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“Centenas de crianças não deveriam ser mantidas em locais de detenção ao lado de adultos”. Mas são
“Nenhum ser humano deveria viver nessas condições”. Crescer no meio de “um grande deserto cheio tendas”
As crianças descendentes de portugueses nos campos de refugiados sírios
A “guerra” travada para conseguir fazer chegar ajuda
Chamam-lhes a “próxima geração de terroristas” que a ninguém pertence
O “pesadelo” que não acaba: o testemunho de quem cresceu num “filme de ação”

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Além das consequências diretas inerentes a um quadro que se pinta com tons de guerra – as mortes, os ferimentos, a deslocação forçada -, também se trava uma “guerra” para conseguir fazer chegar a ajuda a estas regiões.

As restrições à liberdade de movimento afetam não só os refugiados e deslocados, como também os organismos de ajuda humanitária e de defesa dos direitos humanos. Somente um número restrito de pessoas recebe acesso aos campos e prisões, acompanhado sempre por limitações que restringem a ação das organizações. 

A violência generalizada e a insegurança são poeiras que não assentam e que ampliam os problemas de acesso causados ​​por restrições burocráticas às Organizações Não Governamentais (ONG). Entraves que se acentuaram com a chegada da Covid-19 e pela falta de recursos disponíveis.

Forçar a abertura de portas que os governos “não querem abrir”

Fazer chegar a ajuda é, de facto, uma batalha com várias frentes. É vital o apoio na vertente humanitária, como também o é o papel das entidades que visam proteger e garantir o cumprimento dos direitos humanos. 

“Tentamos documentar as condições e colocar um holofote sobre elas. Vamos aos governos e autoridades ao redor do mundo e pressionamo-los a mudar o comportamento, as políticas. Tentamos espalhar mundialmente o facto de que esta detenção é imoral, ilegal e estúpida estrategicamente, do ponto de vista da segurança”, assevera Letta Tayler, diretora da divisão de Crise e Conflito da Human Rights Watch (HRW) para o terrorismo e contraterrorismo, em entrevista ao JPN. 

Foto: Khaled Akacha/UNICEF Foto: Khaled Akacha/UNICEF

Uma “tarefa sisifiana” de quem tenta forçar a abertura de portas “que as autoridades governamentais não querem abrir”. A indiferença, recusa e alienação dos governos “de muitos países ocidentais”, especialmente quanto à repatriação, faz com que, apesar da pressão exercida, o resultado seja um progresso quase inexistente, resumido à tentativa de “garantir que a situação não piora ainda mais”, explica Letta Tayler. 

Se há pessoas que tentam fingir que nada se passa, há quem se esforce para chamar à atenção para estes casos. Ana Farias, coordenadora de Mobilização e Campanhas da Amnistia Internacional, explica, em entrevista ao JPN,  que o objetivo, através da denúncia das “violações de direitos humanos”, é garantir que “o mundo presta atenção e que os holofotes passam novamente a focar-se em situações urgentes como esta”. 

Uma visão “míope” e um estômago com “pouco apetite” para reformar políticas abusivas criadas – e desculpadas – em nome do combate ao terrorismo, acredita Letta Tayler, fazem com que o mundo pouco faça para mudar esta realidade.

As ajudas que pecam na quantidade

Enquanto o mundo não age, pelo menos não de forma contundente, é preciso que alguém o faça. Em al-Hol, as necessidades são muitas – e básicas – e são as organizações humanitárias que fazem chegar o apoio possível

“Inaugurámos um hospital de campanha em al-Hol, que é o primeiro do género”, anuncia Imene Trabelsi, a porta-voz regional da Cruz Vermelha para o Próximo e Médio Oriente, em declarações dadas ao JPN em fevereiro deste ano. Sendo a saúde um dos setores em maior deterioração, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) foca maioritariamente a sua ação nesta área. A policlínica, aberta no campo desde 2019, e o hospital que abriu portas em maio do mesmo ano, permitem providenciar cuidados de saúde primários essenciais. 

O hospital de campanha inclui um médico internista permanente, um ginecologista, um pediatra, enfermeiros e voluntários do Crescente Vermelho Árabe Sírio, associação que trabalha em parceria com o CICV. Ainda assim, “isto não é nada comparado ao que 58 mil pessoas podem precisar”, constata Imene Trabelsi. 

“Estamos a oferecer milhares de refeições na cozinha comunitária [de al-Hol], por dia, mas é claro que não são suficientes para cobrir todo o acampamento. Também estamos a trabalhar para promover melhor acesso à água potável e saneamento adequado dentro do campo”, elenca a porta-voz.

Na mesma trincheira, está a Médicos Sem Fronteiras (MSF). Uma organização que, segundo o testemunho do coordenador de emergência, João Godinho Martins, ao JPN, até pela sua essência e origem, não se limita à medicina. Para além da “responsabilidade de comunicar” o que veem, também se concentram na resposta “a situações que têm implicações sobre a saúde”. “Por exemplo, a provisão de água limpa, que vai diminuir a questão das diarreias, prevenir cólera, etc.”, especifica João Godinho Martins.

Uma das riquezas da MSF, aponta o coordenador, é a experiência. “Noventa por cento das pessoas que temos recrutadas no terreno são pessoas que recrutamos nos países onde estamos, mas existem dez por cento que são pessoas que vêm de fora e que já estiveram perante outras crises”, elucida. 

O facto de alguns dos colaboradores não serem naturais da Síria é benéfico, considera João Godinho Martins, porque existem “menos ligações emocionais à situação”, permitindo-lhes até “negociar com as autoridades de outra maneira”, porque não há “medo de represálias” sobre as famílias. 

A falta de acesso em terras sem dono

“Se não temos acesso, tudo isto fica muito mais difícil”, lamenta João Godinho Martins. Um entrave já relatado pela coordenadora de Mobilização e Campanhas da Amnistia Internacional, Ana Farias: “Há dificuldades e impedimentos imensos. As informações que nós temos foram obtidas através de um conjunto de dez entrevistas com trabalhadores humanitários que estão dentro do local, porque eles têm autorização para prestarem serviços básicos, e foi com eles que fizemos essas entrevistas, porque não é possível a entrada no campo de outra forma”. 

“Depois, não é só o acesso de pessoas, é o acesso de bens”, expõe o coordenador da Médicos Sem Fronteiras. De acordo com um relatório da UNICEF relativo à situação humanitária na Síria, publicado em maio deste ano, a falta de segurança no campo de al-Hol levou à interrupção da entrega de água e suspendeu as intervenções que “não salvam vidas”, incluindo as destinadas às 1.700 crianças que usufruíam dos centros de aprendizagem da organização humanitária.

As questões políticas no nordeste da Síria, nomeadamente as que implicam outros países envolvidos no conflito, são das maiores barreiras a enfrentar. A Turquia, acusa João Godinho Martins, não reconhece a MSF como um ator humanitário, o que complica extraordinariamente a chegada de materiais e recursos por esse país, com períodos de espera que chegam “a seis e nove meses”. 

Ao nível interno, a coordenação com as autoridades “é sempre um desafio”. Um problema que se agrava pela questão que se impõe: “quem é que são as autoridades? Porque o regime sírio de Bashar al-Assad não está; depois temos autoridades que se reconhecem e auto-proclamam enquanto governo da região; e depois autoridades na Turquia que reclamam para si o poder dessa região”, relata o coordenador da MSF. 

Em terra de todos e de ninguém, “existe um vácuo de poder, de justiça”, concluiu.

O estigma e a saúde mental das crianças

As crianças sofrem com a ausência de quase tudo, menos do preconceito que as cerca. “Elas estão a ser estigmatizadas apenas por estarem neste campo [al-Hol]. Daí advém a necessidade ao nível da saúde mental e da realização de atividades psicoeducativas para aumentar a autoestima, a autoperceção, a autoconfiança”, diz Imene Trabelsi, porta-voz regional da Cruz Vermelha para o Próximo e Médio Oriente.

Nesse sentido, em 2020, o Comité Internacional da Cruz Vermelha lançou um programa para a saúde mental e apoio social no campo de al-Hol. “Estamos a oferecer consultas individuais ou familiares, dependendo das necessidades, e estamos a oferecer também atividades psicoeducativas para as crianças”, revela Imene Trabelsi.

O objetivo, partilhado pela Save The Children (STC), é encontrar formas de ajudar as crianças (e os cuidadores) a processarem toda a experiência do conflito, a serem capazes de lidar com os vários desafios que já enfrentaram e com os que estão por vir. 

“Quando temos crianças que estão em risco, por exemplo, de trabalho infantil ou exploração, podemos trabalhar com as famílias para encontrar soluções, para garantir que possamos mantê-las [as crianças] seguras”, destacou Kathryn Achilles, diretora de Advocacia, Media e Comunicações da STC na Síria, em entrevista ao JPN.

Falar sobre sentimentos, fundamentar e explicar às crianças as reações do próprio corpo, a leitura de livros, bem como os desenhos, são parte do conjunto de exercícios e ferramentas utilizados pelos profissionais da STC, dependendo dos desafios específicos que cada criança enfrenta.

Foto: Delil Souleiman/UNICEF

“Muito do nosso trabalho não é mergulhar profundamente no passado e processar o trauma do conflito, porque isso pode ser muito perigoso de se fazer fora de um ambiente clínico. O que realmente fazemos é ajudar as crianças a encontrarem um espaço de normalidade, conectar-se com seu corpo, sentir que podem falar sobre os desafios que enfrentam com as famílias, os amigos e com a nossa equipa, quando necessário”, retrata Kathryn Achilles.

Quando aprender é um luxo e um futuro promissor, quase uma utopia

milhões de crianças fora da escola na Síria, “um problema realmente crítico”, porque a privação de educação agora será uma perda “para o resto das suas vidas”.

No campo de al-Hol, só quatro em dez crianças, com idades entre os 3 e os 17 anos, têm acesso a educação. Em Roj, o número sobe para seis. Ambos os campos assombrados pelo fantasma bem real do trabalho infantil. 

“O simples facto é que, por causa do conflito, muitas crianças acabaram por perder uma grande quantidade de aulas porque foram deslocadas, então, estão em constantes mudanças. Porque a economia na Síria é tão desafiante no noroeste e no nordeste, vemos muitas crianças em risco de abandonar a escola, porque a família precisa que elas trabalhem”, afirma a diretora de Advocacia, Media e Comunicações da Save The Children na Síria.

E depois há a “vergonha”. Por terem perdido tanto de algo que em teoria é seu por direito – a educação -, “os meninos e meninas sentem-se um pouco envergonhados”. “Oferecemos aulas imediatas para crianças que estão fora da escola há algum tempo para ajudá-las a tentar recuperar o atraso, para lhes dar confiança para poderem voltar”, assinala Kathryn Achilles.

Como no resto do mundo, com a chegada da pandemia as escolas que ainda existiam fecharam, “e na Síria não é fácil passar para as aulas online, há muito poucos computadores”. A maioria das famílias partilha um telefone, portanto, se ao mesmo agregado pertencerem vários filhos, “eles não podem aprender todos ao mesmo tempo”.

As soluções passaram por encontrar uma mistura de programas de rádio, conseguir acesso à Internet para algumas escolas, e, em alguns casos, ter professores nos campos que andam de tenda em tenda para tentar impedir que as crianças “fiquem muito para trás na sua educação” e impossibilitadas de terem “as carreiras de sucesso com as quais sonham”.

Os sonhos de três crianças sírias desconhecidas

Que haja serviços educativos que apoiem as crianças e que se concentrem no desenvolvimento social e emocional das mesmas é a vontade de quase metade dos cuidadores de al-Hol com quem a Save The Children (STC) falou. “Isso inclui apoiar as crianças a construir relacionamentos positivos e saudáveis ​​com colegas e adultos”, promovendo-se um ambiente estimulante e tornando-as capazes de falar sobre as emoções, explicita o relatório da organização, “When am I going to start to live”.

Uma tarefa desafiada pelas inúmeras barreiras que se vão amontoando e que teimam em ditar a vida destas crianças. A acrescentar a todas já mencionadas, os mais novos estão proibidos de receberem “uma educação formal, o que significa que os provedores de educação só podem ensinar as crianças de forma não formal e um número limitado de disciplinas”: Árabe, Inglês, Matemática e Ciência.

A esmagadora maioria dos cuidadores de al-Hol (95%) acredita que a escola proporciona aos filhos, ou crianças a seu encargo, um ambiente adequado ao desenvolvimento de competências necessárias à vivência para lá do deserto. Alguns pediram mesmo que sejam mostradas imagens da vida “normal”, fora do campo, “incluindo animais e objetos do dia a dia, para que a compreensão dos seus filhos sobre o mundo possa ser expandida para além dos limites dos campos”. Um indicativo de que, apesar de tudo, ainda têm esperança de que os jovens se possam desprender da condição que sobre eles pesa. 

Bushra, 10 anos

Como se o presente não causasse alarme e angústia suficientes, o futuro é motivo de tormenta. À STC, mães e cuidadores falaram do medo de serem separados das crianças e do rótulo que lhes pode vir a ser estampado. “Tenho medo da injustiça e que digam que esta é uma criança do Estado Islâmico…”, disse um cuidador.

“Pais e cuidadores de crianças em al-Hol e Roj querem a mesma coisa que as famílias de todo o mundo desejam para os filhos: um futuro mais promissor. Querem que eles vivam em segurança, numa casa com telhado e quatro paredes, que possam frequentar a escola, que cresçam e possam procurar um modo de vida seguro e depender de si mesmos. Querem que os filhos sejam aceites nas comunidades de regresso”, sublinha a Save The Children.

Cuidador de um dos campos

Artigo editado por Tiago Serra Cunha e Filipa Silva