A casa da infância era colada ao Teatro da Cornucópia, em Lisboa, e visitá-lo era uma regra de ouro. É dramaturgo (entre muitas outras coisas) e, em maio deste ano, Jacinto Lucas Pires lançou, em colaboração com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, “Ser ator em Portugal”. Mais do que fazer um retrato do setor, quis homenageá-lo e ajudar os que veem no teatro uma possibilidade de futuro.
“Ser ator em Portugal” é uma conversa com “o ator” e “a atriz”, que podem ser um ou mil. No final, descobre-se que são 16, mas ao longo das páginas são entidades indiferenciadas que se movem pelos bastidores do teatro. Passam pelos palcos que já pisaram, os que pisam e os que vão ainda pisar. Falam sobre o que os trouxe ao teatro, o que os fez ficar e o que, um dia, os pode tirar de lá. Em entrevista ao JPN, Jacinto Lucas Pires relembra a “grande franqueza e generosidade dos atores”, que o marcaram particularmente e foram transversais a todas as conversas.
Um autor (não ator)
Ser dramaturgo e ser ator aparentam ser duas realidades distantes. Um aparece e o outro não, e só essa diferença parece suficiente para quase não existirem pontos comuns às duas. Para o autor (não ator), “o dramaturgo é um ‘ator sentado’, é obviamente alguém que não vai a cena, não dá o corpo ao manifesto; mas se virmos ao contrário, os atores são dramaturgos que não põem as palavras por escrito”.
As profissões partilham mais do que um espaço e a linha que as distingue é ténue e move-se frequentemente. O ator também é criador: “Às vezes, os ensaios são laboratórios de escrita. Muitas vezes começamos peças sem ou com muito pouco texto e é como se o ensaio fosse uma máquina de escrever gigante em que cada pessoa é uma voz; a escrita, às vezes, vem de um espaço coletivo que alguém fixa, regista e estrutura”.
E o próprio dramaturgo pode ser ator. Para Lucas Pires, “só se fizer sentido”. Recordou uma peça na qual participou – “Libreto”, com Alma Palacios – enquanto autor presente no palco. Ainda assim, não se sente ator e tem “demasiado respeito pelos atores e pelo que eles fazem” para se “armar em ator”. Mas nunca põe de lado a hipótese de estar sob a luz dos holofotes até porque também tem um “lado performativo” que nasce da música e não foge muito do teatral.
A escrita é o que lhe apraz fazer. Foi através dela que entrou no teatro, já depois das visitas à Cornucópia com os pais. Foi numa “segunda adolescência”, estava a entrar no curso de Direito, mas tinha um grupo de amigos muito ligados às artes. Nessa altura, começou a ir ao teatro de forma independente e, mais decisivo ainda, a ler teatro. Uma coisa levou a outra e uma peça que escreveu foi publicada. Não havia produção à vista na altura, mas, passado um ano, Jorge Silva Melo (o fundador do Cornucópia, falecido em março deste ano) passou o livro a um encenador mais novo, Manuel Wiborg. Jacinto Lucas Pires recorda: “A minha entrada no teatro é a partir do texto, da escrita e depois aí é que passo mesmo a escrever com atores, a estar nos ensaios, a trabalhar diretamente com encenadores desde o início”.
“A própria peça escrita é uma concretização”, a primeira, “depois há essa concretização fundamental que é no palco, a cena”. Mas talvez vá para além da cena, do ensaio, das palavras, a concretização é a possibilidade de representação. Escrever teatro é ter “essa intenção, essa possibilidade, essa sugestão de transformar aquilo em pessoas de carne e osso em frente a outras pessoas de carne e osso num palco”. E se ser ator é “buscar coerência, autenticidade, aceitar a sala de espetáculo onde tudo pode acontecer, subir ao palco, colocar-se sob os holofotes, para ‘estar com’ e fazer acontecer um mistério cada vez único e irrepetível”, como escreve em “Ser ator em Portugal”, ser dramaturgo é “escrever de forma aberta para que isso seja possível”.
O ator como “artesão”
Há no livro um ator que se considera como um artesão. Faz teatro como quem monta um objeto, ainda que esse objeto não seja material. “Antes de mais é um artesão, só depois é que é artista”. Jacinto Lucas Pires tirou daqui uma lição que extravasa as artes: consegue-se “o grande, o percurso da maratona, passo a passo”. Mas perceber quando é que o artesão passa a artista é mais complicado. “O próprio tem de se preocupar mais com o artesanal, o artístico é uma coisa que vem do olhar dos outros. E em vez de nos estarmos sempre a olhar de longe, da posterioridade, morbidamente, já encaixilhados, rotulados, dentro do boião no Panteão, vermos do lugar dos vivos”. Atentar no olhar, na palavra presente.
Entre lições e aprendizagens, Jacinto Lucas Pires destacou “uma grande alegria no que fazem [os atores] – que se calhar noutras áreas não se sente tanto – um entusiasmo, um prazer quase infantil no bom sentido, de crianças que gostam de estar no jogo, que gostam de estar a brincar”.
Por outro lado, marcou-o especialmente um “desencanto em relação a um mundo que parece que a partir de certa idade não deixa os atores serem crianças como têm de ser”. As atrizes são especialmente afetadas por este problema, “chega-se por vezes a um ridículo, na televisão principalmente, em que a mãe, a avó e a filha são todas da mesma idade ou são obrigadas a fazer plásticas para poderem trabalhar”.
Mas entre a atriz e o ator esta não é a única diferença. Ao longo das conversas que construíram este livro, o autor apercebeu-se de pelo menos mais duas. “Mesmo em idades mais novas, a questão de certo tipo de teatro e de televisão, principalmente, verem a mulher pelo lado do corpo objeto”, instrumentalizando-a para motivos exteriores à arte. Há outro fosso entre o ator e a atriz: uma predileção por homens novos que se pode relacionar com o repertório clássico. “Mas até no tempo de Shakespeare se fazia ao contrário – os homens interpretavam personagens femininas – porque não hoje trocarmos essas voltas?”.
Em peças novas, a solução poderá passar por “escrevermos mais para mulheres”, porque “não força nada do ponto de vista artístico – há tantas histórias de mulheres, tantas atrizes belíssimas, tantas vozes que precisam de espaço, não é difícil, é indispensável”.
Livro sugere alterações a estatuto criado pelo Governo
O Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, reivindicado há mais de vinte anos, tinha como objetivo colmatar alguns dos problemas do setor. É um regime jurídico que estabelece regras especiais para os profissionais da área da cultura relativas ao registo dos profissionais, regime laboral e de prestação de serviços e regime de proteção social. Aquando da escrita do livro, Jacinto Lucas Pires deixou alguns reparos ao documento que ainda não tinha sido aprovado.
Está em vigor desde janeiro e será revisto de dois em dois anos. Em 2024, as mudanças que o dramaturgo espera ver são “essencialmente todas as que estão no livro, infelizmente” e sublinhou a importância de “mudar o estado das coisas para a frente, não só por pensos rápidos no imediato”. A intenção de “resolver o problema da segurança laboral, da precariedade, e das expectativas dos artistas enquanto trabalhadores” é boa, mas o investimento na cultura não aumentou. “O que faz com que as entidades – que na verdade aqui não são grandes empresas que têm muito lucro e não estão a distribuir pelos trabalhadores, são companhias independentes – não tenham dinheiro para pagarem essa margem a mais que o Estatuto obriga para haver contratos de trabalho”.
Mesmo as companhias são poucas e muito concentradas, fazem falta a quem começa, porque ajudam a criar uma identidade. Há um ator que chega mesmo a propor um rompimento drástico com esta estrutura, uma ida para além do que se conhece. A solução passa pela criação de centros teatrais, “três ou mais por região”, que incluam não só uma companhia, mas também “espaços de pensamento e de formação”, um espaço que seja “mais cidade e menos tribo”. Para ele só assim se atinge a democracia cultural. “A revolução não vai ser nem global nem nacional. Tem de ser local”.
“Ser ator não é um emprego. O teatro é a primeira igreja. Por outro lado, os atores também têm de pagar contas. […] Não há direitos, estabilidade, previsibilidade, horizonte mínimo”, lê-se. É o testemunho de um ator. Jacinto Lucas Pires conhecia pouco da vida prática dos atores apesar de trabalhar com eles há muito tempo. Falou com eles, apresentou-os como uma espécie de “ator desconhecido” com dezasseis vozes que são a mesma e muitas diferentes. Para saber como é ser ator em Portugal, garante, “é preciso ler o livro”.
Artigo editado por Filipa Silva