (em alguns casos de forma literal) dos palcos secundários. Uma grande festa a fechar uma desejada edição, a primeira desde o início da pandemia, com a promessa de regresso em 2023 mais que feita.

A saída do recinto, já com os primeiros vislumbres de um novo dia prestes a nascer, é agridoce. Ácido, por ser o fim; doce, por ser o fim de algo bonito. O NOS Primavera Sound trouxe, de quinta (9) até este sábado (11), no Parque da Cidade, coração verde do Porto, o regresso dos grandes festivais de verão depois de dois anos mais tristes (todos sabemos porquê). Depois de três dias de espetáculos, as portas fecharam com várias festas quentes nos concertos do dia, mas a promessa já está feita: para o ano há mais.

Este foi, provavelmente, um dos dias mais coesos do Primavera em termos de estado de espírito – talvez por esse motivo, foi o que pareceu mais cheio. Por ser sábado, pouco mais de meia hora tinha passado da abertura de portas e já se faziam múltiplas filas gigantescas para entrar: este era um dia para aproveitar.

Um dos dois dias de festival que esgotou, a par do primeiro – e em que estiveram pelo recinto mais ou menos o mesmo número de pessoas, segundo a organização cerca de 35 mil -, este pareceu ter uma massa mais intensa de pessoas. Às tantas o percurso era mais óbvio, a maré a remar para os mesmos lugares. Algo que se refletiu, desde logo, nos primeiros concertos do dia, com especial destaque para o “rei” de Gaia David Bruno, que abriu, em bom português do Norte, as honras no palco Super Bock.

Com o sol alto e as batidas marcantes que misturam sons de hoje a samples de outrora, o público foi-se reunindo, ora em pé, ora de toalha no chão, a apreciar o popular kitsch de DB. Este documentalista da mais pura portugalidade, que reflete com facilidade nas suas letras, leva extremamente a sério a sua comicidade e talvez seja isso que o torna tão especial.

Ao contrário de momentos como aquele protagonizado por Chico da Tina na noite anterior – que também mistura elementos da tradição portuguesa a sons distintos na sua música mas que, ao vivo, foi desinteressante do primeiro ao último segundo pela tentativa forçada de encaixar este conceito -, David Bruno fê-lo de mansinho, sem forçar, levando o público a gritar – “Gaia! Gaia!” – entre as apresentações do seu verdadeiro catálogo antropológico do “lado B” deste país, dos costumes de um bom português – ou, pelo menos, de um bom gaiense. 

David Bruno abriu as honras do terceiro e ultimo dia e Primavera Sound. Foto: Ângela Pereira/JPN

Assim se iniciou a festa do palco Super Bock, que neste último dia de festival trouxe, até ao último ato (já lá vamos), concertos de tirar o fôlego e que, fora os grandes que a isso têm direito (a quem também já chegaremos), talvez tenham sido as grandes surpresas deste dia. Em paralelo, uma festa talvez diferente, menos quente em fogo mas calorosa de outras formas, ia tendo lugar no palco Cupra, o único no asfalto, visível logo desde a entrada. Também a abrir, às 17h, Dry Cleaning traziam sons post-punk, de guitarras afiadas, que soube bem ouvir com a leve brisa vinda do mar que por vezes escapava por entre o muito calor desta tarde.

Um salto ao palco principal logo após as últimas notas do rock barulhento de Dry Cleaning para um pouco de descanso ao sol – daquele lado, pela colina, nem ponta de vento, só calor. O ambiente é convidativo e a música embala o momento. Helado Negro, nome de palco de Roberto Carlos Lange, cantou apenas oito músicas, mas fê-las render, tal tónico de fim de tarde.

Um pouco mais tarde, já pela hora em que a maioria jantava, o palco NOS recebeu também Dinosaur Jr.. O concerto em si não desanimou, mas o público não lhe respondeu. Talvez porque já tenha sido visto, mas principalmente porque se notava, de forma clara, que não era para aquilo que a audiência ali estava.

Regressando ainda a Helado Negro, um concerto mais interessante e que assentou bem na hora a que caiu, “Running” fechou o alinhamento do norte-americano e foi como que ordem de comando para o que se seguiu neste dia: muitos acorreram a outros lugares, havia mais para ver.

Sons calientes do palco Super Bock foram a surpresa do dia

Este dia de Primavera reuniu públicos bastante distintos. Se uns, talvez muitos deles em comum, estavam a ansiar pelo que viria mais tarde, havia outras massas, ainda expressivas, de pessoas que vincavam em alta voz: não iriam arredar pé do palco Super Bock. Depois da abertura mais cedo com David Bruno, este palco transformou-se na verdadeira farra desta edição. Dali em diante, os idiomas e ritmos latinos iriam colar-se àquela audiência como o suor que ficou depois de cada concerto.

A maior pena deste dia fica, precisamente, pela sobreposição de concertos entre este palco e o palco Cupra, que teve também um alinhamento de luxo, mais centrado noutras vibras musicais, que, se intercalados, seriam bons refrescos em alternância. Façamos vários saltos entre estes pontos opostos do recinto, uma viagem que vale a pena acompanhar. 

Pelas 19h, já o sol esquentava um pouco menos, ainda estavam todos claros para receber Paloma Mami. A artista, nascida nos Estados Unidos, mas chilena de sangue, corpo e alma, mistura na sua identidade visual componentes latinas com elemementos pescados da cultura pop asiática, que trazem grafismos de uma mistura mística a acompanhar o reggaeton com cheiros de trapR&B que são a infusão das suas canções. Com uma performance relativamente simples, acompanhada de duas dançarinas, cantou temas do álbum de estreia “Sueños de Dalí” e algumas colaborações mais conhecidas com, por exemplo, Ricky Martin e Major Lazer – mas foi o suficiente para levantar os ânimos e aumentar a temperatura no relvado. 

No asfalto, reunia-se uma pequena multidão, ao mesmo tempo, para ver Khruangbin (que não permitiram fotografias do seu concerto). As atuações não podiam ser mais distintas, mas cumpriam ambas um propósito comum de deixar a audiência com a energia no positivo. Ao som dos temas do trio texano, uma fusão de sons vibrantes e elegantes, o público deixou-se ondular pelos ritmos.

A presença do instrumental domina, e Khruangbin mostram que o poder da música pode mesmo estar em qualquer lado – a dado momento, começam a tocar em garrafas de vidro, fazendo uma troca de ritmos entre as garrafas e as palmas energéticas do público, que Laura Lee, a vocalista, tem o poder de cativar com um simples “YES” (em referência ao tema “Evan Finds the Third Room”).

Público no palco Cupra. Foto: Ângela Pereira/JPN

Já que perto das duas zonas de comida que preenchiam a parte inicial do recinto – ao todo, eram mais de 40 opções culinárias, de comida mais composta a street food bem festivaleira -, este era o momento ideal para recarregar baterias, não fosse o dia de festival ainda estar praticamente a meio. E assim foi, porque a essa hora as barraquinhas de hambúrgueres, massas, sandes e outras iguarias ficaram com filas intermináveis, ninguém a querer falhar o último dia desta primeira etapa do tão desejado regresso aos festivais, coisa que há pouco mais de um ano ainda parecia um oásis no deserto – e essa sede intensa de se viver livremente era praticamente palpável no ar deste Primavera Sound.

De estômago aconchegado com comida que, em ambiente de festival, cai tão bem, nova viagem até ao palco Super Bock. Desta vez, a corrida tinha de ser mais apressada e bem antecipada. Dali a pouco, às 21h20, a drag queen brasileira Pabllo Vittar entraria em palco. E este não parecia ser um concerto qualquer. Desde a tarde que fãs acérrimos da artista estavam colados às grades a marcar lugar para não perder o espetáculo, que acabou por encher completamente mais tarde, mais ou menos conhecedores do repertório a juntar-se à alegria que foi ter Vittar neste Primavera.

Mesmo para quem podia não esperar muito deste concerto, um espetáculo à estrela pop, coreografado, com bailarinos, look no ponto e iluminação ardente, acabou por fazer esse público render-se à brasileira. O amor sentiu-se e Pabllo Vittar chegou mesmo a chorar com os gritos da plateia, que ecoavam o seu nome pelo recinto naquele que é o primeiro espetáculo de grande dimensão da cantora em Portugal. 

E não fosse ser de uma animação imensa, a performance de Pabllo Vittar, cujas canções vão desde os sons tão brasileiros de um forró inquebrável aos toques eletrónicos, com colaborações com artistas internacionais de peso pelo meio, acaba por ser bem mais que isso. Já há muito que a drag queen, natural do Maranhão, no nordeste do Brasil, tem sido reconhecida globalmente pela forma como construiu do nada uma carreira que agora é tudo, que quebra preconceitos recorde após recorde, fazendo dela uma das – talvez mesmo praticamente no lugar cimeiro dessa tabela – drag queens mais bem sucedidas da história.

No fundo, este espetáculo de Pabllo Vittar – emocionante para os grandes fãs que, alguns deles envergando bandeiras do orgulho com emoção, não tiraram o pé do chão – é uma celebração de identidade própria e de amor pessoal e ao próximo, de ser-se quem se é e quebrar-se barreiras pelo caminho. Demonstração de que, com esforço, um talento como o de Vittar, ícone LGBTQ+, com uma voz timbrosa saída de pulmões com capacidade para dar e vender, pode chegar às estrelas com um único segredo: ser-se verdadeiro a si mesmo.

Também à mesma hora, no Cupra, Little Simz entregava uma atuação digna do fenómeno que se está a tornar. Se o outro lado do recinto estava cheio, também por aqui havia pouco espaço livre para ver esta jovem talento, que se afirma como uma das mais promissoras do pop/hip-hop de hoje.

A britânica, filha de nigerianos, traz ao vivo uma energia inabalável, a interpretar canções que mesclam o canto com o rap naquilo que pode ser considerado uma autêntica aula. E os seus alunos ouviram-na com atenção, enquanto Simbiatu “Simbi” Ajikawo, nome verdadeiro da artista, sorria pela quantidade de pessoas que via ali reunidas.

A mistura destes ritmos a beber de elementos soul, jazz e de sons africanos foi tiro certeiro para arrebatar uma audiência que ficou a desejar por mais, na esperança que Little Simz, já com dois álbuns de estúdio editados, regresse rapidamente para nos tirar a barriga de misérias. 

Num último pincho até ao relvado (com um momento no palco principal a acontecer pelo meio, do qual já se tiram conclusões a seguir), as filas da frente do palco Super Bock voltavam a estar reservadas para o que aí vinha, pelas 23h40. Se em Pabllo Vittar os fãs brasileiros não quiseram desistir de ter o pé na grade, agora era a vez de inúmeros fãs espanhóis – este ano, cerca de 60% do público veio de países estrangeiros, nomeadamente de Espanha, mas também de Inglaterra ou França – se babarem pela sua Bad Gyal (mais um momento em que, do nada, apesar da confirmação inicial, os fotógrafos se viram impedidos de captar). 

Aliás, contamos aqui uma mentira, até porque aquele não foi um último pincho. Foi só mesmo o início do fim, já que se seguiria um concerto que voltou a trazer os termómetros cá para cima. A inundar o espaço com um reggaeton vestido de batidas eletrónicas e completamente rendido ao dancehall jamaicano, a espanhola deu um autêntico show sensual de luz, cor e dança, ritmos endiabrados que não deixaram ninguém indiferente. 

Do outro lado, minutos depois de Bad Gyal começar a sua lição de dança, Grimes entregava um DJ set – não foi mais que isso – relativamente frio e sem muita alma, mas que foi suficiente para deixar vários dos presentes no palco Cupra em saltos eufóricos. Frieza que pareceu dominar alguns destes momentos da noite, por entre os espetáculos febris a que se assistiam, alternadamente, nos vários palcos neste dia. O mesmo diz-se de Interpol, que atuaram no palco principal um pouco antes, às 22h30.

O concerto da banda de Nova Iorque, que já tinha estado na edição anterior, a última pré-pandemia, foi robótico e mole, quase indiferente – algo que o público, sempre solidário, devolveu. Uma parte da mancha de espectadores que foram para o relvado ver a banda acabou por começar a dispersar nem meia hora dentro do concerto, pela energia fria e desprendida que se fazia sentir. Nada cativou e, sem que o problema sejam as músicas – a eles, o que lhes é de direito -, não havia muito mais a dar vontade de ficar por lá até ao final

A festa elétrica de Gorillaz que valeu por tudo

Outra história foi a de Gorillaz. A banda virtual de Damon Albarn era o que todos queriam ver – e que mostraríamos com mais detalhe, não tivesse toda a imprensa sido proibida de fotografar este espetáculo, apenas captado parcialmente pela lente oficial do NOS Primavera Sound – e isso viu-se pela audiência a rebentar pelas costuras. Se houvesse um furinho entre os milhares virados para o palco principal, era com sorte, porque o grande momento da noite tinha chegado.

Seja-se mais ou menos fã, conheça-se melhor ou pior as canções. É impossível e foi impossível ficar de fora de tudo aquilo, de não ser contagiado pela energia do coletivo que ali se apresenta em palco e que eleva os ânimos quase sem ser preciso fazer muito, mas ainda assim faz-se. Há luzes, há vídeos, houve convidados e grandes vozes. Foi a festa dos Gorillaz, que fizeram do Primavera o recreio onde todos quiseram brincar. Um concerto que fica, facilmente, no top de mais memoráveis do festival.

Na música de Gorillaz cabe muita coisa. Este pop-rock embebido em eletrónica, soul, cheiros de funk, música do mundo e elementos dançáveis, além de tudo aquilo que mais se queira, parece sair fácil, ao de leve, mas levou a plateia ao êxtase. Não se ouviam os gritos quase histéricos de outros concertos do dia, já que aqui estavam fãs de todas as idades, mas não é por isso que se pode dizer que a reação foi sequer morna; foi quente, sentida, palpável como massa no ar, uma plateia entregue à música e a reagir com entusiasmo e prontidão aos comandos de Albarn, qual capitão desta super-banda (cujos “integrantes” virtuais iam fazendo as suas aparições nos ecrãs).

A audiência apoteótica de Gorillaz no NOS Primavera Sound 2022. Foto: © Hugo Lima/NOS Primavera Sound

O concerto abriu com “M1 A1” e “Strange Timez”, passando por hinos como “Feel Good Inc.” e a acabar numa poderosa “Clint Eastwood” – tão poderosa que mandou o som do palco abaixo; terá sido uma legítima falha de som, na verdade, mas para quebrar o inconveniente, que impediu o público de ouvir as derradeiras palavras de Damon Albarn nesta noite, faça-se de conta que foi apenas a música a quebrar tudo.

Pelo meio do alinhamento, surgiram múltiplos convidados especiais. Beck, que deu espetáculo nos múltiplos sentidos da palavra na noite anterior naquele mesmo palco, chegou acompanhado do seu chapéu amarelo para cantar “The Valley of the Pagans”, o seu contributo para o álbum de colaborações “Song Machine”, de 2020. Também Little Simz, que tinha arrebatado o palco Cupra mais cedo, entrou em cena para emprestar a voz a “Garage Palace”. Surgiram também em cena Bootie Brown (“Dirty Harry” e “Stylo”), Fatoumata Diawara (“Désolé”), e Kelvin Mercer – ‘Pos’ dos De La Soul –  (“Feel Good Inc.”); além da participação intensa da voz de outro mundo de uma das integrandes do coro de cinco vozes soul que atuou durante todo o concerto com Gorillaz.

“Sha, sha-ba-da, sha-ba-da-ca, feel good”, dizem eles; e assim foi. Multidões que saíram do relvado do Parque da Cidade em alta espiritual e provavelmente, a querer mais. Havia, ali mais para o lado, o final do concerto de Earl Sweatshirt para sentir ou, para expirar os últimos cartuchos, o que quer que estivesse no palco Bits, a dita “tenda” eletrónica. Ali por aquela hora, atuava Joy Orbison. Mas não importava muito. A noite já estava feita.

Primavera teve edição mais concorrida de sempre – e já tem regresso marcado

Segundo a organização do festival, a edição deste ano do NOS Primavera Sound foi a mais concorrida de sempre. Ao todo, foram cerca de 100 mil pessoas a pisar o parque portuense nos três dias de festival, dois deles esgotados – 35 mil na quinta-feira e no sábado (9 e 11), 30 mil na sexta-feira (10). Pela primeira vez, o público estrangeiro foi mais que o português (talvez ainda efeitos da pandemia?), representando cerca de 60% dos bilhetes comprados para o total dos dias.

Ainda que não haja dias nem nada confirmado (em 2019, para a edição que aconteceria em 2020, a organização adiantou logo datas e a confirmação estrondosa do regresso dos Pavement), o final do concerto de Gorillaz deixou uma boa nova muito bem-vinda a todos os presentes: “vemo-nos para o ano”, dizia um vídeo que passava nos ecrãs, que confirma o regresso do festival ao Porto no próximo ano.

 

 
 
 
 
 
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Entretanto, fica por saber se a edição portuguesa mantém o atual formato, com três dias, ou se iá crescer. Aquando da confirmação do cartaz para este ano, algures no verão de 2021, chegou-se a equacionar um quarto dia – que ficou por terra – e o Primavera Sound Barcelona, a edição-mãe de todas as outras internacionais, foi este ano alargado para um mega-festival absurdo (no melhor sentido da palavra), com dois fins de semana repletos de concertos e novos eventos paralelos. Há também novas Primaveras pelo mundo fora – além da edição de Los Angeles também anunciada em 2019, estão a chegar novas edições em São Paulo (Brasil), Santiago (Chile) e Buenos Aires (Argentina). 

Por agora, resta esperar. Novidades? “Muito brevemente”, referiu a organização à agência Lusa. O Primavera Sound do Porto tem como ambição tornar-se “maior e melhor” e estabelecer-se como “festival de Portugal e do mundo”. Para o ano, lá estaremos para ver.